O ano de oitenta e nove "me acabou" como "recua". Estava em Kalulu, alojado no Lar de Estudantes da Missão Católica e estudando a sexta classe. A escola Kwame Nkrumah tinha dado férias de Natal. Na noite de 24 para 25 de Dezembro, os homens da Unita atacaram a Vila.
A viagem que seria normal, para ir passar as férias natalinas com a família na aldeia de Pedra Escrita, tornou-se viagem de fuga a pé. Foram 42+26+35 quilômetros, nos trajectos Kalulu-Munenga, Munenga-Pedra Escrita, Pedra Escrita Mbabgu-Yo-Teka.
É que, chegado à aldeia de Pedra Escrita, onde residia a família, três dias depois, chegaram os homens de quem tinha fugido e fui refugiar-me na aldeia natal de minha mãe, mais no interland.
Movido apenas pelo extinto de sobrevivência e vontade de estudar, carregava comigo uma pasta com os livros e cadernos, poucas roupas e um lençol e uma toalha. Fugir de homens da mata e que matam e esconder-se na mata era nada!
Em todo o país, a funguta ou kitota era intensa. Dizíamos que "o inimigo quer nos acabar". Afinal, queriam apenas mostrar que estavam presentes e conseguir ter voz à mesa de Bicesse, de onde nada saia para o povo fustigado. Porra! A guerra era demais!
Nós, em Kalulu, não sabíamos que a paz estava a ser negociada em Portugal e que a guerra estava para terminar.
Em Kalulu, os professores brigadistas, idos de outras terras que a guerra fazia distantes, decidiram voltar às suas vilas e aldeias por causa da "situação militar calamitosa". A guerra era demais. Todos os dias atacavam ali e acolá. As escolas todas estavam a fechar. As vilas estavam a encher de pessoas sem comida e sem casas. Num quarto e sala podiam estar abrigadas mais de dez pessoas. Cada virava-se como galinha solta que esgravata a terra e debica o que vê.
- Ano que vem (1990-91) não vai haver sétima e oitava classes. - Disseram e cumpriram os professores brigadistas. Fernando Kapequele, que fora meu mestre de Língua Portuguesa, era um deles e viajou comigo na fuga final para Luanda.
Nós que estávamos a terminar a sexta classe era "se desenrascar". Quem tivesse família em Luanda devia já preparar macroeira para viajar e ir "se matricular na Ngimbi".
- Vou-me embora. - Decidi ao terminar o ano lectivo.
Rumei para Luanda em finais de Julho, viajando com os professores que regressavam ao Sumbe, Gabela e Waku. Arranquei a mandioqueira da minha lavrita, feita nos dois anos em que vivi em casa de um primo Gonçalves Carlos (quando estudei o 4º Semestre do ensino de adultos e a 5ª classe) e fiz um bocado de macroeira "que viajei com ela". Afinal, "quem vai longe tem de levar sempre qualquer coisa", mesmo sendo ainda miúdo.
A passagem, mesmo por cima do IFA, estava isenta de pagamento. O comissariado tinha passado guia de marcha com isenção de passagem. Eram ainda bons tempos.
Foi assim que vim, pela segunda vez, ficar em Luanda. Se os homens de BICESSE nos dissessem, "não se preocupem, estamos a se entender para acabar de vez para todas a guerra", talvez a sétima e oitava continuassem em 1990-91, talvez aguentasse mais um bocado aquele "nkufu nfidilu"(estraçalhar de cágado a morrer) e ficasse em Kalulu para terminar o 3° nível.
Hoje que disseram "certificado da sexta classe tem valor", fui recuperá-lo para ir pedir emprego. Gosto de educação. O meu pai, antes de morrer disse "filho estuda para ser professor". Aceitei o desafio de trabalhar numa escola. Posso lavar pia ou regar jardim.
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