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segunda-feira, abril 15, 2024

AS "VIÚVAS" DE DEIRA

_ Por que há tantas viúvas em um país próspero e sem guerra? - Ter-se-ia perguntado Mangodinho se nesse dia não usasse da circunspeção, enquanto encomendava uns trapos em Deira, uma área localizada na região leste do Dubai, que é das partes mais antigas e históricas da cidade, também conhecida por seus souks (mercados tradicionais), como o Gold Souk e o Spice Souk, bem como por suas ruas movimentadas e vida comercial vibrante.

Aos olhos de Mangodinho, é uma espécie de São Paulo ampliado e melhorado, onde se expõem à venda, vestuários, maquinarias diversas, electrodomésticos, cosméticos, enfim.

As supostas viúvas, no imaginário dele, andavam em grupo, cobertas do cabelo às sandálias, mas falam alegres como se a vida lhes corresse bem e compravam vestuários de uma seda bem elaborada e a bom preço.
_ Isso nê possível! _ Exclamou, desta vez, de forma audível.
_ Nê possível o quê? - Indagou Lito com quem andava.
_ Já viste essas mamãs que enterraram maridos ou parentes próximos? Ou são todas irmãs que enterraram o pai que era dono de muitos bois, café, tractores e camiões?
_ Estás a supor que sejam órfãs de um ricaço daqui? - Brincou Lito que levava Mangodinho sempre na galhofa _ veja bem. O preto que tu conheces como luto aqui pode ter outro significado. Já que compraste um "buba", que dizes ser de última geração, vamos ainda ao motor de buscas.
Na cultura ocidental, o preto simboliza tristeza, luto e morte, mas é também sinónimo de mal e pessimismo. Pode ainda ser entendido como elegância e formalidade.
Em África representa vida e renascimento, além da morte ou ainda fertilidade.
Na China, quando vires alguém vestido de cor preta, está a transmitir estabilidade ou poder.
Os hindus, uma religião indiana e praticada também em outros países da Ásia a cor preta é associada ao Senhor Shiva, um dos principais deuses da religião.
_ Aqui, e em outras partes onde se professa o islamismo, essas roupas chamam-se niqab ou burca e a peça que cobre da cabeça ao pescoço, é o hijab. O niqab preto significa que a mulher é modesta e está a proteger a sua privacidade. Não é viúva como no Sambizanga ou Kalulu. - Explicou Lito que tinha mais anos de luz do que Mangodinho que tateava ainda no conhecimento de outros povos e culturas distintos dos seus conterrâneos.

segunda-feira, abril 08, 2024

10ENCANTADOS NA ÁSIA

Mesu-a-Kekele e Inama Yendele são irmãos biológicos de mesmo ventre, embora trazidos ao mundo com elevado espaçamento. Dizem mesmo que Mesu-a-Kekele, o mais velho, tem idade para ser pai do irmão kasule, Inama Yendele, que é 25 anos mais novo.

Nos seus 50 anos, 33 dos quais vividos com intensidade laboral e experiência acumulada em viagens pela terra de nascimento e mundo circundante, Mesu-a-Kekele é, pode dizer-se, um homem de meias-aviadas e carregador de várias experiências de vida. Bem-apessoado, costuma ser apelidado de clever e visionário. Já o seu irmão derradeiro é um tanque aberto ao conhecimento, um explorador de inovações e poço fecundo de força, mostrando-se sempre pronto a acompanhar o irmão nas viagens de negócios e compras que nunca são de pouco peso e volume. Os dois se constituem em chave e fechadura, daí serem sempre vistos juntos na última dúzia e meia de anos.

No dia em que Mangodinho os viu na Ásia fazia frio intenso e sol preguiçoso. Era domingo sem o vai e vem de pessoas apressadas como ocorre de segunda a sábado. Nas árvores sem folhagens os pássaros piavam sem intensidade, pareciam cansados ou sufucados também pela temperatura que fazia desenhos na pele dos humanos. Nos restaurantes os frequentadores lagarteavam-se aos raios de sol que eram crianças para um termómetro que exibia o mercúrio a 5 graus celcius.

A capital do país da Grande Muralha e da Praça da Paz Celestial "Tiananmen" eram para Mesu-a-Kekele o mesmo que um cumbu¹ para o dono da casa. Conhecia-a bem. Ao contrário do mui viajado irmão,  Inama Yendele fazia a sua segunda viagem àquelas terras, desta vez mais exposto e disposto a caminhar e explorar o que se lhe apresentava aos olhos.

Ó jovem, estás a ver, não é? Esses gajos, mesmo pequenos, são capazes de fazer coisas monstruosas e esteticamente encantadoras. Vês? _ Explanava "o Senhor que Vê" atiçando a admiração do jovem "Pernas que Andam".

_ Ó mano, a única coisa aqui que me dá prazer é estar consigo. Jurumemu, é única coisa. Viajo pelo que há no nosso país e tento situar-me aqui. Há muito de anormal.

Mesu-a-Kekele franziu o rosto. Meteu-lhe mibangas atravessadas e limpou os óculos para aferir se ele estava a enxergar mal ou o irmão estava a ironizar.

_ Mas, ó rapaz, estás a dizer que fiz má escolha em virmos passar férias nessa terra? Ou são aqueles reles pedreiros que se revezam nas camas dos estaleiros que não te saem da cabeça? Desperta, irmão. Essa é a China real. Aqueles são cópias e escórias!

Sem pressão na fala. Aliás, Inama Yendele é descrito como lento a falar e ágil no passo, começou a descrever os seus 10encantos.

_ Veja bem mano, viajámos de carro mais de duas horas. Tirando as mudanças de direcção sem piscar, o que na nossa banda tem sido causador de acidentes, o mano sentiu algum buraco? Não vi semáforos apagados, nem montinhos de areia nas bermas, nem lixo, nem contentores a transbordar com porcos e ratos a desfilarem. Isso é para mim uma anormalidade perante o que estou habituado. Veja ainda, entrámos num shoping. Eram perto de 30 andares. O prédio da frente tinha 80 ou mais, fazendo das nossas famosas torres da Ngimbi uns autênticos kitungu². Subidos ao cume da torre de mais de duzentos metros e não vimos casotas de chapas no meio da cidade, nem lixeiras. O mano acha isso normal? Anteontem fomos àquela província cujo nome aparece em muitas quinquilharias. O rio deles, que é igual ao nosso Kwanza, corta a cidade pelo meio. Nos dois lados estão edificações que fazem os olhos se perderem na altura da floresta de prédios cheios de jogos-de-luzes e nevoeiro. É isso normal? E veja bem, mano. Às tantas, já não sei se trouxeram o rio à cidade ou a cidade abraçou o rio. Está a ver aquele prédio com árvores naturais por cima? 

Inama Yendele pôs travão nas perguntas e na fala que se fazia longa para sorver um pouco de ar que já fazia falta aos pulmões. Era também uma forma de confirmar se Mesu-a-Kekele se sentia confortado ou aborrecido com o seu discurso.

_ Ó rapaz, estou a seguir a tua explanação. Quero ouvir até aonde queres chegar.

_ Então o mano acha que aquela estação de comboios, estupidamente grande, maior do que todos os aeroportos que já pôs a visitar é normal? Repare os detalhes dos edifícios, todos encurvados, uns com abóbadas no meio, parecem misangas³, outros parecendo que vão cair, estradas no fundo da terra como se tivessem sido escavadas por toupeiras, em cada vintena de adultos apenas uma criança, isso é normal? E olha, mano, tenho estado a reflectir bastante sobre aquela especialização em Arquitectura que me ofereceu. Acho que vou abandoná-la. Espero que não se chateie.

_ Vais abandonar uma formação que te pode dar nome e dinheiro? Deves estar a sabular, ó miúdo. _ Atirou-lhe o irmão quase impaciente. _ Explica-te lá e deixa-te de divagações de filósofo de bwala.

_ Ó mano, vê ainda esses prédios todos. Lhe parecem clássico-romanos ou helénicos?

_ Não. Nada a ver.

_ Parecem góticos ou renascentistas? 

_ Nada a ver.

_ Então, kota. Isso é futurologia. Eles implantam o inexistente. Viajam pelo futuro. Nós é que estamos sempre a estudar o passado, a recuar séculos como se a vida e a ciência estivessem atrás de nós. É por isso que vou abandonar a especialização em Arquitectura. Ou o mano acha isso uma normalidade para a nossa anormalidade?

Mesu-a-Kekele, homem que já vira quase tudo em sua vida, respondeu-lhe apenas com um abraço e uma frase sussurrada ao ouvido.

_ A vida é futuro. Vai em frente quem se antecipa no futuro!


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1-Lê-se tchumbu. Pequena horta contígua à casa.

2- Palhota

3- Lê-se missangas

segunda-feira, abril 01, 2024

PERDIDOS NO DUBAI

Desde a sua primeira ida, há já bons pares de anos, que Mangodinho se negava em contar as suas peripécias nos Emiratos. Hábil inventor e contador de cenas, de sua boca já saíram das mais ousadas às mais arrojadas narrativas, umas verdadeiras, umas de ouvir contar e outras ainda paridas pela sua fecunda imaginação de filósofo de aldeia rural, mas nunca se atreveu a contar ou escrever sobre a vida nos Emirados.

O sol que os recebeu naquele dia de descanso semanal obrigatório era rebelde. Isso mesmo. Nos céus azuis parecia envergonhado, mas o calor que passava era de 36 graus ou mais. Mangodinho, palito na boca, a picotar nos dentes cariados os pedaços de pão que comera no avião, ia acompanhado de Lito, amigo há já nove anos que conheceu no trabalho.

Chegaram bem. Felizmente. O destino foi Dubai, aquela terra rica e vislumbrante que há cerca de cinquenta anos foi território seco e arenoso de pobres pescadores e montadores em camelos, um nada comparado às nossas bwalas aos olhos de hoje.

_ Ó mano, vamos ainda ao Mall procurar algo para comer. _ Convidou o Lito que se dizia apossado de fome.

Andaram pelo imenso shoping uns bons quilómetros à procura de restaurante. Melhor, prevenindo-se de uma possível distração que os levasse a não reconhecer o ponto de saída, Lito e Mangodinho decidiram, antes, recolher as coordenadas geográfica via Google. Nisso, o pensamento foi simultâneo e até pareciam ter sido inspirados por um deus daquelas terras recomendadas ao Ismael da Bíblia e Corão.

Cima a baixo, ora pelas escadas rolantes, ora pelas escadas normais que se achavam largas, limpas e arejadas, percorreram o gigante shoping em busca de pitéu que acabaram encontrando quando já forças inexistiam para mais andar.

_ Epá, vamos comer o que houver. Já não tenho pernas para mais procura, nem energia que permita mais espera. _ Disse desta vez Mangodinho acossado por uma dorzita na perna defeituosa.

Lito, homem de massa muscular a apontar os cem ou mais quilos, concordou jogando o seu corpo pesado sobre a cadeira que se achava ao lado.

_ Would you mind give us the menu, please?! _ Indagou Mangodinho ensaiando o seu inglês aprendido na "South" em Sea Point.

_ I'm sorry. It's our breaking time to pray. We'l be back at 6h30. _ Informou o jovem garçon (waiter na língua internacional que eles se esforçam em aprender e atender os visitantes de longe).

Mangodinho e Lito entreolharam-se.

_ E agora? _ Questionou Lito.

_ Bem, eles estão no Ramadão. Se é break time deve ser geral. Só temos uma saída que é aguardar.

Com um lago artificial pela frente onde canoas e pequenas embarcações de recreio desfilavam, os trinta minutos voaram e deram lugar a um impressionante espetáculo de jactos de água e luzes projectados piscina abaixo.

_ Epá, esses gajos estão longe, meu mano. _ Admirou Lito a gaguejar.

_ Temos de registar isso e mostrar aos miúdos lá na ngimbi para começarem a sonhar com o futuro que para os outros já é presente. Admira-me como é que os outros fazem arquitectura futurista e nós, nas nossas escolas de arquitectura e engenharia civil, recuamos ao período helénico, clássico-romano, gótico e outras antiguidades. _ Respondeu Mangodinho, algo filosófico. 

O momento levou-o ao tempo em que estudou e era apaixonado pela história das civilizações e filosofia.

Não demorou para que o waiter lhes desse o pitéu que devoraram com um apetite de quem vive escassez prolongada.

Barriga atendida, relógio avançado na hora, corpo reclamando repouso de uma viagem que tinha ainda milhares de léguas pela frente, a decisão estava tomada: regressar ao hotel pelo caminho gravado nos telefones.

Entre recordações de letreiros e pessoas que se revezaram nas lojas e entroncamentos, caminharam um longo caminho que mais se parecia labirinto. O Google os levava para mesmos lugares, sem nunca encontrarem a porta de entrada do hotel. Foi depois de já não restarem forca nos pés, nem comida no estômago que decidiram parar um daqueles carritos eléctricos que ajudam os idosos e as crianças a chegarem mais cedo ao destino, pedindo que os levasse de volta ao oculto hotel. 

Lito, anglófono reconhecido e com muitos anos de Damaralândia passou à frente da tentativa.

_ Good afternoon, Sir! Please can you ride us to the Hotel? We lost the way.

Diligente, filho alheio, o homem mandou-os subir como faz com os velhotes e crianças cansados de tanto caminhar.

_ Come on. _ Atirou sorridente.

Não é que a entrada traseira ficava a não mais de trezentos metros? Há momentos em que não basta dominar a língua universal e o caminho do Google. É preciso ser vijú também!

quinta-feira, março 28, 2024

UM NOVO EX-LIBRIS EM MAPUTO

Maputo's bridge, ofcourse! 
A Ponte que liga as duas margens da Baia é hoje um ex-libris de Maputo, enlevo que o visitante que chega à capital moçambicana pode contemplar à janela de um avião, convidando-o a percorrê-la em terra e desfrutar da sua beleza e robustez. Aconteceu comigo.

_Que bela criação humana! _ Disse para mim mesmo, fazendo-a, imediatamente, constar dos pontos a visitar nas 48 horas em Moçambique, o que aconteceu no segundo dia da minha estada por terras de Machel.

Solícito, o jornalista Ouri Pota e sua "turma": Maló (o dono do carro), Américo (o mais velho e proprietário da taberna onde se afinam as conversas e se afogam as mágoas) e o Manhiça (pintor de pena refinada e dono de uma lábia humorada que escorre como o Rio Maputo) entenderam organizar um almoço (domingo 03.03.24) na Margem Sul da cidade, onde o Pota faz a sua casa para o pós-cinquenta envolta a uma floresta por ele plantada. Pedido feito, pedido atendido: ver a ponte de perto.

Percorremo-la de carro, depois de cuidarmos da logística que consistiu em "comícios e bebícios". O embarcadouro, que vai sucumbindo aos poucos, depois da construção da Ponte, foi a primeira paragem. 

_ Já foi um local muito movimentado que acolhia muita farra e festas. _ Explicou o Manhiça.

Há barracas que resistem ao tempo e algumas pequenas embarcações (de recreio) que ainda fazem a travessia da baía levando este ou buscando aquele. Senhoras de todas idades estão envolvidas na venda de peixe grelhado, à semelhança da nossa Ilha de Luanda e os cantineiros não perdem a oportunidade para o comércio de retalho. As viaturas que atravessavam por cima de jangadas fazem hoje uma travessia segura e prazerosa, pagando uma portagem que varia em função da categoria do veículo (

semi-colectivo MT 30,00; autocarro MT 60,00; classe1 MT 125,00; classe 2 MT 250,00 MT etc.).

A ponte Maputo–Katembe liga os distritos de Nlhamankulu (margem norte) e Katembe (margem sul), em Maputo. É hoje a maior ponte suspensa de Africa, remetendo para a segunda posição a ponte de Matadi (RDC).

As obras decorreram entre 2014 e 2018, tendo sido inaugurada no dia 25 de Junho (data da independência) e aberta à circulação a 10 de Novembro, coincidindo com os 131 anos da fundação de Maputo (antiga cidade Lourenço Marques).

A parte suspensa da ponte possui 4 faixas de rodagem (duas em cada sentido), 680 metros de comprimento e atravessa a Baía de Maputo a uma altura de 60 metros. 

O viaduto norte mede 1097 metros de comprimento e está ligado à rotunda da Praça 16 de Junho (com acesso às estradas nacionais EN2 e EN4) no bairro da Malanga, em Maputo. O viaduto sul mede 1234 metros de comprimento e é composto por elementos pré-fabricados até 45 m de comprimento, conectando-se à estrada para a Ponta do Ouro.

O vão entre os dois pilares é de 680 metros, o maior de África. Os principais cabos de suporte estão ligados através de cabos de aço no Norte e no Sul, cada uma com um bloco de ancoragem maciço. As cargas extremamente elevadas da estrutura demandaram fundações de estacas com diâmetros de 1,50 m a 2,20 m, que atingem 110 m de profundidade no subsolo marinho (lama). Os dois pilares têm 141 m de altura e a uma altura de cerca de 40 m existe uma viga transversal para a faixa de rodagem. As peças individuais pré-fabricadas de aço para a faixa de rodagem têm cada uma 25,60 m de largura e 12 m de comprimento.

Construída por uma empresa chinesa e financiada igualmente por um banco daquele país a Ponte Maputo-Katembe é prova de que com coragem e determinação é possível erguer obras tecnicamente desafiadoras, esteticamente lindas e com utilidade sócio-económica. É também um apelo aos presentes e futuros que, no caso de Angola, já clamam por passos semelhantes. A Ponte de Matadi, sobre o Rio Zaire, em território congolês, pede uma "irmã" mais a Oeste que nos permita chegar cedo a Cabinda (embora do outro lado haja uma língua de terra que pertence à RDC, a sul de Cabinda). Por outro lado, temos o Mussulo e o pagamento de portagens, como já acontece na circulação sobre a Ponte sobre o Rio Kwanza, a sul de Luanda, pode amenizar o retorno dos investimentos.

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Publicado pelo Jor. Angola de 14.04.2024


sexta-feira, março 22, 2024

THE DOG AND HIS OWNER

A noite era de poucas estrelas e um vento bom, quente e apalpador, que vinha empurrado da Baia de Maputo. O meu anfitrião e cicerone Ouri Pota Chapata Pacamutondo entendeu levar-me a uma espécie de "sindicato dos artistas". 

O bairro fica próximo do aeroporto e é já fora do caso urbano com casas de autoconstrução e algumas preocupações no saneamento. A casa indicada é a do saxofonista Américo   Macutamo "Mile Davis" que tem uma taberna muito frequentada pelos artistas e divulgadores de arte.

O Pota, para além de repórter de rádio (agora passou à gestão) é um apaixonado pela fotografia que tem um condão artístico. Levou-me ao local e lá conheci o anfitrião Américo, o artista plástico Vasco Manhiça, o Malote Mathe e o seu irmão, e outros que foram aparecendo e saindo, seguindo a passada das garrafas de cerveja que eram entregues encapsuladas e voltavam vazias, revezando-se umas com as outras.

As conversas, sem sumário rígido, variavam entre sociedade e artes. Afinal, tinham recebido um jornalista-escritor-cronista que visitava Maputo pela primeira vez, que estava sedento de recolher o máximo de informação possível sobre esta terra lusófona no Índico. Os moçambicanos, por sua vez, curiosos, procuravam igualmente indagar isso e aquilo. Mostravam, na verdade, ser bons question-makers sobre a Angola do pós-independência e pós-guerra civil que enterrámos em 2002.

Quando lhes falei sobre o encanto que era a Ponte Maputo-Katembe, a curiosidade deles virou-se, obviamente, ao que nós Angola tínhamos construído de relevante no pós-independência, fazendo-me desfilar um rio de anotações mentais de tudo quanto meus olhos registaram e a minha mente gravou.

_ Sou do Libolo, interior de Angola, de onde saí aos dez anos. Conto já 40 anos em Luanda e conheço todas as capitais das 18 províncias. Dou-vos dois exemplos: Luanda que encontrei em 1984 tinha o BPA e o Hotel Presidente como os mais altos prédios. No outro lado da Baia, que chamamos Ilha, é o Panorama quem brilhava e diziam ter 5 estrelas. Hoje quem espreita a cidade baixa encontra um conglomerado de arranha-céus. Muitas ruas que conectavam a parte urbana à suburbana em crescimento exponencial eram estreitas, tendo sido alargadas e melhoradas. Construíram-se nós rodoviários para facilitar a circulação automóvel, cujo parque teve uma ascensão de 8 para 80. Enfim, são muitas coisas que, quando nos recolhemos à retrospectiva nos levam a essa conclusão. Outro exemplo são as cidades construídas de raiz, por quase todo o país, para amenizar a carência de habitação. Foi um passo bom, mas temos mais. O meu bom exemplo tem sido a cidade de Ondjiva que foi toda despedaçada pela aviação sul-africana ao tempo do apartheid. Hoje o que se encontra é um "fénix renascido dos escombros". _ Contei-lhes, entre pausas, para atender os pontos-d 'ordem e amenizar a garganta com líquido dourado.

Os bons apreciadores da "espuma" já iam em boas doses (eu disse doses e não doze) quando, embalado, o Manhiça lançou a sua proposta irrecusável.

_ Epá, ó mano escritor angolano, assim mesmo estamos a selar a nossa amizade. A esta hora já não nos dá jeito para irmos à minha casa e voltares ao hotel, mas amanhã o "meu filho" Pota levar-te-á ao meu atelier para teres uma recordação.

Agradeci de imediato a amabilidade e sonhei envolto a obras pictóricas. Afinal, ao que o Pota e outros companheiros contaram, o Manhiça, moçambicano de 45 anos que decidiu "pintar o seu país", depois de largos anos na Alemanha, é um dos mais proeminentes "seguidores" de Malangatana.

Domingo, dia D, comparecemos à hora nove. "Encontrámo-lo" não estava. O filho explicou que o avisara para que não saísse sem telefone. "Mas o tio Pota já conhece a teimosia do seu amigo. Disse que não demoraria, só que se aparece alguém a dar-lhe conversa ele se esquece de outros compromissos".

Aguardamos até à hora do esvaziar da paciência. Diligente, porém, o filho de Manhiça (grandes conversador) tinha feito ligações a alguns amigos do pai para que quem o visse o alertasse da chegada do visitante angolano. Não tardou chegou animado com o seu cigarro fumegante, convidando-nos a adentrar o seu atelier.

"The dog and his owner" (o cão e o seu dono) era um conjunto de quatro peças que ficaram repartidas. Duas estão agora em Angola e outras duas permanecem em Moçambique, ainda sem novo dono.

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Publicado no Jornal Cultura de 12.03.24

quinta-feira, março 14, 2024

VISITA GUIADA À RÁDIO MOÇAMBIQUE

Em companhia do Ouri Pota Chapata Pacamutondo, Director do Centro de Formação da Rádio Moçambique, visitei, a 04.03 24, a RM. 
Como quem quer conhecer a rádio em toda a sua dimensão, comecei pelo que chamam de "fitoteca", arquivo áudio das primeiras emissões de Rádio em Moçambique [1933], discursos e outros registos relevantes. Inicialmente, os registos eram feitos em Vinil, depois em bobines, mais tarde em cassetes, disquetes, minidisco, CD, etc.

_ Chamamos essa área de "fitoteca" (fica no rés-de chão do edifício de seis andares) por causa das fitas aqui conservadas (bobines e cassetes) _ Começou por explicar o cicerone Ouri Pota.

Hoje, os registos são feitos em Hard Disc. O desafio de todos os tempos tem sido a conversão de áudios de um suporte em desuso para o outro emergente e a inoperância de alguns equipamentos de leitura. 

_ É um trabalho que não para, pois tem de se acompanhar a evolução tecnológica. _ Disse-nos Laurentino da Silva, o responsável pela "audioteca", também ele considerado "uma biblioteca da fitoteca" da Rádio Moçambique, dado o conhecimento acumulado sobre a área e a rapidez com que é capaz de localizar um registo sonoro histórico.

Como que a buscar a consonância entre as explicações que dava e a demonstração prática em como se localizam "as fitas" mais antigas, provoquei-o a localizar a cassete com o discurso proferido pelo Presidente Samora Machel quando, a 25 de Junho de 1975, proclamou a independência de Moçambique. Laurentino, que interrompera o seu café à nossa chegada desavisada, fê-lo num abrir e fechar de olhos como se tivesse um detector de cassetes entre os dedos.

Depois, visitei a discoteca que conserva músicas de todas as idades (desde os anos 30 do séc. XX aos dias que correm), nos mais distintos suportes, tal como a audioteca/fitoteca. A discoteca da RM está em rede, permitindo o acesso rápido por parte dos realizadores de programas e locutores. 

_ Já não precisam de fazer requisições prévias como antes, acontecendo apenas em casos de músicas que não estejam na rede. Quando recebemos uma requisição, fazemos uma transcrição imediata e colocamos a música ao dispor da Rádio. _ Explicou Porfírio Mathe.

Muitas músicas antigas foram convertidas em suporte digital e outras estão ainda por converter. Em ambos os casos, "é uma luta contínua", asseverou Porfírio, um dos técnicos da Discoteca que teve a amabilidade de fazer as honras da casa.

A rádio, porém, e todo o seu edifício tecnológico, não são apenas pessoas, voz, sons e silêncios. A componente técnica para que o som produzido seja emitido em ondas hertzianas e captado pelos recetores, há uma sala chamada de Central Técnica. Na Rádio Moçambique, é responsável pela recepção e emissão dos 4 canais produzidos em Maputo-Cidade (Antena Nacional, Antena Internacional, Rádio Cidade e Rádio Desporto), assim como pela recepção e retransmissão do sinal das dez emissoras provinciais (Cabo Delgado, Gaza, Inhambane, Manica, Maputo-província, Nampula, Niassa, Sofala, Tete e Zambézia) ao que se adiciona o sinal da Emissora Provincial de Maputo (há distinção entre Maputo Cidade Capital de Moçambique e Maputo Província).

_ Aqui é o coração da Rádio. _ Ouvi do responsável da CT, _ acrescentando que é lá que se confirmava a concretização da comunicação radiofónica.

Seguimos à Radio Cidade, congénere da Rádio Luanda, onde o meu anfitrião Ouri Pota fez carreira até passar à gestão. 
Encontrámos o jovem Hélder Mendes, animador de cabine por excelência e que tem uma grande audiência. A cabine é "auto-operada" e o locutor conversa com os radio-ouvintes sem a intervenção do técnico de som/sonorizador.

_ É uma forma de conferir melhor à vontade ao locutor e o patrão poupar dinheiro com menos pessoas, explicou, enquanto pousávamos para a foto. 

A Antena Nacional (congénere de Canal A da RNA) e a Rádio Desportiva (homóloga da Radio 5, com que "há um grande intercâmbio", no dizer dos moçambicanos) seriam os pontos seguintes.

Já na Rádio Desporto, depois de visitar os estúdios, fui convidado para "dois dedos de conversa" com a simpática jornalista Natércia Tomás, cuja voz, doce e melódica, muito se difere do comum sotaque moçambicano. A jovem parecia uma "tuguesa" pintada de negro com um sorriso escaldante a fazer parelha ao humor com que cativa os ouvintes e amantes da narração desportiva.

No final, Natércia pediu que sugerisse uma música para ser tocada como "oferta" do visitante angolano aos que nos ouviam naquele momento, perto de 10 horas da manhã de segunda-feira, 04.03.24. Apanhado por um "remate à queima-roupa" a minha escolha recaiu, exactamente, à queta "A luta continua" (para vencer o subdesenvolvimento) de Mirian Makeba.

Lá e cá "a luta continua"!

Terminámos a visita no Centro de Formação da Rádio Moçambique que, para além de atender às necessidades de formação/superação interna dos quadros, está também vocacionado a atender demandas externas como mestres de cerimónia, apresentação de discursos, jornalismo digital entre outros. Saimon Kabwé era o jornalista, descrito como um dos melhores noticiaristas da Rádio Moçambique e partilhava a sua experiência com meia dúzia de jovens candidatos a jornalistas com que tivemos a oportunidade de tocar algumas palavras.

_ Tal como em Angola, o jornalismo é uma profissão séria, de extrema importância social, insubstituível e que confere reputação. Embora não permita ao executante ser tornar-se rico no exercício simplesmente do jornalismo, confere ao profissional sério e comprometido uma grande reputação e abertura para outros voos. É incompatível com a trocas de favores e "mola" debaixo do tapete. _ Partilhei no minuto (de fama) que me foi concedido.
Conheço alguma rádio angolana melhor do que a nacional moçambicana? 
- A resposta é óbvia. Só a minúscula LAC onde "militei" de Dezembro de 1996 a Março de 2006.

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Publicado no Jornal de Angola de 31.03.24

sexta-feira, março 08, 2024

MOTIVOS PARA UMA FUBADA

Na banda não faltam motivos para organizar uma fubada como as que acontecem nos aposentos do ancião Salas Neto, no Distrito do Rangel, apimentadas de crónicas e outras chaladices, ou no apartamento kilambístico do  kota Lauriano Tchoia, acondutadas de suculentas codornas.

Na estranja, o esforço para encontrar uma bilada é maior. As opções sempre exíguas, vão para a papa dura (feita de farinha grossa de milho) oferecida pelo Marcos African Food ou é ao puré de batata que nunca se aproximam ao nosso pirão ou funji de bombó, podendo ainda variar para o misto, sempre a condimentados com largas postas de peixe do Atlântico Equatorial fartas verduras nascidas e crescidas ao sol resoluto.

Uma boa fubada, apomadada com castas do Bero ou Xixila, dá azo a prolongadas tertúlias e vozes que se elevam com o tempo de duração do repasto. 

Aqui (na estranja), no silêncio e pacificidade de Sea Point, (satélite de Cape Town) apenas os beggars (tidos como "malucos"), os carros, as motos noctívagas, os ventos e a fome falam alto. Vezeira, a fome vem de tempo em tempo, carregando, quase sempre a vontade de embrulhar uma boa fubada para contornar os sweet food destas terras.

_ Atenção! António, Lau, Afelino, preparem-se, estou a chegar. Amanhã quero-vos no meu apartamento e vamos fazer uma bilada! _ Anunciei, antes mesmo de saber se encontraria utensílios. 

Não houve resistência, afinal, a chegada de mais um mwangolê seria motivo para pôr conversas em dia, reflectindo sobre e vida de cá e as malambas de lá.

_ É só avisares a hora e as incumbências que lá estarei. _ Responderam um a um.

Dia D. A fome madrugadora, talvez incentivada pela combina da bilada, gritava mais alto do que os negros beggers que se achavam lyambados nas ruas "brancas" de Sea Point. 

O low shielding seria entre o meio-dia e as duas da tarde. Apressámo-nos nos preparativos. Melhor, o Lau cuidou de confeccionar o kalulu que o Star jura de pés juntos ter sido "inventado em Kalulu", assim como "o bolo vem do Lubolu". O Adelino cuidou das pomadas e o Oldest António ficou a moderar os excessos vocais, quando a pomada começou a fazer efeito.

Assim foi a primeira bilada. Uma fubada mista que só não recebeu estrondosas palmas de gratidão dos estômagos por estes terem a natureza de pedintes insaciáveis.

No fim-de-semana seguinte, foi a vez do Lau organizar a fubada.

_ Kotas, desta vez o conduto serão carnes assadas e, como temos assador no quintal, será lá nos meus aposentos. Preparem só as pomadas. _ Recomendou, fazendo-nos aparecer religiosamente ao meio-dia.

_ Haverá duas sem três?

O Adelino assumiria a terceira semana consecutiva. Desta vez, o Star prometeu levar sardinhas tugas para o início de conversa. Uma caixa de castas nacionais foi "raptada" pelo caminho e abatida com sucesso, dando cor ao frango e kabwenya tuguesa, levando a conversas que se prolongariam até à última gota, o último espinho e à derradeira ossada.

Mas, que tal se a fome e a vontade de embrulhar uma funjada chegam num dia de semana em que não dá jeito para reunir a equipa?

A solução é bikular a solo. Afinal, em casa ou na estranja, com amigos ou alone, ĥá sempre um motivo para uma fubada. Se bem regada, melhor!

sexta-feira, março 01, 2024

"FILHOS" QUE LADRAM

A forma como os governos dos países olham para as necessidades populacionais influência o comportamento generalizado da sociedade. Nisso, para a formatação de uma visão e consciência colectivas da sociedade, os meios de difusão massiva (MDM) e, nos tempos que correm, os multimedia exercem um papel fundamental.

Saídos da devastadora II Guerra Mundial (1939-45), que deixou um rasto de milhares de mortos e inválidos, os Estados vencedores e perdedores da Guerra, assim como suas colónias investiram milhares de dólares na comunicação de massa, incutindo nos jovens a beleza do convívio familiar (um pai, uma mãe e filhos). Tal resultou, obviamente, no reforço da sacralização do casamento e da família, tendo como consequência o "baby boom" dos anos cinquenta e sucedâneos.

Veio, a seguir, a produção virada para o consumo intensivo, o mercantilismo, o despesismo, o bem-estar e outras comodidades indispensáveis deste tempo. As televisões abraçaram a ideia basilar que lhes foi "vendida" e distribuíram-na aos jovens que vêem o casamento e a família como empecilho ao carreirismo, ao bem-estar material e ao lazer.

Caminhando pela marginal de Sea Point (Cape Town), observo, algo intrigado, a presença de muitos cães (perde-se no número, raças e tamanhos dos canídeos exibidos) a fazer companhia a singulares e aos poucos casais que se apresentam no "calçadão" que percorre a marginal. O que menos se vêem são as amáveis e doces crianças pronunciando os nomes de seus progenitores e ou de seus "frateres".

Ao saber que muitos deles são turistas que viajaram de seus países com tais animais de estimação, transportados sob cuidados muito especiais e em situações muitas vezes delicadas, sendo muito mais complexos de cuidar do que um filho, uma intrigante pergunta me persegue: mais vale a essas damas e cavalheiros um "filho" que ladra ou um nenê que chora quando calha?

Seguir o exemplo dos idosos que caminham de mãos dadas seria o mais expectável, mesmo quando estes se fazem acompanhar de um cachorro que vai no lugar do neto que lhes foi negado pelo(s) filho(s). Um dia, a carreira terá fim. As pessoas trabalham de forma intensa, abnegada e chega a reforma. Os cães têm vida curta e cada cão é mesmo um cão. Há de haver com quem conversar, trocar experiências e desfrutar juntos à mesa de um restaurante ou viajar coladinhos nos assentos de um avião. Com certeza que não será um "bobi".

Cada país é como uma família inteligente. Busca o que lhe falta e serve-se dos meios de persuasão para incutir comportamentos psicológicos colectivos. Sem me rever nos que defendem a reprodução massiva, mesmo quando incompatível com a produção de bens de subsistência e renda, sou pela família e pelo crescimento populacional moderado, cujo efectivo, quando adulto, atenda as necessidades produtivas do país e o equilíbrio das contas públicas que suportem o pagamento de uma pensão adequada aos reformados.

Para que tal aconteça, é preciso tomar-se uma decisão e unir esforços em direcção ao desiderato traçado. Os MDM devem seguir a linha mestra, mostrando o lado bom do caminho escolhido por quem nos governa. Vamos dar primazia aos filhos ou aos animais de estimação?

O Japão e outros Estados que registam taxas de fecundidade abaixo de 2 filhos por mulher já pedem mais nenês do que cães.
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Publicado pelo Jor. Angola de 17.03.24


quarta-feira, fevereiro 28, 2024

A ESTUDAR TAMBÉM SE FAZ DIPLOMACIA

A irreversível transformação do mundo em aldeia global, onde todos se "encontram" e relacionam leva os homens, independentemente de suas culturas e crenças, a reconfigurar seus códigos, sujeitar-se à aculturação global e adoptarem condutas e meios de comunicação que os tornem em cidadãos do mundo.

Assim é que nas ciências, tecnologias e negócios globais/transversais, algumas línguas se sobrepõem às outras. É hoje imperioso, para se ser cidadão desta aldeia global, que se domine a "língua das hi-tec e do comércio mundial", o inglês. Nesse quesito, um dos destinos para angolanos, moçambicanos, congoleses, sauditas, líbios, tunisinos, franceses, brasileiros, germânicos e tantos outros tem sido a África do Sul.

Na LaL, uma das escolas que mais acolhe angolanos, a aula de 16 de Fevereiro teve dois momentos eleitos à partilha com os meus leitores.

O primeiro foi um texto, seguido de reflexão interpretativa, morto-sintáctica, e argumentativa sobre um apelo do Primeiro-ministro japonês que, preocupado com o "excesso de carreirismo e sono" que têm levado à diminuição da população na ordem de 30%, lançou um veemente apelo à procriação, tendo terminando a "homilia" com o a frase "vão para casa e façam filhos", frase que os nipónicos entenderam como ofensiva.

Seguiram-se perguntas, argumentos e contra-argumentos sobre "se os governos devem intervir no controle da população (seja para aumentá-la ou para conter o seu crescimento) ou se deve ser uma decisão pessoal/do casal.

Quando chamados a compulsar as taxas de fecundidade nos países de origem, notamos que Angola era o único país com uma taixa acima de meia dezena entre sul-africanos, franceses, sauditas e brasileiros.

_ Uf! In your contry couples work hard. _ Atirou a brincar o Ahmed, um jovem saudita dado a saídas sarcásticas, ao mesmo tempo que discordava dos dados apresentados pelo Google em relação à natalidade no seu país. 

Arguciava ele que "não concordava porque muitos homens têm mais do que duas famílias, tendo cada esposa de três a seis filhos".

_ You must review your country's data. _ Dei-lhe o troco.

Sobre a taxa de fertilidade (número de filhos por mulher) e sobre a possível interferência ou não dos governos para manter os equilíbrios demográficos e económicos, discutiu-se o suficiente e cada tirou as suas conclusões. É um debate ao qual você está instado a participar e agir.

O segundo momento da aula de inglês que, naturalmente, acompanhou o primeiro momento, foi a apresentação de bebidas típicas de cada país.

Criativos e orgulhosos de sua pátria e cultura, os quatro angolanos, em que me incluo, decidiram, sob patrocínio do articulista, levar mais do que a solicitada bebida típica. As duas jovens (Alaíde e Jacira) foram à street market (uma espécie de São Paulo, em Luanda) e compraram bananas-pão, múcua, ovos, jinguba e batata-doce que transformaram em kitutes que "regaram", de forma muito concorrida e com direito a sobras, as três horas e meia de aula.

Afinal, diz um ditado secular, "no aproveitar está o ganho". Os angolanos souberam mostrar a cozinha típica e fizeram, igualmente, diplomacia.

Até à próxima!

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Publicado no Jornal de Angola de 25.02.24

quinta-feira, fevereiro 22, 2024

KITOTAS NO CABO

Já levamos já 14 anos, o mesmo tempo que durou a Luta Armanda para a Independência de Angola, a publicar livros. Da lavra de nove, apenas um distanciou-se da ficção, sendo relatos de factos vividos.

"Kitotas: recuos e avanços", o último, tem sido dos mais comentados. A distribuição é comedida (estamos a kanjonjar para não acabar cedo, enquanto não se reúnem condições para reedição). 

Portanto, "Kitotas: recuos e avanços" já está a ser apreciado pela cônsul de Angola na Cidade do Cabo, Elsa Vicente, que pediu mais livros do autor Soberano Kanyanga para os colocar ao dispor dos nacionais que procuram por serviços consulares.

Agradeço e vamos cumprir.


quinta-feira, fevereiro 15, 2024

CABO: DE 150 ESCRAVOS A 25 MIL RESIDENTES

Chegados à costa atlântica do que é hoje Angola em 1482, os portugueses viram-se no Século XVII confrontados com a presença holandesa, cuja "companhia ultramarina" explorava já as Índias Orientais. Assim, os holandeses estiveram em Angola durante os séculos XVII e XVIII na região costeira, incluindo Luanda e Benguela, com o objectivo de participar do comércio de escravos e de outros recursos naturais.

Viriam a ser expulsos de Angola pelos portugueses que pediram reforço da sua então colónia do Atlântico Oeste. Durante o século XVII, Portugal e os Países Baixos estavam em conflito global e os portugueses conseguiram expulsar os holandeses de várias colônias, incluindo Angola, reafirmando o controle português sobre a região até o século XX (1975).
Foi, porém, no período em que os holandeses se fizeram "passear" impunes que levaram os primeiros escravos angolanos ao Cabo de Boa Esperança, na actual África do Sul, por volta de 1658. Estima-se que tenham sido 150 indivíduos levados em caravelas.

Aportados no Cabo da Boa Esperança em 1652, os holandeses tiveram como objectivo inicial estabelecer um posto de abastecimento ao longo da rota marítima para as Índias Orientais. Um ponto estratégico de paragem onde pudessem reabastecer as suas embarcações com água, comida fresca, lenha edemais suprimentos antes de continuarem as sua viagens para o leste, em direção às ricas colônias nas Índias Orientais, e destas para a Europa afigurava-se primordial. Portanto, o Cabo surge como um entreposto para reabastecimento, descanso e cura dos "incapazes" de prosseguir as viagens. Só que tal empreitada demandava homens sadios e a "preço de banana".
A primeira horta estabelecida pelos holandeses no Cabo da Boa Esperança foi chamada de "Company's Garden" (Jardim da Companhia), estabelecido em 1652 pelos colonizadores holandeses da Companhia Holandesa das Índias Orientais para fornecer alimentos frescos e vegetais para as tripulações de seus navios. É hoje um ponto turístico na Cidade do Cabo.
Embora alguns confundam o Company's Garden e com o Kirstenbosch, são duas áreas distintas na Cidade do Cabo. O Kirstenbosch é um jardim botânico localizado na encosta leste da Table Mountain, na mesma cidade, sendo famoso por sua coleção diversificada de plantas nativas da África do Sul, bem como por suas trilhas naturais e paisagens deslumbrantes.
Voltando à História, a colônia do Cabo viria, entretanto, a ser anexada pelos britânicos em 1806, durante as Guerras Napoleônicas, até que se dá a proclamação da União Sul-Africana, a 31 de Maio de 1910, pelo então primeiro-ministro Louis Botha, líder do Partido Nacionalista, após a unificação das colônias britânicas do Cabo, Natal, Estado Livre de Orange e Transvaal.
Alguma literatura aponta esse marco (1910) como "independência", visto que era uma entidade autónoma dentro do Império Britânico. No entanto, a União Sul-Africana de 1910 dependia politicamente do Reino Unido que exercia uma influência significativa sobre os assuntos políticos e económicos do território.
A candeia, para uns poucos, viria a acender em 1961, ano em que o país se tornou uma república, deixando a Comunidade Britânica. Aqui, sim, tornou-se república (branca) independente pondo, igualmente, fim à monarquia constitucional na África do Sul e a remoção do status de domínio britânico.
É importante recordar que o apartheid foi instituído oficialmente na África do Sul em 1948, quando o Partido Nacional venceu as eleições nacionais e começou a implementar políticas de segregação racial e discriminação institucionalizada. Essas políticas foram formalizadas através de uma série de leis que restringiam os direitos e liberdades dos não-brancos no país. Portando, foi ainda no período de influência do Reino Unido.
A verdadeira independência festejada pela maioria dos sul-africanos, a que se incluem os milhares de descendentes dos escravos angolanos, é a proclamada em 1994, depois da tomada de posse de Nelson Mandela, primeiro presidente negro, num país que se tornou de direito multi-racial.
Outra curiosidade sobre a África do Sul tem a ver com o nome "Natal" que tem origem portuguesa. A região foi assim chamada pelos exploradores portugueses que lá chegaram em 1497, liderados por Vasco da Gama, devido ao facto de terem alcançado a costa no dia de Natal (25 de Dezembro).
Quanto ao Kwazulu, é uma expressão zulu que significa terra dos zulu ou "zululândia".
De um contingente inicial estimado em 150 escravos angolanos transportados em 3 caravelas (Março de 1658), contam-se hoje milhares de angolanos residentes na África do Sul, estando estimados pelo consultado angolano na Cidade de Cabo, só nas 3 províncias do Cabo (Cabo Ocidental, Cabo Oriental, Cabo Setentrional), perto de 25 mil mwangolés, segundo estimativas do Consulado Angolano na Cidade do Cabo (Fev24).

quinta-feira, fevereiro 08, 2024

A "FESTA" DOS CONVIDADOS DA NJAMBA

Na guerra civil angolana, que se seguiu à independência, cada Movimento de Libertação Nacional teve o seu convidado para o ajudar. 

O Governo do MPLA, atacado a norte pelo exército zairense de Mobutu e mercenários convidados pela Fené, e no Sul atacado pelos racistas da África do Sul, compadres e convidados dos kwachas,  teve de pedir apoio a Fidel Castro para manter o país independente e uno.

Foi difícil travar os invasores, procedentes do norte e sul, fortemente armados e sedentos de sangue e poder, que procuravam destruir todos os "vasos capilares" do país nascente. Edifícios administrativos e residenciais, pontes, ferrovias, fábricas, etc., nada foi poupado.

Os escombros de edifício (foto 1) mostram-nos o que foi antigo Palácio herdado em 1975. Os "convidados dos kwachas" deixaram-no nesse estado, depois de vários bombardeamentos aéreos e de artilharia. Já em tempos de paz, foi construída no local em se acham os escombros a nova Sede do Governo do Kunene (inaugurada em 2017), tendo sido conservados os escombros para contar a história que muitos jovens ignoram e cujas páginas muitos mais velhos pulam deliberadamente.

A segunda foto, mostra a nova Sé Catedral de Ondjiva. Obriga-nos a verdade dizer que a antiga igreja não tinha sido derrubada como foi o Palácio e as demais edificações da então cidade de Ondjiva que foi transformada em "terreno baldio". A igreja esteve, porém, tão estropiada que o Governo Angolano decidiu oferecer à católica uma nova Catedral, digna da Ondjiva que se está a (re)construir dos escombros deixados pelas tenebrosas South African Air Force (SAF) e seus apaniguados e anfitriões da Njamba.

Uns, ruidosos ou silenciosos, virão dizer-me "não desenterre o morto". 

A minha colocação é: que tivessem dito aos vossos convidados para preservarem os edifícios. É que até o cinema "foi para o maneta". Partiram-no desgraçadamente!

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

ONDJIVA AOS MEUS OLHOS

A minha primeira vez em Ondjiva foi em 1999. Era Primeiro-ministro de Angola o Dr. França Van-Dúnem e eu actuava ainda como jornalista da LAC - Luanda Antena Comercial.
A missão consistia, dentre outros objectivos, em visitar o matadouro da Kahama, constatar o problema da falta de água em Ondjiva e a questão da energia procedente da Namíbia, cuja factura, dizia-se, "estava alta e a Nampower ameaçava desligar o disjuntor para a capital do Kunene". Também fomos ver a (re)construção da ponte sobre o Kunene e visitámos o memorial do Rei Mandume ya Ndemufayo, em Ohyole, município de Namakunde.
O avião que levara o Primeiro-ministro partiu antes do que levara os jornalistas e teve como local de poiso o aeroporto de Xangongo. De lá para Kahama, França Van-Dúnem e staff foram de carro. Os jornalistas e pessoal de apoio do PM viajaram num "Twin Otter", numa viagem de mais de 3 horas, com reabastecimento no Lubango, e poisou em Kahama, onde a pista que serviu as FAPLA e FARC (Forças Armadas Revolucionárias de Cuba) na luta contra os racistas sul-africanos servia de "local de repouso dos bovinos que abundam na região.
De Kahama a Xangongo fomos todos em viaturas e aglutinámo-nos no avião maior, o que transportou o Primeiro-Ministro. Já na "cidade" capital, totalmente arrasada, lembro-me da Vila Okapale, local em que dormitámos todos e em que nos foi servido um competente e bem regado repasto.
Vinte e cinco anos depois, voltei a Ondjiva e custou-me reconhecer a cidade que foi "totalmente" construída sobre o nada e restos de escombros de edifícios arrasados pela aviação da Africa do Sul racista nas incursões ao nosso território nos anos setenta e oitenta do Século XX. Andando por Ondjiva contam-se os sobrados do período colonial.
No local onde se acha hoje a sede do Governo existiu o Palácio herdado em 1975. Estão lá conservados os escombros para contar a história das invasões e bombardeamentos das SAF (South Africa Air Force) ao tempo do apartheid. A Igreja católica, nova, imponente e paralela ao Governo do Cunene, foi também construída pelo Governo, no terreno em que se achava a antiga catedral (embora tivesse sido ligeiramente poupada) a velha e estropiada.

Na mesma rua, a principal da cidade, acham-se, à direita, o antigo palácio (construído depois da destruição daquele herdado na independência) e um outro palácio, maior, novo e digno desse designativo. Perfila paralelo ao largo Mandume ya Ndemufayo, também novo e integrado numa série de obras (várias) erguidas pelo Governo Central para reatribuir dignidade de cidade capital ao que restava apenas o nome. Mais abaixo, no sentido aeroporto-centro está o edifício da cultura, novo e majestoso, juntando-se-lhe a Mediateca e outras serventias como a Centralidade de Ondjiva que é hoje, diga-se, uma cidade encantadora!

Publicado no Jornal de Angola de 04.02.24

segunda-feira, janeiro 29, 2024

MENTIRINHAS DE JOÃO E CONSELHOS DE JESUS

Um dos edifícios que conta a história do Kwitu, depois da guerra pós-eleitoral, dizem ser a Catedral da Paz, templo da Igreja Evangélica Congregacional de Angola, construído pelos crentes citadinos depois do cerco à cidade. Aqui cultuaram e continuam a cultuar dirigentes inesquecíveis como Sabino Salongue, Jão Marcos Bango, Celita Adolfo, Samuel Catumbela, Alice Kakeke (de feliz memória), Isabel Changuendela, Cândida Celeste, entre tantos outros. A lista é grande e estende-se aos filhos, netos e outros evangelizados todos os dias.

Mas é sobre o João, um menino engraxador do Kwitu, e seus amigos Miguel e Kasoko que vos conto.

Encontrei-os à entrada de uma unidade hoteleira que dá de caras com a Catedral da Paz. O João, o mais expedito, mal viu o carro parar, endireitou a cara, fazendo uma de coitado e faminto, seguido de um sinal pedinte.

_ Me dá lá só kapão, faxavori! _ Terá soltado. Algo assim.

Apreciei as suas vestes e o cabelo pintado.

_ Porra! Maltrapilho e cabelo pintado, deve ser um pequeno grego. _ Ensaiei sem o soltar. 

Fiz resistência em baixar o vidro lateral e decidi mesmo não atendê-lo.

Esperto (isso mesmo), o rapaz que vim a descobrir que responde por João, cônscio de que a sua artimanha tinha caído ao ralo, olhou para o lado oposto e meteu-se a assobiar. Talvez recitando uma música ou um hino da "nembele" IECA, o que tocou a sensibilidade do meu companheiro de viagem.

_ Camarada Matoumorro, o rapaz convenceu-me. Vou dar-lhe uma moeda. _Disse-me o camarada Jesus Cortex, sacando duas notas de Kz 200 que dividiu aos três: uma para o artista de cabelo louro e outra para o Miguel e Kasoko que são irmãos.

Estacionada a viatura, eis que os rapazes reapareceram.

_ Pai, vêm engraxar sapatos. _ Chamaram em coro.

Dividimos-nos. Eu dirigi-me ao João e o camarada Jesus ao Miguel a quem soltamos conversas sobre a importância de frequentar a escola, mesmo ajudando os pais com menos poder para sustentar satisfatoriamente os filhos.

_ Ó  meninos, o quê que fazem com o dinheiro?

_ Nós ajudamos a mamã. Engraxamos, eu e o meu irmão, e damos o dinheiro à mamã. _ Respondeu o Miguel, demonstrando inteligência.

Acrescentou que a caixa do seu irmão havia sido roubada e estavam a trabalhar com apenas uma, a ver se a mamã juntava o dinheiro que fazem para mandar ao carpinteiro confeccionar mais uma caixa de engraxador. Ficamos comovidos.

_ Vocês estudam? _ Indaguei. Fazia-o sempre no plural.

_ Eu estudo, a quarta classe. _ Respondeu o Miguel.

_ Eu estudo a sexta. _ Complementou o Kasoko, o irmão mais velho do Miguel.

_ E tu João?

_ Eu também.

O João era o mais vivido. Noutro tempo, dir-se-ia o mais espertinho. Tinha argumentos para tudo. Era resoluto e um pouco ameaçador em relação aos outros. Chegámos a cogitar que no tempo das kitotas seria, no mínimo, um sargento, fosse  num exército ou numa milícia.

_ Mas, ó João, tu com cabelo pintado entras na escola? O professor deixa-te entrar?

Os amigos, sabendo que ele estava a faltar à verdade, começaram a rir-se dele.

_ Estás a rir o quê, sô burro? Ó pai, eu estudo. Podemos ir na minha casa para tirar certeza com a minha mãe. _ Desafiou-os.

_ Ok. Não precisas de te exaltares. Vamos lá. Que classe então estudas e a que hora vais à escola? _ Amenizei.

- Ó pai, eu estudo de manhã, mas hoje não fui porque não tem sabão para lavar a minha bata.

Os dois amigos riram-se novamente das suas invencionices, elevando novamente os seus nervos aos píncaros.

_ Vamos então na minha escola para tirar certeza. Vamos. Ó Miguê, você assim já está a gozar demais. Vamos na minha escola.

_João, acalma-te, filho! Diz-nos quem é a tua professora?

_É professora Maria! Ó pai, esse burro fala à toa. Ele é que não estuda. A vida dele é só pedir dinheiro nos mais velhos. _ Acusou o João ao Miguel que parecia de sua idade. O Kasoko, que disse estudar a sexta classe, parecia dois ou três anos mais velho e era quem menos falava. Era o que estava sem caixa de engraxador.

Nisso, os dois irmãos que frequentavam a escola começaram a ler os placas de identificação das lojas e demais sinalética, desafiando o João a fazê-lo também. Apontaram para um atelier e desafiaram-no.

_Ó pai, vamos tirar as provas. João, se estudas ainda lê ali.

Encurralado, o João inventou que não lia à distância.

_ Ali em cima não vejo bem, mas nas letras de baixo está escrito arfaiate.

Foi a prova de que era apenas um menino esperto, mentiroso e não alfabetizado. 

O camarada Jesus, tal como o seu homónimo nascido na pequena cidade de Belém da Judeia, pegou a mão do João e levou-o para uma catequese, daquelas que um menino com todo o futuro ainda pela frente precisa de ouvir. No final, deu-lhe mais uns trocados.

_Quando voltarmos ao Kwitu quero encontrar-te a estudar. _ Recomendou Cortex, esperando que João cumpra o conselho de Jesus.


Publicado pelo Jornal de Angola do dia 11.02.24

segunda-feira, janeiro 22, 2024

KITOTAS NO LUVILI

Rodé e Laura, no Luvili, são mães vendedeiras. Os filhos são ainda pequenos, mas têm os irmãos e outros parentes, infantes e adolescentes, a vender produtos agrícolas e sacaria à beira da estrada que liga o Wambu ao Kwanza ao Sul. 

A beleza do monolítico estendido na sua grandeza aos olhos e a expressividade da praça rural em que se expõem ao automobilista e passageiros produtos do campo, como cebola, alho, tomate, abacates, kapungu-pungu, milho, cenouras, mel, banana, rabanete, pimentos, mangas, etecetera, quase forçam a paragem até dos mais apressados.

_ Esses meninos não estudam? _ Indaguei preocupado com o número de crianças vendedeiras em dia e horário escolar.

Um dos rapazes que cantarolava buscando frequeses tentou mesmo ludibriar-me.

_ Tio, eu fui de manhã à escola e vendo à tarde para ajudar os meus pais. 

A um desatento, sua alocução parecia carregada de razão. Passei a mão sobre o cabelo dele, em jeito de carinho, e notei que há muitas semanas não recebia a visita de um pente, nem mesmo uma lavagem cuidada.

_ Ó filho, não mente! Se tivesses ido à escola o teu cabelo estaria limpo e ainda penteado, pois o professor não deixa entrar assim na sala de aulas. Ou é mentira? _ Atirei ao julgamento popular.

_ É verdade! _ Responderam as manas, assim como os seus comparsas.

Dito isso, o rapaz recolheu-se e fez-se desaparecer na multidão, indo apregoar o "ó pai, me compra lá só manga" em outra freguesia.

As duas manas (na aldeia quem nasce primeiro é mano) tentaram, ainda, sair em sua defesa.

_ Ó pai, esse tempo, você pode estudar muito, sê padrinho na cozinha, você noé nada e nó vai a quarquer lugar".

Abri o livro da minha vida, desde tenra idade no Lubolu. Mostrei-lhes imagens reais (no telefone) do sítio em que nasci e imagens gravadas na memória, nunca levadas a texto. Preguei sobre o quanto a escola, mesmo sem padrinhos e tios, me levou aos areópagos lubolenses.

_ Minhas filhas, sem padrinhos também se pode ser grande. Por outra, o padrinho na cozinha pode aparecer lá em frente, mas se você não souber comer, para nada valerá. Mandem sempre os vossos filhos à escola pois também poderão ser administradores e governadores do Wambu.

Informadas e sentindo-se convencidas, pediram-me uma foto para perpectuar o momento. Fui ao carro pegar um livro que conta parte de minhas peripécias e deixei-as a ler Kitotas: recuos e avanços.


Publicado no Jornal de Angola, 18.02.24

terça-feira, janeiro 16, 2024

UM MIRAGE* SOBRE A GRUTA

 

O grupo de reconhecimento profundo tinha progredido no terreno durante o dia todo, entre atalhos, selva densa, asfalto e picadas. Tudo devia ser feito em segurança e máxima discrição para não serem vistos nem pela composição de três aparelhos circulantes, nem por eventuais sinais deixados na natureza como poeira e fumo. 

A chuva, fugida de Luanda e instalada permanentemente no Kwandu nyi Kuvangu,  revezava-se com curtos instantes de sol intenso que magoava as lentes oculares, tornando lenta a marcha que foi completada após penosas 14 horas. Paragem para abastecimento Logístico houve apenas uma durando não mais do que hora e pico.

Cansados, mas confortados pelo sucesso da parcela da missão, o grupo liderado pelo Comandante Jesus Cortex, teve outros desafios no terreno. Era preciso separar os integrantes em dois subgrupos e encontrar abrigos seguros para pernoitar que não denunciassem a presença deles nas margens do Rio Kwebe.

Conhecedor da área, o Brigadeiro Cortex e o seu Estado-Maior, Major Buta, isolaram-se dos demais e estudaram minuciosamente o mapa topográfico da região. Analisaram, perante os olhos e ouvidos atentos do especialista em comunicação, as possíveis vulnerabilidades para intrusões e saídas inimigas, assim como as zonas de maior opacidade à penetração terrestre e observação aérea. 

Havia uma kamunda com rochedos e uma gruta que podia servir de abrigo durante a noite.  Um único desfiladeiro aberto por animais e caçadors conduzia ao local que atenderia os três dormitórios. Minas defensivas foram plantadas a 150, 100 e 50 metros no desfiladeiro para prevenir uma eventual penetração inimiga.

Encontrado o local, desfizeram as mochilas para retirar os mantimentos. Apenas parte delas. Era preciso atender o estómago que reclamava ração fria. Não foguearam.

_ Fazer fogo é dizer estamos aqui. _ Preveniu o Estado-Maior.

O Capitão Matoumorro, "Radista" como é conhecido entre os pares, encostado em um penhasco, conferia as mensagens recebidas do Comando Central e as repassava aos colegas, depois de devidamente descodificadas e filtradas.

_ Apenas as essenciais para a nossa missão. _ Alertou antes da distribuição. 

A noite até podia ser tranquila. Pelo menos as "camas" eram, apesar daquele cheiro de excremento de canta-pedras que tagarelavam intermitentes por perto. Havia somente um senão. Um Mirage sobrevoava a o monte de tempo em tempo, obrigando-os a permanecerem em alerta e prontidão defensiva durante toda a noite. 

Não houve confrontos, não! Porém, também não houve sono até que o Mirage foi abatido às 07h01 da manhã pluviosa. E chovia como nunca!

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*mosquito incómodo em quarto de hotel.

Publicado pelo Jornal Cultura a 17.01.24

segunda-feira, janeiro 08, 2024

À PEDRA III

(Memórias dos princípios dos anos 80 no Lubolu)

A minha infância foi atravessada por diversas vivências que configura(va)m o nosso contexto vivencial tipicamente angolano. Uma delas foi assistir à transformação do milho em fuba (farinha).
As mamãs, ainda jovens, combinavam o esfarelamento, o demolhamento e a feitura da fuba sobre pedra, usando o "martelo triturador" esculpido de um galho de árvore com a forma angular (L ou V) a que chamávamos e mantém o nome de handa.
Os batimentos sincronizados faziam música que se juntava às canções que elas entoavam para buscar forças e narrar a história e estórias do nosso povo convertido em "literatura oral". Era uma cooperação que não deixava ninguém para trás. E nós, filhos, inocentes e envoltos em brincadeiras, sempre perto delas, gostávamos do matete que se fazia no final da "moagem" e das broas feitas com banana.
A cunhada Emiliana, que era natural do planalto angolano (dizíamos que era do Huambo), tinha perícia em confeccionar broas enroladas em folhas de bananeira para as assar. A farinha usada era aquela granulada e ainda por secar.
Enquanto as mães moíam o milho, nós tínhamos a missão de arranjar conduto complementar ao que levavam de casa, normalmente kizaka, jihasa, um pedaço de peixe ou carne*. Juntava-se tudo. Cada uma dava um pouco de fuba e um pouco de conduto e fazia-se um repasto conjunto.
Recolhíamos ervas comestíveis, como as folhas de uma árvore que produz resina idêntica ao do quiabo, também designada "xingo", folhas de mulondolo e fazíamos armadilhas com visgo (cola de borracheira) para apanhar passarinhos que caiam bem num almoço sob pedra.
Uma boa caça era motivo de satisfação e orgulho de nossas mamãs que eram mamãs de todos os filhos da aldeia, assim como o matete e os passarinhos que apanhávamos.
* de caça grossa ou pequenos roedores (rato da mata, mangusto, paca, canta-pedra, esquilo, etc.).


Publicado pelo Jornal Litoral de 25 de Janeiro 2024