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domingo, dezembro 20, 2020

DOS HOMENS AOS PÁSSAROS

Paranhos, terra do Silva tido como fundador do Kwitu, kaphutu cikolonya. Esse fontanário já serviu homens num passado que a geração actual de jovens não faz ideia. Muitos a entrar aos cinquenta também. A água encanada chegou à casa. Porém, lá está o fontanário, construído em pedra, cal e ferro. Persiste no tempo, desafiando-o tenazmente. Nem a lumpenagem põe mão ao que serviu o público, é público e memória colectiva.

São, hoje, os pombos e cucos que dele usufruem.

Tomara que chegue também o nosso dia da reforma dos fontanários!

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terça-feira, dezembro 15, 2020

A REPRESSÃO DEBAIXO DE ESPINHOS

Nos anos 80 do Sec XX, com a guerra crescendo de intensidade, raptos perpetrados pela guerrilha de farda verde, fome e deslocados, passar noites na mata para escapar à surpresa madrugadora era dia sim, semana também no meu Limbe¹.
Uma das situações incômodas que conservo na memória era o facto de se ter colectiva e familiarmente imposto que "aqueles que tivessem tosse não deviam tossir e as crianças não deviam sequer reclamar a teta através do choro".
- Omona wu otujibisa!² - Dizia-se ao primeiro ai.
Minha mãe, viúva na casa dos trinta, ainda alimentava a Emília e havia pessoas com gripe e constipação, fruto das intempéries climatéricas a que nos submetíamos. E fazíamos o esforço em não tossir nem soltar um espirro.
Quão duro era reprimir um espirro ou tosse, manifestações espontâneas difíceis de esconder!
Hoje, de baixo de coroas espinhosos que envolvem o vírus do momento, viajei 8 horas com dois senhores (mãe e filho) que engripados ou sofrendo de doenças respiratórias que os convidavam a espirrar e ou tossir, não podiam soltar tal momento espontâneo e sublime, por respeito aos demais co-passageiros e também por receio de possível estigmatização.
Lembrei-me do meu sofrimento há trinta e sete anos no Libolo e durante a viagem inteira sofri com eles.
Afinal, um tossir espontâneo ou um espirro seguido de um "santinho" fazem parte da natureza humana e dão fôlego aos homens viventes.
Que se vá embora esse corona!

¹ Aldeola agrícola da comuna de Munenga na EN120. Foi extinta pela emigração dos seus habitantes e ficava a dois quilômetros da actual Aldeia de Pedra Escrita.
² Esta criança vai levar-nos à morte (Kimbundu).

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terça-feira, dezembro 08, 2020

A CICATRIZ E O CAFEEIRO

 Certo dia encontrávamo-nos no rio ou à beira. Calculo que teríamos ido "kanyunar"¹ muzwa². O rio, povoado em bagres e tuqueias pelo meu progenitor, já ia conferindo autossuficiência à família em termos de peixes e caranguejos. Esses, os hala, apareceram antes da minha família.

Na floresta ribeirinha, havia umas raízes "aéreas" grossas e longas que nos serviam como baloiços. Havia outras brincadeiras mais caricatas que não narro nessa prosa.
Posto eu em uma dessas "raízes-baloiço", terei sido picado por uma formiga, tendo-me desequilibrado e caído. No chão, fui recebido por um pau aguçado que me furou a bochecha. Devia ter três anos.
Meu irmão com quem me encontrava fugiu de medo. Corajoso, fui andando a caminho de casa e quando cheguei ao cafeeiro, peguei em uma das folhas e tapei a ferida, impedindo a saída do sangue.
E não é que a cura foi com pó de café?
- Ele trouxe a ferida e o seu próprio remedio. - Terá dito Ngana Muryangu, neu avô paterno.
Hoje plantei (levei à terra firme) o meu primeiro cafeeiro das quatro plantas que o amigo Mário Botelho De Vasconcelos me ofereceu. Não perguntei se é da espécie arábica ou robusta. Seja de que tipo for, posso conferir-lhe sombra, se robusta, ou eliminar sombra, se for arábica.
===
¹ Visitar armadilha
² Nassa. Artefacto para apanhar peixe.

terça-feira, dezembro 01, 2020

OS ESCOMBROS DE JANJO E A PICADA DE CASSONGUE

A manhã era fria, 15 graus Celcius, e no Horizonte estava marcada a cidade de Luanda. A viagem seria longa: Huambo-Cuito e voltar ao Huambo (Chicala Choloanga) e rumar em direcção ao Cuanza-Sul ou seguir do Cuito ao Andulo, Mussende, Quibala-Luanda.

Tão logo me aproximei do Cuito, liguei a um amigo:
- Kamba Fernando Chicapa, tu que conheces bem o Andulo, diz-me ainda como está a via Cuito-Andulo-Mussende.
- Epá, tens aí uns 40 quilômetro de terra batida entre Calussinga e São Lucas. Quanto ao Mussende-Cariango, na tua Província, já sabes. - Advertiu.
Ansioso em conhecer Mussende um dos seis municípios cuanza-sulinos por visitar (Quilenda, Ebo, Conda, Seles e Cassongue), decidi voltar ao Huambo (Chicala-Choloanga), explorar a "nova" via que liga o Bailundo ao Cassongue e conhecer a vila que fica encravada fora da EN120.
Entre o belo e o constrangedor que vi, registei essa imagem que mostra o que sobrou da missão católica de Janjo, Cuanza-Sul, município de Cassongue.
Calculo que no seu tempo podia pleitear com a "catedral" de Ambaca. É uma pena que a guerra e o descaso a tenham levado a este estado.
Vi, à entrada central (lateral direita), duas crianças vestidas de batas brancas.

À volta do imóvel podem ser vistos outros escombros sinalizando uma forte presença missionária (escola, hospital e outras dependências habituais).
Na ânsia de aumentar o meu conhecimento sobre o Cuanza-Sul, procurei por informações sobre a distância até à  Vila de Cassongue que, há muito, pretendo conhecer. Não passam muitos anos que vi uma matéria na televisão em que se dizia que "Cassongue já tem asfalto".
- Ó mano, bom dia. Daqui, do desvio, para a Vila sede quantos quilómetros são?
- Bom dia chefe. É 'mbora perto.
- Sim, mano. Mas quantos quilómetros? A estrada está boa?
- São trinta e sete quilômetros de terra 'abatida'. Mas pode andar bem. Só nuns sítios é que está a nascer lama.
Pensei: trinta e sete quilômetros em terra batida, saltos, lama, eventuais desnivelamentos que podiam danificar o para-choques frontal, gastar mais de uma hora para os dois percursos (ida e volta ao desvio para apanhar a EN 120) ...
- Ó mano, muito obrigado pela informação. Vou conhecer a Vila de Cassongue na próxima viagem que fizer ao Huambo. Se calhar, até lá, o asfalto chegue à vila de Cassongue.

domingo, novembro 29, 2020

QUANDO A MÃE TE CHAMA "MESTRE"

Um dia antes de me submeter ao júri, ordenei minhas duas irmãs:

- Vão à casa da mãe ou mandem vossas filhas para trançar o cabelo dela e arranjar as unhas. Imaginem que ela vai a um evento. Caso consinta, peçam a ela mesma que empreste o dinheiro necessário que pagarei quando voltar.
- Mano, ela tem o cabelo curto e não vai aceitar. - Disse uma delas.
- Vão e digam que eu é que vos mandei. - Ordenei sem mais detalhes.
- Mas eu, cega, sem mobilidade, estão a me preparar para ir aonde? - Dizem que questionou assim à neta que se fez presente.
- É o tio quem mandou. - Arguiu a Elizabeth Carina.
- Mas ele não viajou para o Putu?
- Sim. Mandou mensagem para traçar a avó. 
Hoje, uma semana depois, encontrei-a sorridente. Bateu palmas quando me ouviu cumprimentá-la.
- É o papá? A viagem, correu bem?
Não tinha reparado o cabelo dela pois o cobria com um lenço. Quando perguntei se as netas haviam cumprido o que orientei, ela destapou o lenço e avançou:
- Estou bonita. Até pareço que vou à festa. Ninguém me disse por que me prepararam.
- Mãe, fui terminar um curso e por isso mandei preparar a mãe para que ficasse como se estivesse lá perto de mim.
- E o curso correu bem?
- Sim mãe.  Correu bem. É pena que o banco não me tenha dado  dinheiro para comprar uma lembrança para a mãe. 
- Não há problema. Comida e medicamento aqui nunca faltou. E assim qual é o curso?
- É de mestrado, mãe. 
- Agora és mestre Luciano Canhanga! É assim que te chamam?
- Sim, mãe. 
- Então, não esquece papá. Manda mensagem ao tio Beto (irmão dela) e diz: agora sou mestre.
Fizemos as contas e parti para a fiscalização do estado da casa e de outras dependências.

domingo, novembro 22, 2020

DO PORTO A LISBOA

A senhora estava fina. Bem, não sei se fina ou finória. De corpo, tenho certeza. Era fininha.

A estranheza começou quando lhe estendi as cédulas.
- Não tem multibanco? - Provocou-me recebendo em resposta:
- A que hora parte o machimbombo? 
- Hum?! - Ela, com cara de parva.
- A que hora parte o autocarro?
- Hum?! Autocarro? O quê que é?
- A que hora parte a camioneta?
- Ah! Afinal é isso? É ao meio dia.
(No meu íntimo) - Fidacaxa. Se a língua é a mesma e tu é que tens menos domínio de vocábulos por que me vens com essa cara de quem ouviu Kimbundu?!
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domingo, novembro 15, 2020

DE LUANDA AO LIBOLO

Íamos pela estrada com pontes em alargamento no meu NISSAN Almera. Uma placa indicava desvio a 500 metros, quando na verdade eram 50. Por pouco caia num rio cuja passagem hídrica havia sido desactivada para ser substituída por outra mais larga. Travei a custo e fui chamar um "nervo" ao "capataz" da obra.

A minha progenitora, que ainda era visual, viu e ouviu calada. Recebera outra educação. Foram-lhe inculcados, no tempo colonial, outros valores: "mundele nzambi"¹.
Já no carro, quando retomámos a viagem, disse para mim.
- O papá, afinal, estudou mesmo. Preto a dar bafos a um branco?! Antigamente era só o contrário. Mesmo com tua razão, a razão passava para o branco.
Noutra viagem, tínhamos parado em um restaurante no Dondo e uma donzela magra, cabelos longos, olhos de gato e bom falar, atendia à mesa. Fui pedindo o que queríamos e ela, diligente e aprumada para o seu trabalho, ia atendendo sorridente.
- Eh! O país mudou. Branca mesmo, senhora que no tempo do kaputu só sabiam ofender "burra de merda" é que está a nos servir? Quem é que naquele tempo nos deixaria entrar naquele "bar" senão ir comer nos confins com os empregados pretos? Ainda bem que estudaste meu filho. Se ainda tiver mais estudos pela frente não pára. Continua!

Vim dar continuidade, mãe. Quero, no teu silêncio, a bênção. Vai correr bem. Sei.
===
¹branco é deus

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domingo, novembro 08, 2020

OS LICENCIADOS DE LUANDA E OS DE BOLONHA

O Tratado ou Processo de Bolonha (19 Junho 1999) estipula, entre outros, a integração europeia (e outros signatários como Rússia e Turquia) e a reforma do ensino universitário dando maior responsabilidade ao estudante e diminuindo o tempo lectivo.

Assim, à luz desse Tratado, o estudante de licenciatura passou dos 4 ou 5 anos para 3. O mestrado dois anos e o doutoramento 3. Somando os anos, o indivíduo pode ser PhD em apenas 8 anos lectivos.
Os licenciados de Luanda continuam a fazer 4 a 5 anos, maior responsabilidade/peso no processo para o professor, estudantes (sobretudo trabalhadores/nocturnos) que não se empenham em pesquisa bibliográfica e trabalhos de campo, entre outras maleitas.
Com esse sistema, temos professores universitários, os licenciados de Bolonha, a ministrar aulas a quem podia (somado o tempo de permanência na universidade) estar a terminar o mestrado (Luanda).
Feitas as contas e pesados os conhecimentos, quem no fim dos 3 ou 5 anos, apresenta maior solidez de conhecimentos?
Há que iniciar um "Processo de Luanda" reformar os métodos e os curriculas universitários de sorte que o professor mostre o caminho ao viandante (orientador e orientado). Sócrates, o filósofo e não aquele outro, apelava seus pupilos a irem à busca da verdade/conhecimento...

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, texto que diz "e uma aprendizagem baseada no estudante quantificada através dos créditos ECTS. bologna process Logótipo do processo de Bolonha. Sessão informativa sobre os planos de estudo numa universidade espanhola."

domingo, novembro 01, 2020

"PLATÃO DA KIBALA"

Uma dúvida colocada por um amigo quanto à denominação dos meses e o início do ano na cosmogonia batu (realce aos ambundu, ovimbundu, tucokwe e bakongo) que eu defendia ser Setembro o 1° mês e ele Janeiro (como na Europa) fez-me desviar a rota do trabalho e ir ao encontro do Rev° Gabriel Vinte e Cinco.
Para mim, ale associa o conhecimento natural, ganho pela experiência, indagação permanente e busca de respostas (transmitido pela oralidade por seus mais velhos) e o conhecimento científico-acadêmico, sendo, por isso (minha apreciação), uma PONTE entre os detentores do saber consuetudinário e  do positivo (cientifico). É uma pessoa que tem conhecimentos e conselhos para todas as idades e tipos de organização intelecto-racional.

Bem podia caracterizá-lo de "Sócrates", porém, o maior filósofo helênico não deixou obra escrita, sendo a sua escola e magistério conhecidos por meio de PLATÃO, seu discípulo.
Gabriel Vinte e Cinco tem livros publicados sobre o Kwanza-Sul e Metodismo Unido em Angola. É, por isso, o meu Platão da Kibala.

O mestre confirmou que Setembro é para os Kibala, povos sedentários originários do Ndongo e que habitam o centro do Kwanza-Sul, o 1° mês do ano.
Abaixo os nomes, a começar pelo correspondente a Setembro (mês do início da chuva e campanha agrícola):
1- Kamoxi (Setembro do calendário gregoriano)
2- Kakyadi
3- Katatu
4- Kawana
5- Katano
6- Kas(s)amano
7-Kas(s)ambewa
8- Kanake
9- Kava
10- Kakwi/Kakunyi
11- Kuthu-Kathulu
12- Kithulumune (Agosto)

Já a terminar, quando a conversa bem encarrilada parecia não ter fim, contrariamente ao relógio que caminhava apressado, o mais velho (Platão da Kibala) falou sobre os jovens que querem saber tudo num único instante, sem estimular a abertura da "biblioteca".

- Para cortar a barba de um idoso é preciso jeito. Os jovens têm de ter paciência em procurar pelos mais velhos, estimulá-los à conversa, e evitarem vir com perguntas para responder de forma apressada. É preciso sentar, contar mahezu* e conversar. - Assinalou, ao mesmo tempo que agradecia o empenho deste articulista na recolha e divulgação de "sentimentos, conhecimentos e fazeres do nosso povo".

* Conversa introdutória, semelhante a yala nkuhu (Kikongo). Nela, cada parte faz uma revista sobre o estado de saúde, o motivo da viagem/visita e os últimos acontecimentos de cada parte. 

quinta-feira, outubro 29, 2020

KATALAMBA

Watungu kukunda Kwenganga wobata (Literalmente: quem constroi  atrás seguiu a Kinganga)

O aforismo kibala-lubolense reporta-se, entre outros, a uma vertente do crescimento populacional das aldeias kwanza-sulinas.

A genesis das aldeias rurais tem como base o núcleo familiar. Regra geral, um emigrante em busca de terra fértil, pasto, faina ou paz espiritual depois de atritos na aldeia de origem, constitui uma nova comunidade residencial. 

Esse patriarca, com seus filhos, esposas e sobrinhos, funda a aldeola que, com o tempo, cresce (à medida que os filhos e sobrinhos forem constituindo famílias e atraírem outros parentes e amigos para o novo conglomerado habitacional.

A relação consanguínea faz com que os casamentos dos constituintes, regra geral, se façam com pessoas de outras aldeias próximas e/ou distantes que não sejam de mesma linhagem. 

Surge aqui a figura de katalamba¹ que é incontornável num kixobo².

Parente e ou amigo/a do casal, o/a katalamba é o/a emissário/a do noivo que, no dia do kixobo, se mete a caminho da aldeia de da noiva, levando-a, em companhia da tia desta ou outra representante de sua família, à casa do noivo.

Pelo caminho, mostra-lhe e conta-lhe estórias e história sobre os hábitos e costumes da sua família , sobre os rios, coutadas, bens físicos  e espirituais, permissões e proibições, famílias amigas e inimigas, entre outros aspectos de vida familiar e comunitária. 

A/o katalamba é geralmente bem recebido em casa da nubente e tratado como interlocutor válido/a do seu representado.

Há outros ritos de baixa variabilidade de aldeia em aldeia que, regra regal, consistem em entornar um pouco de kisângwa³ e óleo de palma em cada entroncamento, representando o manifesto de paz com todos quantos trilharam e venham a trilhar aquele  caminho e fartura à nova família.

Terminada a cerimônia matricial, uma noite dançante, com fartura em funji de carne, regada com makyakya⁴ e wala⁵, algumas peças do enxoval da noiva são entregues como lembrança a/o katalamba, como prato, garfo, faca, copo e outros possíveis objectos.

O autor desta crônicas foi katalamba no kixobo de Rosa José, em 1996, em Luanda, tendo recebido como lembranças: um prato, garfo, faca, colher  e copo de vidro.

==

1- Emissário/a do noivo.

2- Cerimônia matrimonial.

3- Sumo feito de farinha de milho e adocicado com seiva de uma raiz designada por muxiri ou mbundi (Umbundu).

4- Destilado alcoólico também designado por kaporroto.

5- O mesmo que kisângwa. Garapa.

sexta-feira, outubro 23, 2020

A FALASTRONA E A CANECA DE CAFÉ

Ukãe wanditukãnla. Ati* "essa hora com caneca"?

Dez horas de domingo. O sol anunciava-se preguiçoso, apesar de o kasimbu ter ficado, oficialmente há 24 horas atrás. A vila, que também chamam de centralidade sem nada centrar, tirando o reencontro dormitorial de cada semana, tinha movimento lento e contável.
Uns regando jardins, outros varrendo os passeios e bermas e outros, sobretudo outras, entregues a conversas de quem tivesse trabalho em falta.
Man- Quarenta acordara cedo, como sempre, e estava dividido entre o balde de água para regar o jardim que plantou no passeio, a caneca de café que fazia o vai e vem (algumas vezes ficava na grade, para ser movimentada quer de dentro como de fora do muro de um metro) e a pá e vassoura para diminuir a areia na berma da estrada que, no seu dizer, "estragava o looking da moradia".
- Bom dia vizinho, bom dia vizinha, bom dia menino, bom dia menina ... - Era hábito dele cumprimentar enquanto homem do nascido no interior, cultivado a manter relações de boa vizinhança, mas sem a confiança de se pedir sal ou jindungu.
Depois de um "bom dia" um um condômino que se fazia desfilar em voz alta, foi agraciado caralmente com uma pérola.
- Kitangana kyeniki nyi neka bu mako?**
- Arra xisa! Essa pessoa vou lhe pôr na crónica. Pessoa não pega mais caneca é bêbado. E mesmo que fosse bêbado, domingo, dez horas, à espera de Kumbi Lixya-njila kanjimbi e companhia é pecado que Cristo não perdoaria? Está a me ofender pô-cá-di-quê?! - Bravou, mas só no coração.
Man-Quarenta, nascido numa aldeia organizada, embora rural, cedo mudou-se para um dos musseques de Luanda, onde ainda encontrou mulheres que varriam as ruas manhã cedo e ensinavam os filhos a observarem os bons costumes. Mesmo no "mato" onde nasceu, o espaço à volta de casa era limpo, o lixo enterrado ou queimado e a vizinhança era família. Se calhar foi isso que o pôs fulu.
- Porra, café na jatona é kapuka? - Rabujou autra vez em solilóquio, enquanto rebuscava uma boa música para descrever a pessoa faltadora de respeito.
Entre Bangão e o Trio Kusanguluka, veio-lhe "Vizinha yô vizinha, wabeta mon'ami. Ki ngamubwidisa mukonda, wangilomlolola ndaka. Vizinha yô kamaka!"
Continuou a rega e a varredura da berma da estrada que se tornara imunda pela acção da inicivilização humana e foi cantando sem pronunciar:
- Kutunga nê wijya... vizinha yô kamaka...***
==
* A senhora ofendeu-me. Disse:
** Essa hora com caneca na mão? (Kimbundu)
*** ser vizinha deles é preciso ter cuidado. A vizinha é "makeira".


quinta-feira, outubro 15, 2020

"O MEIO É A MENSAGEM"?

(Tentativa de desconstrução de McLuhan)
Percorrendo o caminho da media que demanda emissor-mensagem-meio/canal-receptor e feedback, verificámos que o meio de comunicação formal mais antigo é a imprensa ou seja o texto. Ao texto, o desenvolvimento técnico acrescentou a imagem estática (foto).
Posteriormente, a voz foi acrescida ao texto e surgiu a radio (é mais expressivo e imapctante ouvir do que ler uma citação). Mas não era tudo. Ao texto e à voz foi adicionada a imagem dinâmica. Apareceu a televisão, um meio muito mais impactante do que seus predecessores.
Porém, não era ainda tudo. A internet e as redes sociais, vieram dar velocidade e maior alcance, atingindo um público global e eliminando os condicionamentos de distribuição. É, deverás, impactante.
Quando o filósofo MacLuhan diz que "o meio/veículo é a mensagem" não o diz de forma literal, pois, é consabido que mensagem é mensagem e o meio é o canal por onde ela, a mensagem, é feita circular (desde a antiguidade que não se confunde a mensagem e o mensageiro).
"O meio é mensagem" significa tão somente que o meio influencia o impacto da mensagem sobre o destinatário (uma coisa é dizer o homem chorou ao ser morto, outra é ouvi-lo chorar. Outra ainda é ouvi-lo e, simultaneamente, vê-lo chorar).
O meio/canal também influencia o modelo de concepção (empacotamento) da mensagem, pois imprensa, rádio, Tv e, hoje, as redes sociais têm formatos diferentes de concepção das mensagens.

quinta-feira, outubro 08, 2020

BATATEIRA DESFOLHADA

O dia nasceu nublado. Nem o avançar da hora para perto das oito fazia o sol se erguer com pulungunza de quem fumou bob marley.

Esses, os apreciadores da fumaça, eram os únicos que pululavam as ruas da cidade, ora biscateando na rega dos jardins nascentes, ora dirigindo-se aos empregos formais.

Entre o frio e a necessidade de dar vida à vida, lá estava também eu, fumador passivo da kangonya do motoqueiro que recolhia o lixo do quarteirão P do Zango 5. Mangueira na mão e pá à porta do quintal,  eis que me visita um jovem alto e magro, em passo apressado.

- Bom dia boss. Posso arrancar a rama?
- Arrancar? Como assim?
Pensei que fosse brincadeira. Só podia ser. Como é que um gajo lúcido vem, manhã cedo à minha porta e a propor arrancar a batateira que me tem custado água e esforço, para além de dar vida ao canteiro que relegou ao passado o castanho da terra?
- Sim boss. É mesmo através da fome. Trabalho no fomento (fundo de fomento habitacional). Assim, o outro está a me esperar para lhe render. Se o boss me fizer já boa vontade, vou me apresentar e volto arrancar para fazer o almoço.
- Ah! Vamos lá ver. Mas você precisa das folhas ou dos caules também?
- Boss, é mesmo para comer.
- Sim. Já percebi. Você quer a rama. Mas precisa também de levar os troncos? Pois se arrancar vai levar tudo e quando a fome voltar não haverá mais nem para mim tão pouco para você.
- Não kota, me atrapalhei ao pedir. É mesmo só as folhas para acompanhar os jovens do prenda (kabwenya).
- Está bem. Pode levar a rama. Mas eu quero que você as corte agora que estou a regar para me assegurar que não vai arrancar as plantas inteiras.
O jovem agachou-se e foi desfolhando a batateira até parecer que foi visitada por uma herbívoros ruminante.
- Boss, faxavor! Pode me dar um saco? - Voltou a pedir.
- Porra, você é que sabe pedir. Já queria a rama e os troncos todos. Agora quer saco. Não tenho. Deixa a rama no canto e depois vem buscar ou leva-a na sua mochila.
Conselho acatado, o jovem pôs força nas pernas e foi marcando passos, desfazendo-se na distância e na neblina matinal.

quinta-feira, outubro 01, 2020

QUEM DISSE QUE HOMEM ADULTO (NÃO) CHORA?

A fila não era longa. A manhã é que já levava quilómetros.

Chamados a provar o que os próprios cientistas reconhecem "haver erros recorrentes em resultados apresentados", lá estavam lideres e liderados. Um dúzia e meia entre falsos sorrisos e receio aparente. Todos apreensivos quanto ao método e resultado.
- Será?
- E se for?!
- Bem. Sandinga. Se for será. Se não for melhor! - Atirou 2Tempos, um dos melhor graduados daquela esquadra.
Não demorou a chamada. Primeiro para o alistamento e, depois, para o tira teimas.
O exame consistia em fazer "endoscopia" sem gritar, nem lacrimejar.
- Está tudo bem, senhor? - Indagou a médica.
- Está bem. Mas se lhe disser que está tudo bem estaria a mentir. É um desconforto esse tubo dentro de mim.
- Realmente. Mas isso passa. O mais importante é o resultado. Pode sair, sô tor 2 Tempos.
- Obrigado pelas palavras. Estou apenas a endireitar o rosto para não aparecer à tropa com lagrimas visíveis.
- Ah! Um homem chefe também chora?!
- Deixa, Cda. médica. Para mim, o choro são as palavras exteriorizadas. Sei guardar a angústia para o momento privado.
E foi saindo e se endireitando ao encontro da "tropa" que aguardava notícias. O teste era inédito.
- Chefe, doeu?
- Não. Até dá prazer em bisar. É como amêndoa. Lembram-se das vacinas em que davam amêndoas? Nada de medo. Está e vai estar tudo bem! - Concluiu 2 Tempos, fazendo a curva para apanhar a viatura que deixara desguarnecida na rua do Giraflor.

terça-feira, setembro 29, 2020

QUERO-VOS PERNAS!

Há duas semanas que vou fazendo a pé o percurso Zango V vs entroncamento com a Estrada Kalumbu-Via Expressa, ora de manhã, ora ao dealbar do dia.

Na última rotunda, antes da cidade, aí onde desembocam os rejeitados da ETAR, em direção a Kalumbu-Kwanza, há uma bifurcação em forma de tomada para futura estrada e um andarilho frequentado por gente que só aparece de carro e bem aparentada, cujo destino se perde na distância do devoluto.
Aldeia à frente não se vislumbra. Fazenda ou quinta quiçá. Porém, as vestes contrastam com o estilo de vida ou ambiente campesino.
Que haverá de enigmático por trás do "montulho"


de terra vermelha saída da vala que transporta as águas podridas do Zango V?
Entre contemplações e curiosidade, perguntei aos membros locomotores:
- Podem levar meus olhos até próximo do enigma?
- Estamos sem força, mestre! - Responderam a teketar*, carregando já perto de dez mil passos.
Quem sabe um dia ganhem forças bastante para levar-me a descrever aonde vão aquelas senhoras de idade e bem nutridas, vezes sós e outras vezes acompanhadas por moços pulungunzeiros?!**

*tremer.
** cheios de força, vigorosos.

terça-feira, setembro 22, 2020

AMBULÂNCIA NO BAIRRO

- Xê, sabes duma coisa, Joana?

- Coisa de quê então, Belucha? Me conta então.
- Falaram então aquele vizinho acusou.
- Lhe acusaram quê? Assim já é fitiço nê?
- Não lhe acusaram feitiço, sua distraída.
- Então fez quê, roubou ou meteu filho na mulher do outro? Também da maneira que bebe e pega nos rabos das mulher'alheia não s'esperava outra coisa.
- Joana, você és mesmo distraída. Parece ainda estás em Kangandala. Abre o olho, pá.
- Mas, ó Belucha, você conversa que inicias nunca terminas. Assim eu é que vou adivinhar o teu mahezu. Começa então ja a boatar você que te nasceram na cidade. Mesmo aquele tô bairro Kangambo de Malanji também é quê? Comparando com Kangandala onde me nasceram ainda é mais melhor. Vai conta já.
Belucha mão na bochecha e outra nas costas, como que aquecendo o mona que trepidava de frio. Caminhavam ao chafariz.
- Pronto já Joana. Só não te arrespondo mais porque eu é que dei iniciada de abusar teu bairro. É assim. Estás a ver o vizinho Januário, nê? Disseram ambulância foi em casa dele lhe buscar.
- Belucha, assim é quê? Será que fez acidente? Nós, em Kangandala, se pessoa vê ambulância foi socorrer acidente na via.
- Mas aqui é Luanda, Joaninha. Não andas a ouvir Covid? Disseram acusou!
- Má, má, má! Belucha, faz favor. Viste bem? Ouviste mesmo bem ou estás só incriminar homem lheio?
- Vi a ambulância, Joaninha. Também ouvi aqueles moços que ficam na rua a falarem que agora quando ambulância te vai buscar é porque acusou covid-19.
- Belucha, sei mesmo que você estudaste mais do que eu que parei na terceira classe e também vieste já há muito tempo em Luanda. Mas vou te dizer, minha irmã. Discriminar as pessoas é crime. Pior do que isso é estigmatizar que tem doença que não foi buscar. O tal corona não é como a sida. Às vezes lhe encontrou mbora no trabalho, assim como pode ser mentira.
- Tens razão, mirmã. As pessoas, às vezes exageram.

terça-feira, setembro 15, 2020

UM VIVER RURAL À VOLTA DO ZANGO V

Sem as obras invasoras de um terreno que devia ser reserva da cidade ou tampão e sem o táxi colectivo azul-e-branco, o percurso da mae e seus quatro filhos podia enquadrar-se em um "caminho do mato" onde o atalho estreito não permite andar lado a lado.

A rua em referência (na imagem) é paralela à Principal do Zango 5, como é tratada.
Não pude ver o rosto da senhora, senão a silhueta captada distante pela objectiva do meu telefone.
Fez recordar-me a avó Kilombo, nos anos 80 do século XX, após perder o marido numa batalha contra uma doença de fórum respiratório. Tinha quatro filhos, sendo que uma estava à guarda de um "irmão", em Luanda, vivendo com o 1°, a última e mais uma.
Sem marido e sem ninguém adulto para cuidar dos outros, durante suas ausências de curta duração, a avó Kilombo, ao tempo ainda trintona, "viajava" com seus três filhos, sempre que tivesse necessidades. E o cenário era exactamente como mostra a foto: a kasula no colo e outros dois irmãos se revezando em pegar o pano da mamã.
Caminhavam. Ela com uma kimbamba à cabeça e a kasule ao colo. Os infantes, cada com o seu peso: afome, a sede, a distância, a ferida do sapato apertado ou pé descalço, uma galinha para ofertar o anfitrião, uma garrafa de água ou kisângwa ou outra coisa útil à viagem. Também podiam ser dez ou mais quilos de macroeira à cabeça do filho primeiro.
A "mamã do campo" não só me levou ao Libolo dos anos 80. Fez-me também viajar pela Lunda e pelo aforismo "kusema ca ndemba", onde o galo fecunda e vai cuidar unicamente de si, enquanto a galinha, coitada da "calhi", cuida dos pintainhos!
E, vamos ainda tendo o "mato" a viver na cidade, dada a prevalência dos hábitos e costumes campestres de pessoas forçadas a viver na grande cidade!..

terça-feira, setembro 08, 2020

NGOYA: CONSTRUTO INACABADO OU ADIANTAMENTO NA ACULTURAÇÃO?

Um dia depois do Live no Kubico que juntou Kumbi Lixya, Man-Prole e Bessa Teixeira, um dos programas de entretenimento da Televisão que "É nossa" estendeu o sinal ao Sumbe para perguntar ao jornalista local sobre o impacto do Live na capital cwanza-sulina, tendo a jovem apresentadora iniciado por perguntar "como se dizia boa tarde em língua local".


O jovem, sem pestanejar ou recorrer ou que já teria ouvido bastas vezes, atestou que "em ngoya é mesmo mboa tali" , quanto a mim, uma kimbundizacão de boa tarde (Pt).
Perante tal desfeita aos mais velhos, cultores de nossas línguas (principal elemento dignitário de um povo), aos investigadores e cientistas das línguas; tal "desfeita" e tão banal quanto foi só me pode levar às seguintes hipóteses:
a) Que a língua ngoya que se apregoa existir no Sumbe, e que pelas ondas da RNA pretendem tornar extensiva a todo o Kwanza-Sul, é uma invenção inacabada, portanto, inexistente;
b) Que, caso mui remotamente tivesse existido, seria a língua angolana mais avançada na sua perda de identidade ou acomodação de lusitanismos, ao ponto de deixar de conter no seu léxico uma simples saudação; ou, na pior das hipóteses;
c) Que tal povo e língua "ngoya" são pós-dependência de Angola e a tatear ainda na construção e composição do seu "corpus identitário" em que se posicionam a língua autónoma e demais elementos identitários periféricos.

Uma casa inacabada é um projecto que pode dar em casa ou em nada. Portanto, não façam os incautos "pescar" um pedaço de canoa náufraga, confundindo-o com bagre. As línguas têm léxico próprio, têm vida...

Eme nganange. Eye phe? 

Muphe nga, kwimuna kwi?

terça-feira, setembro 01, 2020

EUFEMISMO, DISFEMISMO E JORNALISMO

Só para situar: eufemismo e disfemismo são figuras de estilo ou de retórica. A primeira visa encontrar palavras brandas para descrever uma situação cujo impacto pode ser alarmante. A segunda é o oposto. Sem ser hipérbole (exagero), amplia a intensidade da ocorrência, dando-lhe maior impacto "sentimental".

O jornalista que faz jornalismo é aquele mano ou mana que deve evitar adjectivos, eufemismos e disfemismos, servindo-se da linguagem coloquial.
Depois de nossas autoridades sanitárias se terem servido de disfemismo, em relação àquilo que seriam, eventualmente, os casos de covid-19 a essa altura, o que felizmente não está a acontecer, optaram por um eufemismo para se referir aos perecimentos causados por essa pandemia. Surgiu a expressão "foi a óbito de covid-19" que tem soado "foi ao óbito ..."
Dai que, de tanto ouvir "foi ao óbito" a septuagenária Kilombo, invisual mas atenta à televisão e que se gaba de "ouvir como se estivesse a ver", se tenha perguntado.
- Mas então o mesmo governo que proíbe ir aos cemitérios é o mesmo que permite as pessoas ir procurar óbito? Andam a ir procurar comida ou bebida?!
Tem razão, a meu ver.
Na conferência de imprensa diz-se ou pelo menos ouve-se "foi ao óbito de covid-19" e alguns jornalistas, sem olharem pora aquela regra que manda "falar barato sem cair no populismo", também vão reproduzindo "foi ao óbito".
- Mas foi lá fazer o quê com essa doença perigosa que anda a matar muita gente?! - Questionou-se ainda a velha Kilombo.
Então: morreu, faleceu, pereceu, ou "foi ao óbito"? Já não basta a "kikonda" perdeu a vida?

sábado, agosto 29, 2020

O TROÇO DAS CUECAS

 O TROÇO DAS CUECAS

Tenho estado a lutar contra a subida, embora lenta, do meu peso, submetendo-me, sempre que possível, a uma caminhada matinal ou vespertina de aproximadamente dez quilômetros ao dia.

Estando na cidade do Zango V, tenho um itinerário que vai de minha casa, Quarteirão P, ao Zango IV, ligação à estrada Kalumbo-Viana.

É a meio-caminho, imediações da Estação de Tratamento de Água (ainda em construção) que, há dois dias, meus olhos são brindados (involuntariamente) com essas pérolas.

Ontem foi uma cor-de-rosa amarrada. Hoje é esta (na imagem). O que se estará a acontecer nesse espaço?

E, tal como quando se regista um acidente de viação, os transeuntes param alguns instantes para ver, tirar as medidas e reter a "matrícula", seguindo-se a indagação:
- De kenhêsse ruca?!