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quinta-feira, novembro 29, 2018

UM PASSEIO A KAXITU

Viajar, nos dias de hoje, de Luanda para outras províncias, por estrada, é preciso rezar ao terço, ganhar coragem e inspiração. E quando o objectivo da viagem é visitar um ente enfermo em hospital, "a pessoa vai já com o coração 'ensalsado'", como apimentam as nossas mamãs. Luanda a Kaxitu são uns, às vezes,  nada fáceis sessenta e tal quilómetros que levam a enfrentar táxi apertado, onde haja obras, taxistas barulhentos com suas músicas dislateiras sempre em volume alto, lotadores-bandidos-kibioneiros, etc. "Só Jesus na causa"!

No táxi, um coumbi de nove lugares adaptado para o dobro, a algazarra de vozes nos remete ao interior do mercado Roque Santeiro, no seu auge. Uns discutindo inteligência entre angolanos e zairenses, outros esperteza entre os catetenses e outros povos e outros ainda "mangando" a passividade dos ovimbundu e sua propensão para a migração interna e adaptação à trabalhos agrestes. Tudo como que procurando o sexo dos anjos, conversa só para encurtar distância e dar alguma utilidade à função bocal de falar.
- Xê, nós de Catete não gostamos abuso. Quem abus'apanha. - Atirou uma jovem, nos seus vinte e poucos anos.
- Mô marido é de Malanje, "malanjinho" num paga renda. - Ripostou outra.
Xê, você falá zazá é boelo. "Jurro com dieux", angolano "no" matemática num apanha langa. Langa, língua lingala e francês fala bem. Vocês matemática, cabeça água-água. - Defendeu-se um jovem em tom alto para se fazer ouvir numa algazarra de vozes desencontradas. Mas não era tudo ainda.


De paragem em paragem uns saiam e outros entravam. Quando a vítima da estiga se ausentasse outro cobria-lhe o lugar para sofrer ou defender a honra maculada. E, se razões para mais "consumição", inexistissem, alguém inventava algo.
- Ei mano, você que "entraste" agora, és do "sulu", não é?
- Sim, mana, sou de Kamakupa.
- Mostra ainda o teu Bilhete.
O jovem vasculhou as algibeiras todas e a mochila. Dos papéis que ocasionalmente lhe saiam dos bolsos, nada se parecia a bilhete de identidade ou sua réplica.
- Mana, bilhete, assim no táxi, é então p'ra quê? - Procurou defender-se.
- Num vos disse, os do "sulu" quando vêem aqui, primeiro emprego deles é trabalhar na fábrica de blocos. Nem bilhetes não têm. O único documento deles são cópias de facturas dos clientes. - Estigou a moça que se dizia de Luanda.
 
Um riso total instalou-se na multidão. O moço preferiu manter-se em silêncio até que as plaquetas das gargantas dos estigadores ficaram ressequidas e os estômagos dos que riam desalmadamente doridos. Respondeu depois.
- Mana é a situação. Mas se ainda "nó" sabe, vou lhe dizer que gente do sul, mesmo velho que se arrasta, sabe ler e escrever. Nos lá no centro, que vocês analfebisticamente chamam sul, toda gente andou na escola e na igreja e, por isso, aprendeu a respeitar os semelhantes, os animais e a própria natureza.
Foi o remate final e a conversa mudou de rumo. Eventualmente, cada um daqueles afoitos estigadores se perguntasse, no seu íntimo, o que significava analfabetisticamente e mais outras loisas disparadas num português cantado como hino religioso. A romaria católica à Muxima, própria de Setembro, preencheu o espaço percorrido até à paragem final. Seriam outras gentes, outras falas e outras cenas...

Chegado a Kaxitu, tempo ainda de adentrar o hospital, em hora recomendada para visita, vestido de pano até ao joelho, como mandam os bons costumes (mulher não deve expor zonas púdicas ou íntimas em público), surge pela frente o "camarada segurança" a travar a marcha.

- Minha senhora, sem pano por cima não entra- Atirou o segurança, kalashikov na mão, a impor respeito.
- Kokolo dyami, ngi banga kyebi? Assim, então, irmão chefe-segurança, saí de Luanda para visitar parente que lhe internaram aqui, família próxima não tenho, faço o quê, mô deuju?!
- É ordem superior.- Repetiu autoritário o segurança, sem mais nem menos.
- Mas, mano-chefe, esse ordem superior então é quenhê nome dele, se meu vestido é 'mbora mesmo de ir com ele na igreja Católica apostólica romano, vestido que uso na promaica e tudo? Camá odêpê, faxavor, meu irmão. Me mostra com ele, esse ordem superior, para me explicar se Muxima, nossa Senhora, é menos importante que hospital.
Pela ordem superior o segurança ficou. Nem à chefia imediata recorreu para dirimir a (in) conformidade do "pano para todas". À "mamã das perguntas", como ficou conhecida naquele primeiro de Setembro, mês de Neto, apenas uma solução, apenas uma se mostrou. Hipotecar a sua carteira, com telefone e tudo, em troca de uma tira de tecido para reforçar a cobertura do corpo, da cintura ao joelho.
Para piorar a situação de quem já é a azarenta, ao sair da visita, terá passado próximo do hospital Provincial um carro daqueles que carregam fiscais que correm com as quitandeiras de esquina e a mana do pano já lá não estava. Pasta, telefone, dinheiro, tudo foi. Apenas os prantos ficaram. Com os prantos da idosa, a alegria do segurança-chefe e do seu ordens superiores de "pano para todas, sem excepção"!


Publicado pelo Caderno Fim-de-semana, Jornal de Angola, 9/9/2018

domingo, novembro 25, 2018

NA PRAÇA VERMELHA

Já tinha tido antes uma pequena experiência de tentar pôr o coiso na coisa, com cuspo, e, entalado entre os músculos, gritar "ai, xta doce! ", mas sem que algum efeito estranho, prazeiroso ou de acelerar o coração, bombear o sangue e avolumar os músculos fosse verificado. Era apenas uma brincadeira de papá e mamã e foi há muitos anos.
A caminho da adolescência e juventude, o tempo é curto. O sonho é ser mais velho e livre, fazer coisas proibidas pelos makota e ser como eles. Surrar os dikotas malaikes, namorar as moças mais vistosas, mesmo sem o lado lidiminoso apurado ainda, deixar os cocoritos e, às vezes, a porrada de "cagar bichos" que os mais valho nos infringiam com a sua doutrina militarista de "forjar o ferro no fogo do sofrimento" e desgraça. E diziam vaidosos:
_ Sofrimento forja. O suor que se gasta no treino é sangue que se poupa no combate.
Foi nesses termos que atingi o ano 12 da minha existência.
A minha prima Fátima estava casada com um tropa da FAPA-DAA. Vivia no bairro popular e ele no Huambo onde pilota a helicóptero. A sua mãe, acometida de uma patologia que me escapa, vivia na rua 10 da Comissão do Rangel. Momentos após ao seu passamento, meu tio foi cuidar da casa que se achava desocupada. Anro 5-A, junto ao beco longitudinal que cortava a urbanização em quatros blocos, pois a escola ocupava o quarteirão todo e interrompida o beco. A moradia de dois quartos é sala, construída em placas de betão pré-fabricadas, tinha anonácea pequena, trepa deitas de flores vrrmelha à volta do quintal, goiabeira pequena e uma mangueira já grande e que dava fruta duas vezes por ano. Verdes ou maduras, a árvore tinha sempre mangas. Era nela que me divertia, quando não tivesse aulas ou antes delas. Imitando simios, pulava de ramo em ramo, provando se as mangas estivessem ou não prontas para a colheita.
Na parte traseira da nossa casa vivia um casal de Nguengo. O pai era ausente. A mãe, cabelos longos e muito simpática, era nossa mana mais velha. Tratava-a por tia Helena, mãe do Feito e outros irmãos, duas eram gémea. O "ti- Fausto", contemporâneo de meus primos já jovens era tio do meu amigo Feito.
A Amélia era vizinha da casa dianteira, casa colada ao beco. A mãe trabalhava na ODP que ficava na ponta da rua, na perpendicular com a Comandante Cantiga e início da Rua de Bissau.
A menina devia ter a minha idade, um ou dois anos mais velha no máximo. Frequentava com regularidade a nossa casa onde o arroz-doce o feijão e as mangas não faltavam. Também fazia pequenos serviços. Ora me ajudando, a meu pedido, ora a pedido do meu primo Zito que era FAPLA em licença de saúde, depois de ter levado uma bala encravada no tornozelo, na célebre batalha que apagou o temível Tembi Tembi.
A amizade entre Zito e ela, Amélia, embora pequena, era muito próxima que a minha amiga deixava de me dar confiança quando ele estivesse em casa.
Pior, foi quando o tempo de licença terminou e decidiu não voltar ao Moxico. Tornou-se caseiro e as minhas brincadeiras com a Amélia mínguaram.
Uma vez estava eu com a panela de arroz-doce no fogão primix (a petróleo com injecção de oxigénio), decidi trepar à mangueira do quintal e colher duas mangas que se mostravam amarela. Entre eu e os passarinhos alguém tinha de chagar primeiro. A Amélia viu-me pela rua e anunciou.
- Posso antrar, não vais me bater?
- Podes.
- Teu primo não está aí?
- Não.
Meu tio e o meu outro primo (a quem até hoje trato por mano Arnaldo) eram trabalhadores. Um na autoprotecção da Enatel e outra na CPPA. Só o Zito, que passou a fugir das rusgas, ficava em casa, mas nesse dia havia saído.
A Amélia entrou e propôs um pacto.
- Vou te ajudar a lavar a loiça e varrer o quintal, desde que partilhes o teu Matabicho, arroz doce, comigo.
Não titubiei. Arroz cozido, arroz partilhado. Depois da refeição outra sugestão.
- Quero descansar. Podes estender o teu luando e dormirmos juntos no vosso quarto?
Eu partilhava o quarto com o meu irmão polícia que não podia saber que uma miúda estranha o adentro. Na inocência, estendi a lona militar, e lá nos metemos.
-Pega também o lençol. - Sugeriu para acrescentar: "Apaga a luz e fecha as portas e janelas".
Obedeci. Momentos depois, ela já percorria toda minha inocente biografia.
- Tira a roupa.
Tirei sem perguntar por quê.
- Vem por cima de mim.
Comecei a sentir estranheza, mas obedeci.
Pegou a minha pistola. Demorou carregar e tal só aconteceu por causa de umas manobras perigosas da inimiga.
- Põe a pistola na trincheira funda da revolução.
Pu-la. Porém, a relva que circundava a trincheira foi um incómodo.
- Faz assim, assim, assim. Mete tua língua na minha boca.
Tudo novo. Cumpri as ordens entre desconforto e curiosidade. Uns passos e vozes conhecidas fizeram interromper a operação. Era o Zito e o Fausto, dois fugitivos da vida militar.
- Amanhã Virei mais. Faz de novo arroz-doce.
Dia seguinte, fui às bombas compara petróleo, acarretei água, preparei o fogão, a panela do feijão que se seguiria ao arroz-doce e, com o arroz a enxugar, trepei a árvore para controlar os movimentos da Amélia e fazer-lhe o convite.
- Podes vir.
Não demorou. Comemos o arroz e momentos depois, na mesma Praça Vermelha, com a cor da revolução, fui comido como no dia anterior. Desta vez, de forma gostosa, pois já sentia algum sangue bom a correr em mim.
Ao terceiro dia, já possuído de lídimo, fiz o convite. Mas na hora dos vamos ver, o meu primo Zito, com dinheiro na mão conseguido num kadyenge qualquer, e talvez farto de arroz com feijão daquela época, manda-me à Praça das Corridas comprar peixe. Fui e voltei a correr, fazendo vênia ao nome do mercado que ficava ao pé do Supermercado Nzala ikola de António Silvestre.
Como manga doce tem sempre pretendentes, ao chegar à casa não vi nem a Amélia, nem meu primo Zito.
Procurei estudar os movimentos dela e nada. Decidi ficar na parte dianteira do quintal que me ajudaria ver a Amélia a passar. Qual meu espanto?
Receoso de que eu descobrisse e eventualmente contasse ao tio ou ao mano, o primo Zito faz a Amélia pular pela janela frontal do quarto, exactamente no sitio onde eu me encontrava. Só tive tempo de falhar-lhe uma galheta, ganhando uma valente sova do primo kwemba filipado, de muitas batalhas militares no leste de Angola, e rebarbado.
Assim fui "deflorado" na praça Vermelha!

quinta-feira, novembro 22, 2018

NGOMA, KISAKA E XOXOMBO

Nasceu Xoxombo. A escola nomeou-o António Silva. Sabe-se lá, por que carga d'água, na adolescência e toda juventude que não viveu completa, ficou mais conhecido pelo nome de nascença. Xoxombo na escola, na aldeia e até n’outras andança pouco conseguidas.

Desde pequeno se revelou inteligente, regatado e pouco dado a traquinices. Não era como o seu puto Sabalu-a-Soba, galão galanteador. Os atributos de XOXOMBO fizeram com que, a entrar para os "meses do acordo de Alvor", que se seguiu ao golpe militar na ‘metroia’, tivesse já a sua quarta classe, do tempo colonial e não doutro tempo qualquer, bem feitinha. Contava uns doze ou treze anos, algo incomum, naquele tempo, sobretudo para um filho de negro contratado, ainda mais filho de um simples tractorista que evoluiu para camionista de patrão alemão.

 Xoxombo estudou mais. Mas, mais e mais, a vida lhe foi agreste. Chegou a guerra pós-independência e teve de empregar-se como professor brigadista da "Comandante Dangereux", ‘combatente da linha de frente’, isento, por dois anos, do serviço militar obrigatório. Aos vinte anos, estava em Luanda, capital de sonho de todo jovem do interior. Era a forma de evitar a farda militar.

No ano em que não lhe foi renovada a licença professoral, teve de voltar à aldeia de Munenga, onde a ausência de "quadros" permitia o ingresso imediato na educação. Contava já uns anitos acima do vigésimo. Sempre jovem polido, trato fino, modos requintados e um português com sotaque saxônico, aprendido dos alemães em cuja casa o pai trabalhava e ele crescera. Xoxombo era, aos olhos das mocitas ardentes de desejos pecaminosos um ‘virgem por deflorar’.

- Mano Xoxombo num me paquera só por cá di quiê?- Questionavam-se sedentas e sedutoras aos olhos cegos de Xoxombo. Só livros. Só debates, só prosa. Xoxombo para as moças, um invisual.

 À roda, no folclore do bairro, à sexta à noite ou noutro dia qualquer luarento, a música era vezeira:

 - Wombela, Wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela.
- Nange, nange, kate okyo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo Wombela!

 Felicidade alheia, tristeza sua. António Silva, o mais culto do vilarejo, afogava as mágoas em destilados etílicos que o levavam a fermentar força de rinoceronte na profundidade das águas do Longa, rio de sua natalidade umbilical. E Xoxombo, já sem o pudor da educação do berço, sem mais o comedimento urbano que muito cultivou, sem mais a paciência que aprendera com os missionários, saia em defesa de sua "dama desonrada". Chamava uns tantos impropérios aos que com gargantas ressequidas continuavam cantarolando. Até que que rouco, como as que o insultavam procurando por uma reacção mais erótica, se cansava e ao quarto, no silêncio da cama solitária, se escondia meio satisfeito e meio envergonhado, ouvindo aquele coro que com o tempo deixaria de ser chacota.

 - Nange, nange, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate kyo wombela!

 (de tanto "secar", Xoxombo-nome masculino- teve de infiltrar-se de soslaio na "kandumba" ou caserna, onde os rapazes mais espevitados de sua idade costumam deleitar-se, à calada da noite, da quentura prazerosa de suas musas).

O terreiro em que se canta é um espaço mais largo, entre várias casotas que variam entre o adobe cru e pau-a-pique, cobertas umas de zinco já acastanhado pelas incontáveis chuvas e calor, outras com colmos de capim que fumegam as nascer e por do sol ofuscado pelo nevoeiro. O chão parece cimentado, de tanto rebatido que está o solo másculo. O folclore é de sempre e já vai na quinta geração. Apenas os executantes é que se revelam de década em década ou mesmo, nos dias que correm, de quinquénio em quinquénio.

Machos, de mostrar o punho e medricas de esconder a espada sempre houve na vida das comunidades. Canções que mantêm a melodia e inovam a letra também. Essa é apenas mais uma. E o sortudo(?) é António Silva, Xoxombo, o professor de feliz memória.

- Wombela, wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo Wombela.
- Nange, nange, kate okyo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

A roda progressiva em que dançavam tinha no centro o tocador de ngoma e, à cabeça, a tocadora de kisaka "chocalho". De tão exímios que eram, os maestros  pareciam apenas transmitir aos instrumentos, ngoma e kisaka, sinais recebidos do além. Dizia-se que “tocavam com a sabedoria de seus avoengos já há muito nos ‘malombe’”. Era ritmo e cadência nunca vistos antes.

De repente, o círculo pequeno, no início, abriu-se. Cinco metros de raio e dez de diâmetro a engolir a aldeia toda. Man-Kibyona, afamado trapaceiro, diferente do comedido Xoxombo, meteu-se na dança. Antes, tinha ficado encostado a uma parede a apreciar as dançantes, a comê-las com os olhos. Quando se meteu na roda, as mulheres mais avisadas endireitaram o pudor. A cada aproximação do Man-Kibyona as damas aceleravam o passo para deixar distância à recta-guarda ou davam passo à direita. Isso contribuía também para o alargamento do círculo e a entrada na roda de mais rapazes e raparigas, todos acordadas pelo roncar da ngoma, farfalhar íntimo da kisaka e vozes melodiosas espalhadas pelo vento.

Os passos eram cadenciados, curtos e rápidos, às vezes. Dois ou três à frente e menor número para trás. Não se atropelavam. Os pés estavam poeirentos mas não eram pisadelas. Era a participação do solo naquele convívio dançante e repleto de emoção. E, em solilóquio, Xoxombo tudo ouvia e tudo consentia. Os galanteios e os desvaneios.
 -Wombela, Wombela, Xoxombo wombele; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

Um dia sentiu vontade. A coragem terá sido mais forte do que ele fora até à data. Imaginou um quimone apertado, desenhando a mamália. Uns panos riscados e lindos mal amarrados à mbunda que se desprendem do corpo no caminho da dança em que ele era o tocador único de ngoma e ela a tocadora e cantora única de kisaka. Fez do sonho verdade. Ao quinto mês, Kamone era já mulher feita. Nos folguedos com ngoma já o seu dançar era com requinte e discrição. E a chacota encontrou outro personagem.

Publicado pelo Jornal Cultura a 08 de Outubro de 2018

quinta-feira, novembro 15, 2018

O RELÓGIO

Não o do velho Trinta. Refiro-me ao que anda no seu pulso. Marca horas?
Era outra a serventia doutora, quando o relógio suíço, de corda, ainda não eram os a pilha, tinha elevado valor no pulso ou fora dele, dando charme ao homem que o carregava mas dando também horas certas para o trabalho, compromisso com a namorada marcado via bilhete ou telefone fixo. Era outro tempo e outras utilidades.
Com o relógio suíço vieram outros marcas e outros adornos: metal dourado, circunferência ou rectângulo e bracelete diamantados. Os adornos vão, hoje, desafiando a imaginação e o bolso. Quem tem dinheiro tem relógio e quem não tem valores usa qualquer coisa parecida a relógio. Com os adornos vieram outros hábitos. Enquanto periférico para a indumentária de homens e mulheres, o relógio se mantém nos pulsos. Só as horas é que nem sempre mostra. Vejamos:
Homens e mulheres que não se desgrudam dos "dikumbi" quando perguntado "que horas são"? Raras vezes enviam os olhos ao pulso que carrega o telefone. A mão vai ao bolso, saca o telefone e deste lêem a hora.
Muitos utilizadores de hoje ignoram a numeração romana que era (são) frequente nos relógios doutro (e desse) tempo.
Expressões costumeiras como "um quarto para as dez", "cinco e meia" ou "passam cinco das dez" deixaram de ser ouvidas, sobretudo da boca dos mizangala que usam as colecções mais vistosas dos últimos lançamentos das principais marcas de relógios.
Os relógios não desapareceram. As fábricas continuam a produzir relógios com cada vez mais requinte. O seu uso continua a ser apregoado, porém, apenas como adereço decorativo. Já não "emite" horas. Muitos estão avariados e há muito!
Leve agora os olhos ao seu antebraço que transporta o relógio e diga, em voz audível, que horas marca.


Publicado pelo jornal Nova Gazeta de 16/08/18, pg.4.

quinta-feira, novembro 08, 2018

LUSAKA DOS MEUS OLHOS

- Hei, atenção! Vem carro em alta velocidade na tua direcção.
Não era, não senhor. Simples. O susto seguido de SOS se deveu ao sentido de orientação do trânsito rodoviário, processado no lado oposto ao nosso.
Quem não está habituado, pode ter o coração aos pulos, no primeiro impacto. Refeito do susto, adentramos a cidade. Os territórios encravados (sem mar) têm uma forma própria de ser e estar. A cidade fundada em 1905 por britânicos comandados por Cecil Rodhes não foge à regra. Amplos espaços verdes entre avenidas e instalações habitacionais e ou repartições públicas, limpeza a condizer e ordem, acima de tudo.
- A existência da pena perpétua e pena de morte até há três anos fizeram com que houvesse ordem e moralização. Aqui, conta o angolano residente, "um olhar masculino, se mal interpretado pela destinatária, pode levar à cadeia. Por isso, mwangolês, prudência nos actos". - Recomendou preventivo.
A cidade não tem os "apalpa céus" das cidades litorâneas como Luanda. Tem apenas uns poucos que se contam os andares sem buscar fôlego. Mas em termos de jardins, jardinagem, higiene, limpeza e moralização dos munícipes para cuidar o bem público são eles que arranham os céus da boa cidadania.
Como qualquer outro povo, os cerca de 17 milhões de zambianos têm também suas fraquezas. Bem, fraqueza e pontos fortes que dependem de quem julga e da pauta que orienta o  juízo. Esse juiz acha-os "fracos" em ter carne tenrinha e em abundância a bom preço. Um "T-bone" com xima custa metade um terço do que custaria em Luanda. O mesmo dir-se-ia de outras carnes menos comestíveis, provenientes do vizinho Zimbabué. O consumo de álcool é desincentivado. As festas têm regra. Fazer barulho a céu aberto e por tempo prolongado só pode ser obra de um atrevido destemido. O dinheiro, ao que vi e ouvi, não fala todas as línguas. O Kwacha é mais ou menos estável, perto de $11 por cada dólar, e há bom tempo que não se recordam do exibicionismo de outras paragens conhecidas na África lusófona austral.
Dois anciãos, um homem e uma mulher, são tidos como símbolos da moralidade e da manutenção dos bons costumes. Um é o primeiro presidente, o grande father Kenet Kawnda. Outra é a vice-presidente do Mr. Edgar Lungo, a Senhora Inonge Wina.  E os angolanos que conheci em terras de Kawnda perguntavam "como é que o presidente da República, em vez de pegar um jovem como coadjutor, foi logo encontrar uma velhota?"
Simples. So simple. Se você quer coadjutor que aconselhe, que possa dizer "chefe/filho não vá por esse caminho, vá por aquele outro", encontre quem tenha autoridade moral para o efeito. Queres quem só diga "o chefe está certo?" Pegue um puto da libaju que só queira e saiba conjugar o verbo ter. É como percorrer distâncias. Se é para andar rápido, vá sozinho. Porém, se for um caminho distante e em segurança, só acompanhado!

sexta-feira, novembro 02, 2018

QUANDO SE DESTAPA O VÉU DA FALSA REVERSIBILIDADE DA MORTE

Nas comunidades rurais e periurbanas conservadoras não se permite a frequência de infantes aos óbitos muito menos aos funerais. Morte é bastante dolorosa para que as crianças sejam esposas a ambientes de elevada comoção. Às vezes órfãos menores, e para evitar o choque, eram aclamados com expressões como "seu pai viajou ou sua mãe foi à cidade ver um familiar".
O cidadão educado nessas circunstâncias apenas começa a se aperceber do verdadeiro significado da vida e da morte na adolescência plena ou mesmo a entrar para a juventude.
Nessas idades, certas proibições e inibições se tornam permissões e, às vezes obrigações. Mas o recém entrado ao convívio dos adultos não tem ainda a maturidade suficiente. Não raciocina até ao limite das suas faculdades. Assim, frequentar aos óbitos e funerais são tomados, ainda como se "de diversão se tornasse". Vai para conversar, para se divertir, para ajudar no que lhe for solicitado e, nalguns casos, para comer e beber em fartura, pois os óbitos têm sido locais para que "bons comensais" façam gosto à arte, próprio da juventude que pela libertação de calorias precisa de repor energia em qualidade e quantidade.
Aos jovens não visitados pelo infortúnio, a morte se torna normal, sem dor, apenas um caminho a que todos seguem. Que é, é. Mas... É já quando a emoção dá lugar à razão pura e surge a crítica de tudo quanto nos é posto à frente, que a morte se torna anormal. O nosso subconsciente resiste em aceitá-la. As vezes se conserva o cadáver por tempo considerável, enquanto se fica entre a certeza da morte e a reversibilidade dela. Chora-se a meio gás. Acredita-se e não se acredita no passamento para outra dimensão da vida Apresenta-se a realidade de forma eufemística, como se quem deixou de se mover e de falar recuperasse essas faculdades e com o seu ser e estar de costumes voltasse, mais minutos, menos minutos, ao nosso convívio.
Chega, porém, o dia e a hora em que desaba o tecto dessa "crença miúda da reversibilidade". E aí, caímos na real. O nosso ente já não volta. Nem em parte estará connosco, pelo menos fisicamente. Vamos deixá-lo num campo onde impera o silêncio. Onde não se visitam os entes mas apenas o campo medonho. E o mundo desaba. É o fim que nos leva a reflectir também sobre o nosso fim. Quando chega esse momento, nada mais vale. As flores, a campa de mármore, os adornos, os títulos, as posses conseguidas e aquelas com que é bafejado no último adeus... Nem mesmo as roupas novas o cemitério chick ou a urna cara. Nada mais tem valor.
Aos de bom coração restará apenas agradecer tudo de bom quanto aconteceu. A vida, a amizade, os convívios e até algumas brigas para apimentar as relações. É o que fica na recordação, quando a saudade insistente bater à porta. Nada mais!

Texto publicado pelo Jornal de Angola de 04.11.2018