Translate (tradução)

quarta-feira, setembro 29, 2021

VIAGEM DE SONHO A KALULU

Realizada num 15 de Setembro, já leva século, quase. Não existia ainda a EN120 ou, para ser mais preciso, sobre o largo e caudaloso Kwanza, o novo atalho, desenhado entre o Alto Dondo e o Fortim da Kibala, não possuía ainda travessia. Pretendia-se encurtar a distância entre a crescente capital e a florescente Nova Lisboa de então. Ao pôr-do-Sol emergia a capital do novo distrito, Benguela Velha.

Saudoso do meu Libolo, fiz-me à estrada, na minha Power Glic "olhos de águia". Luanda-Alto Dongo-São-Pedro foi um mimo, dançando ao som roncaresco da bichona.
Chegado ao Kwanza, enorme e apressado de uma viagem que o leva do Citembo a sul de Luanda, deparei-me com a ponte Filomeno da Câmara. Comprida e majestosa. Alta sobre um rio rápido e pedregoso. Quão engenhosos terão sido os seus obreiros!
- Ei-la! - Gritei para mim mesmo, fazendo-se eco, rio abaixo. E a ponte era longa!

Transpu-la. Era Kalulu o destino e Kabuta, do café negro, forte e quente, o próximo marco sem paragem nem narrativa. À passagem, far-se-ia noite, num atalho curvilíneo sem alcatrão. E assim foi.
Ao raiar do sol, Kalulu à espreita. Quem não te vê?!
Como tu apenas a capitalíssima do Distrito de Kwanza-Norte, Golungo Alto, que o elevar do comboio a longínquas terras de Njinga pretende levar ao ostracismo. Maldito comboio de 1917!
- Que não nos venham a nós dias nefastos. Soliloquiei.
- A nós basta a Filomeno da Câmara que nos leva ao Huambo e terras inimagináveis dest'Angol'amada! - Cogitei premonitório.
Cheguei a Kalulu, pois claro! Passei a Kapopa e visitei a Missão e o Musafu inteiro. Espreitei a Mbanze dos Dambos. Retornei, pela Pedra Santa, sempre. Alonguei-me no alcatrão, quase sem a cor inicial que fumegava aos olhos negros de pretos cansados de contratado. Passei pela Fortaleza e o Palácio que se esconde em sua axila abaixo. O posto administrativo do Concelho é à direita, contígua à Fazenda onde exploradores de negros depositam moedas lacrimejantes.
Reparei com minúcia as casas da vila, erguidas por brancos da metrópole ou filhos nascidos cá. Albergam hoje mestiços que se dizem donos disto e d'aquilo, da terra também, mas que se negam, na vergonha mesquinha, negros ou brancos. Preferem um termo intermédio!

Mais adiante é o Cassequel, corruptela de areal extraído do materno Kimbundu. A Mbanze é mais adiante.

Sem mesmo pousar as malas ou limpar a poeira agarrada à Chevy como parasita faminto em hóspede corpulento, pus-me a conversas exploratórias, de bar em bar e de esquina em esquina.
- Olá, nosso patrício! Aceita café?
- É da Kabuta ou do Lwati? Eu aceito, nem que seja da Kisala!
- Tem o Kisongo ainda a Divisão de Agricultura e Florestas? Tem a Munenga o dendém e o girassol? - Café-palavra-café. Fui intercalando.
E nas conversas, a vila que é pequena, rua e meia, no dizer de nossos asoko¹ kibalenses, parecia grande. Os falares depreciativos denunciavam a existência de quatro blocos: o do Hagâcê, o do Cêcê, o dos nativos autóctones da Mbanza e o dos mulatos herdeiros. E parecia que todos os prosélitos se digladiavam, mesmo sem mando ou complacência dos patronos, tirando os mulahatu² e os descendentes de negroides que regaram cafezais com lágrimas e suor.
- Somos os mais fortes, os donos, os mais poderosos, os que mais fizeram, os que mais fazem, os que sempre aproveitaram a terra, os que dão de comer, os que mijam grosso, os que...
- E tu, forasteiro, em que ala te enquadras? - Provocou-me uma cobiçada rapariga de cor cremosa que sugava para si todos os olhos. Era assim onde passasse, embora tida como sem ala.
- Sou de cá. Dos que defendem o todo como união das partes. Sou dos que pedem alcatrão para São Pedro-Kabuta-Kalulu-Kibala. Dos que se indignam com o porvir que há-de-ser com a nova travessia no Kyamafulu! - Respondi amável. Porém, quando me preparava para acolher o abraço dela, despertei da viagem. Era sonho?!
=
¹- Plural de Kis(s)oko, homólogo.
²- Relativo a mestiços ou mulatos.
Obs: texto sujeito à revisão.

terça-feira, setembro 21, 2021

ANDULO QUE NÃO FALA UMBUNDU

A reabertura de Luanda ao país, dois anos depois de chegar a covid-19, está a ser vivida com grande intensidade. Talvez pensando na experiência da "mini-paz", aquela de 1991-92 que trouxe a falsa quimera de "twaliyeva, twayovoka", a que se seguiu um fecho pior até 2002. O acordo de Lusaka de 20 de Novembro de 2004 e o "Gurne" que se lhe seguiu foram aborto de mini-paz e nenhuma se iguala a essa que estamos com ela.


Desta vez, as manas e os manos que já viveram nas décadas de guerra pré-eleitoral e todas as mini-paz, decidiram:
- Se abriram Luanda, vamos aproveitar sair, ir passear, visitar as famílias, ver monumentos, fazer turismo, revitalizar-se longe dos filhos, etc.
Uns estão a sair mesmo com turismos, uns é com pick ups e jeeps. Outros é mesmo com e em camiões. O sarcov-2 e sua pandemia ainda estão a ser ignorados (mas, cuidado)!
De Miconje à Foz do Kunene e do Lobito ao Lwaw, as estradas variam entre o muito bom, o bom, o razoável, o dá para chegar ao destino e o horrível a precisarem de cabeça pensante e mão trabalhadora para conseguir dinheiro e refazê-las.
Foi nesse turbilhão de ideias e de "vamos aproveitar" que a minha "ndona" disse para mim:
- Ó coiso, você num tá de férias?! Ainda vamos ao Andulo!
Para quem esteja em falta, qualquer ordem é só já acatar. Peguei as malas e pu-las no carro. Tutulukutu! Nem tempo tive para em pensar em tal Andulo em que nunca estive.
Quando tentei reclamar, só um pouco, a procurar mostrar que existo, a senhora ansiosa em ir à sua terra "natal", gritou-me um "vamos com Gêpess". Nem sequer perguntou se o telefone tinha saldo de dados para alimentar o GPS. Fomos. Andar era só andar.
Depois de duas horas e meia ao volante, ergui a cabeça e vi uma placa escrita QUIBALA NORTE. A mulher também retirou os olhos do whatsapp e exteriorizou um estalido bocal (na minha língua é muxoxu).
- Fiiuuu! Não estavas só a temar que não conheces o caminho? Estamos a chegar à Quibala. Depois da Vila, entra pelo caminho do Mussende. - Ordenou.
Acelerei. A estrada estava boa. O velocímetro parecia decidido em ficar entre os 120 e 140Km/h. O motor contava uma canção alegre. Parecia empolgado. Não demorou, encontramos outra placa: ANDULO.
A mulher falou para mim, desta vez, com carinho.
- Ó marido, ainda chegamos!
- Chegamos onde?
- Não viste a placa?
- E as casas partidas, e o bunker, e a administração? - Lembrei-me da guerra e do tempo em que na recruta adoptei a alcunha de Matoumorro e comecei a rajadá-la com perguntas.
- Calma. Tudo isso está lá à frente. - Respondeu-me, ao que de imediato baixou o vidro para saudar:
- Ndati, ó manas, ainda passaram bem?!
À saudação recebeu silêncio apenas. Achei estranho mas ela relevou, atestando que "o Andulo estava a ser invadido por gente estranha que não falava umbundu" e podia tratar-se desses grupos trazidos pelo comércio e pelo garimpo nas margens do Kwanza.
Seguindo o ritmo da canção da máquina, voltei a acelerar. Não tardou, encontrámos uma vila. Os povos falavam uma língua bantu do norte de Angola. Algumas palavras me pareciam familiares. Eram próximas do Lingala. Mas outras se aproximavam ao Kimbundu.
- Andulo por aqui?! A mim parecia estranho. Menos a ela que fixou o olhar nos destroços duma residência que parecia majestosa num tempo a caminho de meio século.
A falar com os botões, fiquei à busca de respostas sobre o que fora aquele edifício de dois pisos, deitado abaixo, antes de ter sido transformada em simples pedaços de betão e ferros retorcidos. Vieram-me à memória a história e estórias de 1975 quando o norte de Angola foi disputado pela FNLA e pelo MPLA que proclamou a RPA.
Para a mulher, estávamos a entrar no Andulo. Apenas quando viu os as redes, os pescadores, as canoas estendidas ao sol e o extenso mar se deu conta de que estávamos num "Andulo" em que não se fala Umbundu.
- É Nzeto, afinal! - Concluímos.
Um amigo ambrizetano (pois nasceu antes do 25 de Abril), disse-me já em Luanda quem foi que dinamitou o edifício que conta a história da guerra na vila de Nzeto.
- Até 1975 e alguns anos depois, era edifício do Comércio. Depois, terá sido convertido em Sede Municipal do MPLA. Foi durante a insurreição pós-eleições que as milícias do partido perdedor invadiram a vila e dinamitaram o edifício. - Contou o Nelson.
Vieram-me outras memorias do Libolo. Junto ao Cine há um edifício que era de dois pisos cujos "pés" foram estropiados, fazendo-o cair sem possibilidade de ter proveito. O Laboratório da "Escola Técnica Preparatória", o Tribunal dos anos oitenta e a esquadra policial tiveram a mesma sorte, em Kalulu.
Consciente de que estava no seu país, extenso e diverso, mas não no seu Andulo bieno, a mulher soltou um "e agora"?!
- Pois é. Agora é seguir a estrada ao encontro de novas "descobertas". Há Mbanza-a Kongo, Noki, Soyo e Matadi pela frente!

quarta-feira, setembro 01, 2021

A RÁDIO E OS "FANTOCHES" DA MINHA VIDA

Em 1977, o meu pai mandou comprar o seu segundo rádio em Luanda. Vivíamos ainda em Kitumbulu (fazenda de meu avô paterno). Era um Philips cinzento, de 4 pilhas grandes, made in Singapura, lembro.

Mesmo sem ladrões por perto, António Fernando Dambi havia inscrito o seu nome na parte superior. Tal receptor, na altura em ondas curtas e médias, durou até 1983, um ano após o seu passamento, desconhecendo-se se o meu finado irmão Fernando o levou como herança única ou se e deixamos perdido nas fugas constantes dos homens da UNITA.
Essa história do rádio vem para trazer à memória o tempo em que me começou a chegar ao ouvido, via rádio, o  termo fantoche.
Certa vez, perguntei ao meu pai o que era fantoche, ao que me terá respondido que "eram bandidos da Unita".
- A Unita é o quê? Eles têm fantoches?
- A Unita mesma é que é fantoche? - Respondera o homem que era de poucas falas e confesso militante do MPLA.
No meu tempo de filho, filho era filho e tinha os seus irmãos, primos e amigos para brincar e ir detalhar. O pai era pai e tinha também os seus irmãos, tios, primos e amigos com quem privar. Pai era pai e não era "amigo do filho". Por isso, contentei-me que "fantoche era Unita e a Unita era fantoche". Era o que aquele aparelho inteligente dizia todos os dias às 13, às 19 no Angola Combatente, e às 20horas.
Para "poupar pilhas", o meu pai ligava o rádio nessas horas e não havia noticiário em que não se falasse de fantoches e bandidos que "eram a mesma coisa!"
Em Setembro de 1979, fui matriculado na "pré-kabunga". Parecia que os fantoches tinham crescido como eu. Na escola, o professor e os manos da quarta classe falavam quase todos os dias sobre os fantoches. Ora abatidos, ora violaram mulheres grávidas e mataram velhos, ora minaram e explodiram pontes e cidades. E nós, os manos mais novos, apenas "seguíamos bala" de conversas codificadas para nossos parcos conhecimentos lexicais: abaixo fantoche! Viva a revolução e o internacionalismo proletário!
Tais conversas deixaram-me mais confuso ainda, ao ponto de voltar a perguntar:
- Pai, proletário é o quê e internacionalismo é o quê?! - Eu era uma máquina de perguntar e ele gabava-se de ter um filho ávido em saber e que crescia com sabedoria. Por isso sempre profetizou que eu seria professor.
- Luciano, ouve bem! - Chamou-me à atenção. - Proletário sou eu que trabalho na fazenda. Todos os trabalhadores são proletários. - Explicou, curto e sem mais detalhes.
- Está bem, papá proletário! E internacionalismo é o quê, pai? - Voltei a indagar, insatisfeito.
António Fernando Dambi agachou-se, como sempre fazia, para que eu subisse ao seu ombro e fôssemos andando. Ele caminhando e eu na "digweza".
- Já viste os camaradas cubanos, nê? - Fez-me recordar.
- Sim, camarada pai proletário! Andam a passar com as colunas (carros militares).
- Pois é. Internacionalistas são os cubanos que saíram da terra deles para vir nos ajudar a lutar contra os fantoches. - Explicou.
- Mas, os camaradas fantoches também são muitos? Têm muita força que nós não "lhes" aguentamos?
O jovem, 39 anos, parecia desinteressado ou eu o estava a perguntar coisas que no seu entender "ainda não eram para a minha idade".
- Olha aí os pássaros. São bonitos nê?! - Tentou distrair-me e ver se eu mudasse de conversa. Porém, lembro-me, que voltei a insistir.
- O papá ainda não me disse se os fantoches são muitos e têm muita força...
- Luciano, os camaradas internacionalistas vieram nos ajudar para não demorarmos a aniquilar os fantoches.
Mal terminou a explicação, sacou da sacola uma banana e deu-ma. Sabia que eu gostava de bananas. Talvez voltasse a pedir mais uma e com banana na boca não perguntaria sobre fantoches e internacionalistas.
Em 1989, quando passei para a sexta classe, ganhei o direito de comprar, na papelaria da escola Kwame Nkrimah, um dicionário, o primeiro da minha vida que era meu. A viver no internato da missão católica de Kalulu e com tempo de sobra para leitura, comecei a "mastigar" o livro.
Descobri que fantoche era um boneco animado por uma mão humana ou por cordéis.
- Porra! - Exteriorizei. - Mas então os unitas são bonecos?
Levei tempo para compreender que era uma alusão metafórica. Uma comparação entre os revoltosos alimentados por agentes externos, tal como os bonecos-fantoches dançam, e a perseguir uma agenda que era de terceiros, o imperialismo de que, dizia o rádio, eram agentes.
O dicionário e o tempo levaram-me a descobrir a expressão, caudilhos, que os fantoches usavam, quando abriram a sua rádio ou usavam a rádio do Peter Bota.
Não é que caudilho é uma "ofensa" boa?! Descobri que a figura do caudilho é fisicamente vigorosa e disciplinada, demonstrando experiência militar e conhecimentos que inspiram as massas a segui-lo e respeitá-lo (aproximando-os do populismo). Dizia-me o Dicionário Prático Ilustrado, de que não sobra folha, que o caudilhismo está relacionado à personificação carismática de um líder.
Senti saudade de ter o meu pai de volta e perguntar-lhe por que é que a guerra entre fantoches e caudilhos estava tão demorada, mesmo com os apoio dos camaradas internacionalistas cubanos. Mas ele já tinha partido para a sua viagem sem regresso. Compreendi que só mesmo os livros e o ouvido atento às conversas dos manos que tinham estudado muito me dariam as respostas.
Antes de ingressar no ensino médio, por via de um teste de aptidão, em 1993, tomei contacto, numa leitura que estava a fazer de uma revista Spunik, o termo guerra fria.
Eu já tinha sobrevivido a dois ataques da UNITA (1984 na Munenga e 1989 em Kalulu). Tinha visto e ouvido falar em valentes sovas dadas aos fantoches pelas gloriosas Fapla, pelos camaradas internacionalistas cubanos e camarada amigos da SWAPO. Sabia que nessas guerras morriam pessoas e as balas eram quentes. É por isso que fugíamos da aproximação dos fantoches ou dos seus ataques. Como é que, afinal, havia guerra fria?
Fui ao dicionário para perceber que era aquela guerra que os comunistas, nossos amigos, e os imperialistas, amigos de nossos "inimigos", faziam no nosso solo pátrio.
- Afinal, com a tal de guerra fria, todos fomos fantoches?!
O camarada proletário António Dambi devia estar vivo para discutirmos essas coisas.
Melhor, foi quando entrei para a universidade, em 2000. Eu com o pico ainda encravado na garganta, por conta daquela resposta de que "proletário sou eu que trabalho na fazenda", descobri que o meu pai estava entre a certeza e incerteza.
Sete filhos gerados em 42 anos era, na verdade um proletário, um feitor de prole. Porém, havia trabalhadores sem filhos e proletários que não trabalhavam. É outra metáfora dos sindicalistas comunistas que aproxima o trabalhador mal remunerado aos meros "fabricantes" de filhos que serviam como soldados em guerras imperiais.
Comprei um Dicionário Enciclopédico e escrevi na segunda folha interior:
- Oferta póstuma a António Fernando Dambi.
É pena que nunca o lerá e, mesmo que voltasse, os netos cuidaram, seguindo meu exemplo de pesquisa, de folhear e desfolhar o mestre mudo da minha consolidação.
Ou ele sabia que o recrudescimento do conflito militar entre fantoches faria deles meros reprodutores para alimentarem a guerra fria?
- Pode ser que ele tivesse razão!

Publicado pelo Jornal Cultura, 02 MARÇO 2022