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segunda-feira, janeiro 25, 2021

O SECRETISMO DE BICESSE E A FUNGUTA A TODO-TERRENO

O ano de oitenta e nove "me acabou" como "recua". Estava em Kalulu, alojado no Lar de Estudantes da Missão Católica e estudando a sexta classe. A escola Kwame Nkrumah tinha dado férias de Natal. Na noite de 24 para 25 de Dezembro, os homens da Unita atacaram a Vila.

A viagem que seria normal, para ir passar as férias natalinas com a família na aldeia de Pedra Escrita, tornou-se viagem de fuga a pé. Foram 42+26+35 quilômetros, nos trajectos Kalulu-Munenga, Munenga-Pedra Escrita, Pedra Escrita Mbabgu-Yo-Teka.
É que, chegado à aldeia de Pedra Escrita, onde residia a família, três dias depois, chegaram os homens de quem tinha fugido e fui refugiar-me na aldeia natal de minha mãe, mais no interland.

Movido apenas pelo extinto de sobrevivência e vontade de estudar, carregava comigo uma pasta com os livros e cadernos, poucas roupas e um lençol e uma toalha. Fugir de homens da mata e que matam e esconder-se na mata era nada!

Em todo o país, a funguta ou kitota era intensa. Dizíamos que "o inimigo quer nos acabar". Afinal, queriam apenas mostrar que estavam presentes e conseguir ter voz à mesa de Bicesse, de onde nada saia para o povo fustigado. Porra! A guerra era demais!
Nós, em Kalulu, não sabíamos que a paz estava a ser negociada em Portugal e que a guerra estava para terminar.

Em Kalulu, os professores brigadistas, idos de outras terras que a guerra fazia distantes, decidiram voltar às suas vilas e aldeias por causa da "situação militar calamitosa". A guerra era demais. Todos os dias atacavam ali e acolá. As escolas todas estavam a fechar. As vilas estavam a encher de pessoas sem comida e sem casas. Num quarto e sala podiam estar abrigadas mais de dez pessoas. Cada virava-se como galinha solta que esgravata a terra e debica o que vê.

- Ano que vem (1990-91) não vai haver sétima e oitava classes. - Disseram e cumpriram os professores brigadistas. Fernando Kapequele, que fora meu mestre de Língua Portuguesa, era um deles e viajou comigo na fuga final para Luanda.

Nós que estávamos a terminar a sexta classe era "se desenrascar". Quem tivesse família em Luanda devia já preparar macroeira para viajar e ir "se matricular na Ngimbi".
- Vou-me embora. - Decidi ao terminar o ano lectivo.

Rumei para Luanda em finais de Julho, viajando com os professores que regressavam ao Sumbe, Gabela e Waku. Arranquei a mandioqueira da minha lavrita, feita nos dois anos em que vivi em casa de um primo Gonçalves Carlos (quando estudei o 4º Semestre do ensino de adultos e a 5ª classe) e fiz um bocado de macroeira "que viajei com ela". Afinal, "quem vai longe tem de levar sempre qualquer coisa", mesmo sendo ainda miúdo.

A passagem, mesmo por cima do IFA, estava isenta de pagamento. O comissariado tinha passado guia de marcha com isenção de passagem. Eram ainda bons tempos.

Foi assim que vim, pela segunda vez, ficar em Luanda. Se os homens de BICESSE nos dissessem, "não se preocupem, estamos a se entender para acabar de vez para todas a guerra", talvez a sétima e oitava continuassem em 1990-91, talvez aguentasse mais um bocado aquele "nkufu nfidilu"(estraçalhar de cágado a morrer) e ficasse em Kalulu para terminar o 3° nível.

Hoje que disseram "certificado da sexta classe tem valor", fui recuperá-lo para ir pedir emprego. Gosto de educação. O meu pai, antes de morrer disse "filho estuda para ser professor". Aceitei o desafio de trabalhar numa escola. Posso lavar pia ou regar jardim.

segunda-feira, janeiro 18, 2021

​IRMÃO PIRIGO

Era alto e magro. Seu nome, na criancice terá sido puto lombriga ou palitinho. Já a deixar a meia-idade, ganhou o hábito de gabar-se de sol a sol. 

- O meu nome já 'encosta na' lista dos 144 mil que vão 'no' céu!
Na igreja era até então chamado de "irmão Catorze-Quatro", em alusão aos três primeiros algarismos que na numeração árabe ganham, à direita, três zeros para completar o número dos "escolhidos", que segundo o livro da bíblia cristã, Apocalipse 14:01, vão governar a terra com Cristo, num executivo que terá o seu palácio no alto dos céus.
Na terra, dizia o irmão Catorze-Quatro, ficariam os bons mas que, pela sua medíocre obra evangélica,  não chegavam à sua excelência cristã. 
Catorze-Quatro tinha todos esses versículos de Apocalipse e Salmos 115:16 bem sublinhados e abria-os prontamente para se defender sempre que fosse afrontado por jovens reformistas e inconformados com a maneira como o templo físico era governado pelos “kotas” da velha guarda.
Catorze-Quatro nasceu numa missão evangélica e lá fez toda a sua instrução preparatória até à chegada da idade militar que lhe roubou o sonho de se tornar pastor ordenado, quando já frequentava o Seminário Emmanuel Unido, do Ndondi, no planalto angolano. Manteve, porém a vocação sacerdotal e fazia questão de se gabar de ser “um dos poucos escolhidos que conhecerão e trabalharão "caralmente" com o Messias no seu governo vindouro e sem fim".
Já a fazer a curva dos cinquenta, Pinto Kwononoka, de sua graça verdadeira, luta agora para ser elevado à categoria de diácono, ao mesmo tempo  que se esforça em ser um “velho-jovem", aderindo a todas as modas virtuais que lhe chegam pelas redes sociais.
Há já anos que as suas roupas se parecem à pele colada ao animal. Seus telefones são de último grito e tem plano infinito de internet que lhe permite passar a vida a dedilhar, mesmo durante os cultos dominicais. Na igreja, escolheu um lugar estratégico para a sua nova mania: senta-se próximo de um pilar de sustentação com uma saliência que faz um ângulo recto, onde disfarça o aparelho em que palavreia com os amigos durante o culto. E foi levando a sua "santidade de mentira" com a “cipala” semi-lavada até ao dia em que foi chamado para abençoar o ofertório da igreja.
- Irmão Catorze-Quatro, leva-nos a Cristo em oração! - Pediu o reverendo Kabwiza.
Sem tempo para desligar o telefone, o benquisto irmão da congregação elevou as mãos ao alto, antes dos habituais dois passos que separam o orador do assento, e começou a sua evocação.
- Meu Deus, mô papá, abre teus olhos e estende a tua mão aos nossos jovens. Cada dia há mais desvios. O "pirigo" está em cada esquina, em cada beco, em cada telefone, meu Jesus. Faz do teu espirito santo um pastor atento, mô papá, para nos proteger dos lobos presenciais e virtuais, mo Dedê (...) Em nome do seu filho, nosso irmão na carne, que espero me receba no seu governo celestial, amem!
Enquanto orava, a loira que do outro lado aguardava pelo "selfie", foi enfeitando o telefone do irmão Catorze-Quatro com mensagens eróticas e imagens, umas em estado "animalesco e em poses kamasutrais”, que divertiram, nos quinze minutos de sua longa "oração de perdão e abertura dos bolsos", os jovens que rápido se abeiraram da suas máquinas (telefone e a interlocutora da conversa virtual).
Quando se dirigiu ao assento, foi recebido com um criativo "irmão Catorze, temos de redobrar a vigilância e vergar cada vez mais o joelho, os telefones estão cheios de perigos"!
- Sim, irmãos. A mundo é um "pirigo" permanente! - Respondeu cabisbaixo, dando-se conta do "cinema sem bilhete que proporcionou à miudagem", ao mesmo tempo que eliminava as imagens com a “cipala” e o "peito alto" da “kindoza” que parecia uma barata “kuribeka”.
"Irmão 'Pirigo'", irmão Pirigoéé?! - Zombam hoje os jovens, dentro e fora da igreja, sempre que Pinto Kwononoka, o Catorze-Quatro, põe a cara fora do quintal. A sua fuma acompanha a expansão de Luanda, pois cada vez mais se escreve em todas as ruas onde é conhecido: "por cá também passou o Irmão 'Pirigo'"!

terça-feira, janeiro 12, 2021

TESTE À INTELIGÊNCIA E ÀS NORMAS ANTI COVID-19

A viagem, num carro "saltitante", já levava largas horas e tinha "comido centenas de quilômetros. Benguela estava já quase à vista. As paragens obrigatórias e voluntárias tinham passado meia dúzia e tudo valia para "enfeitar a boca" e entreter o condutor que não podia adormecer. Dizem os profissionais da estrada que o sono é pior do que o walende. E uma das conversas, não com os companheiros de viagem, mas ao telefone, foi assim.

- Alô!

- Sim!
- Ó chefe, ainda o teu nome é Kenhê?
- Sou Phande-a-Umba. Alguma coisa? Disponha, se faz favor.
- Sou eu o "comadante" do Katenge. O chefe, quando passou, me fez um alerta, mas a tal mensagem ainda me passou. A viata já lhe parámos aqui na nossa posi e já lhes medimos.
- Mas, o meu alerta é que eu vi, por duas vezes, a senhora a sair da camioneta antes de chegar à paragem e a atravessar a pé o recinto do controlo para retornar à viatura metros depois. Deviam inquirir se têm todos os requisitos exigidos para viajar.
- Mas, ó chefe, nós aqui no Katenge é somente medição!

segunda-feira, janeiro 04, 2021

EU E A OLIVETTI

Quem me vê/ouve teclar nota resquícios do vício da máquina mecânica. Sim. Aprendi a usar os dedos das duas mãos. Não todas mas as essenciais, aquelas ensinadas pelo manual de dactilografia da igreja ao pé do Triângulo do Rangel (Rua da Saúde).

Conseguido o Manual, que me foi ofertado por Ilda Branda que frequentara o curso, consegui uma Olivetti nova. Foi só prática e mais prática, sendo o requerimentista e redactor das mikanda oficiais de familiares, amigos e vizinhos.

Seguiu-se o "Curso de informática", na ENCO que, não me eliminou a força e a velocidade no teclar.
Pelo meio, ainda tive um curto contacto com a máquina de dactilografia electrónica, na LAC, que encontrei a fazer a travessia entre a Olivetti e o computador (1996).
No Porto, encontrei um pequeno museu com muitas "Olivettis". É bom mostrar à nova geração os caminhos da inovação tecnológica.
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