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sábado, agosto 29, 2020

O TROÇO DAS CUECAS

 O TROÇO DAS CUECAS

Tenho estado a lutar contra a subida, embora lenta, do meu peso, submetendo-me, sempre que possível, a uma caminhada matinal ou vespertina de aproximadamente dez quilômetros ao dia.

Estando na cidade do Zango V, tenho um itinerário que vai de minha casa, Quarteirão P, ao Zango IV, ligação à estrada Kalumbo-Viana.

É a meio-caminho, imediações da Estação de Tratamento de Água (ainda em construção) que, há dois dias, meus olhos são brindados (involuntariamente) com essas pérolas.

Ontem foi uma cor-de-rosa amarrada. Hoje é esta (na imagem). O que se estará a acontecer nesse espaço?

E, tal como quando se regista um acidente de viação, os transeuntes param alguns instantes para ver, tirar as medidas e reter a "matrícula", seguindo-se a indagação:
- De kenhêsse ruca?!

domingo, agosto 23, 2020

DE OLHOS E OUVIDOS EM TEREMBEMBE

O Sol já não era criança. Era muzangala. Pareciam dez e tal. O frio já estava a se esconder e os kangonyeros já tinham se sacudido, preparando-se para ir embora. Antes, partiram mais umas folhas frescas do "marley" que, com certeza, vão fumar amanhã ou logo mais, ao pôr-do-sol.
As mamãs que procedem à rega das hortaliças à volta da lagoa começavam a substituí-los no campo agricultado à volta do depósito natural e artificial de água que a chuva e vianenses mandam ao Terembembe.
Desta vez, se calhar, com medo da serpente que viu ontem, Madó estava bem fardada. Botas mata-cobra, calças jeans, camisola "mamã-me-larga" e casaco pesado por cima. Numa mão um balde regador e noutra a catana e o sacho. Ao avistar a amiga de adolescência, Madalena abriu o rosário:
- Mãezinha, lebras aquela nossa vizinha que era muito amiga da Joaninha?
- Sim, lembro. É o quê então, Madó?
- Eh, miga! S'ncontrei com ela. Ewa! Num te falo!
- É o quê? Xuxa dela já caiu?
- É isso mesmo que iu te falá. Vinte anos, xuxa tipo nenê de doze? Acho lhe atiraram uma merda.
- Também acho. Rabugisse é demais. Pessoa mesmo que num lhe conheces, nem de cima, nem de baixo, lhe acusas te roubou dinheiro, só porque namoras com polícia?
- Assim lhe atiraram mesmo uma merda. Só falta já ter barriga de água.
- Madó, mi fala. Barriga d'água mais é o quê?
- Estás a ver quando as tias falam está gravida mas nenê num se mexe, nem nada, né? Na barriga é só água. Acho que bruxaria que atiraram na Leninha pode ir nesse caminho. Por isso nessa vida é preciso ter cuidado, Mãezinha.
- E assim estás a ir aonde?
- Estou a ir na Estalagem comprar máscaras. Aquele filadaputa do tô cunhado se embebedou ontem e na minha máscara atirou lá molho de frango. Cão comeu os ossos com o pano que ficou todo roído. Mas vai me sentir, só se não só eu Madó da Carreira-de Tiro.
- Não lhe faz mais confusão. Pára já, Madó. Homem de uma só mulher está difícil. As vezes nós mesmas é que provocamos homem te sengar ou te arranjar ajudante.
- Num me fala mais assim Mãezinha. Ele me acordou os kalundús na cabeça. Mas pronto já. Com o teu conselho, vou só comprar máscara e lhe aprontar o almoço.
À moda de Malanje, Madó e Mãezinha deram-se um "kwata-kwata" e partiram cada uma para o seu caminho.
Mãezinha fez gosto ao pé, em direcção à estrada que conduz carros apressados e homens e mulheres andrajosos na preguiça trazida pelo cansaço das pernas empoeiradas. Madó enfiou o corpo no milheiral que cresce e enverdece com a força do estrume fecal levado pela água urbana à Lagoa do Terembembe.

sábado, agosto 15, 2020

ÚBEKA*

Revisitando a memória e o costume dos povos libolenses e circundantes, chega-se à conclusão de que o chamado "chá-de-panela" não é nada mais do que um peditório pré-matrimonial que visa dotar a pré-nubente de utensílios domésticos para colocar-se em condições de poder receber visitantes.

Tal peditório visa angariar, sobretudo, utensílios de cozinha, entre louça, talheres, toalhas de mesa e de loiça, fogão, bilha de gás e outros adereços.
Na tradição bantu-libolense o peditório tem o designativo Kimbundu de úbeka.
A pretendida (noiva), antes do kixobo**, passa pelas casas de tias e primas, já casadas, que oferecem tantas peças quantas possíveis do seu enxoval à futura "dona de casa". É um acto encarado com normalidade e naturalidade que não se submete à chacota.
Olhando para o moderno e urbano "chá-de-panela", trata-se tão somente da urbanização ou renovação de um hábito secular bantu que ainda tem pernas no interior libolense.
Ao inovador "chá-de-panela" segue-se o "chá-de-bebê" outro peditório que visa angariar de parentes e amigas chegadas roupas de recém-nascido que seus filhos tenham descartado.
É também assim no Libolo.

* Peditório
** cerimónia matrimonial

sábado, agosto 08, 2020

O CÁGADO E O CARACOL

HAVIA quatro dias que os dois encarapaçados trocavam mimos, passando pelo meio algumas cajá-mangas que ambos disputavam.
O Cágado, aos meus olhos, chegou primeiro e fez cortes à suculenta e doce fruta que caíra na relva.
Chamado pelo cheiro, o caracol desfez-se da toca e foi também sorver algum melaço.
Quando a fruta acabou, o cágado foi ao encontro do sabor que o caracol escondia por cima e dentro da sua carapaça.
Seguiram-se outros dois dias de brincadeiras de mau gosto. Foi assim:
O cágado queria lamber o melaço de cajá-manga, por cima do caracol e, se possível, comer o caracol.
Esse, já avisado das intenções do vizinho (viviam no mesmo quintal e brincavam no mesmo jardim relvado), procurou esconder-se no mais recôndito espaço, onde a largura e inflexibilidade corporal do cágado não permitia atingido. Assim foram dois dias, ate que:
Chegou o sol. O caracol precisava de aquecer o seu corpo. Saiu da toca e largou o corpo para fora da carapaça. Não tinha visto que o cágado já lá estava à espera de fruta ou de si.
Astuto, o cagado deixou-se confundir com uma pedra, outra toca que bem podia servir de refúgio para o caracol, em caso de perigo redobrado.
Aos poucos, o cágado, já senhor da situação, foi se descompondo. Abriu os olhos, ainda na sua fortaleza corporal. Esticou o pescoço e mediu a distância entre o caracol e a extremidade da relva. Soltou uma perna, depois outra. Largou as membros superiores e foi ao ataque.
Bem que o caracol ainda tentou encolher-se na sua cápsula. Mas uma golpada do atacante abriu-lhe uma fenda a que se seguiram outros ataques.
Hábil a confundir seus predadores, o caracol fingiu-se morto e encolheu-se o máximo que pôde na sua carapaça.
O cágado bem tentou colocá-lo ente as mandíbulas e procurar engoli-lo mas jamais o volume da carapaça do caracol passaria pela sua garganta.
Cansando, o cágado teve de desistir, deixando o caracol ferido, mas vivo!

domingo, agosto 02, 2020

CHÁ DE "MARLEY"

- Wi, o Marley já chegou.
- Fala a sério, kamba dyami. Tens contigo o Bob?
- Sim. Chegou maduro, magro e muito forte. Canta músicas quentes que afugentam o frio.
Quem não domine as falas codificadas dos frequentadores matutinos e vespertinos da Lagoa do Terembembe, em Viana, pode pensar na ressurreição do ícone da música reggae e seu aparecimento em Luanda.
O que acontece, na mais pura verdade, é o uso da substância que se diz ter sido companhia predilecta do jamaicano Bob Marley.
E, na aurora, antes mesmo de o sol se apresentar aos homens, jovens dos 16 aos 35 anos contornam os cantos das casas que "dão" costas à vala e os arbustos para se dirigirem a uma ilha da lagoa, onde dizem afugentar o frio juliano, um exercício para baforadas repetido ao por-do-sol, acompanhado com estorcimento do corpo fumante.
Hoje, manhã cedo, duas vizinhas vozeiravam sobre chás.
Uma delas, a mais velha, estava exactamente a sair do local frequentado pelos amigos de Marley.
- Vizinha Maria foste colher jihasa? Também quero.
- Nada, minha mana. Fui buscar um pouco de chá para as crianças que estão com tosse.
- Oh! Na naka também plantaste chá? É chá de quê mesmo?!
- É Marley.
- Marley, vizinha Maria, é qual'ê tipo de chá?
- Ó mana Guidinha vem ver. Aproxima-te. Tens visto os moços aqui a se kangonyarem, nê? Agora que capinámos e semeamos batata e feijão, as sementes da Kangonya também germinaram e estão a apanhar a água da rega de outras plantas que dão comida.
- Oh, afinal Marley é Lyamba?
- Nunca ouviste os moços a se chamarem e a citarem o nome do artista jamaicano? Quando ouvires Bob Marley fica atenta. É isso. O chá dele é tiro-e-queda contra tosse, pestes animais e pode dar jeito na Covid-19.
Repartiram as folhas, verdes e de cheiro intenso, como manda a vida comunitária, e cada uma delas foi terminar o matabicho para os tundenge. O pão de cada dia ganhou um novo companheiro, o chá Bob Marley.