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quinta-feira, novembro 22, 2018

NGOMA, KISAKA E XOXOMBO

Nasceu Xoxombo. A escola nomeou-o António Silva. Sabe-se lá, por que carga d'água, na adolescência e toda juventude que não viveu completa, ficou mais conhecido pelo nome de nascença. Xoxombo na escola, na aldeia e até n’outras andança pouco conseguidas.

Desde pequeno se revelou inteligente, regatado e pouco dado a traquinices. Não era como o seu puto Sabalu-a-Soba, galão galanteador. Os atributos de XOXOMBO fizeram com que, a entrar para os "meses do acordo de Alvor", que se seguiu ao golpe militar na ‘metroia’, tivesse já a sua quarta classe, do tempo colonial e não doutro tempo qualquer, bem feitinha. Contava uns doze ou treze anos, algo incomum, naquele tempo, sobretudo para um filho de negro contratado, ainda mais filho de um simples tractorista que evoluiu para camionista de patrão alemão.

 Xoxombo estudou mais. Mas, mais e mais, a vida lhe foi agreste. Chegou a guerra pós-independência e teve de empregar-se como professor brigadista da "Comandante Dangereux", ‘combatente da linha de frente’, isento, por dois anos, do serviço militar obrigatório. Aos vinte anos, estava em Luanda, capital de sonho de todo jovem do interior. Era a forma de evitar a farda militar.

No ano em que não lhe foi renovada a licença professoral, teve de voltar à aldeia de Munenga, onde a ausência de "quadros" permitia o ingresso imediato na educação. Contava já uns anitos acima do vigésimo. Sempre jovem polido, trato fino, modos requintados e um português com sotaque saxônico, aprendido dos alemães em cuja casa o pai trabalhava e ele crescera. Xoxombo era, aos olhos das mocitas ardentes de desejos pecaminosos um ‘virgem por deflorar’.

- Mano Xoxombo num me paquera só por cá di quiê?- Questionavam-se sedentas e sedutoras aos olhos cegos de Xoxombo. Só livros. Só debates, só prosa. Xoxombo para as moças, um invisual.

 À roda, no folclore do bairro, à sexta à noite ou noutro dia qualquer luarento, a música era vezeira:

 - Wombela, Wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela.
- Nange, nange, kate okyo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo Wombela!

 Felicidade alheia, tristeza sua. António Silva, o mais culto do vilarejo, afogava as mágoas em destilados etílicos que o levavam a fermentar força de rinoceronte na profundidade das águas do Longa, rio de sua natalidade umbilical. E Xoxombo, já sem o pudor da educação do berço, sem mais o comedimento urbano que muito cultivou, sem mais a paciência que aprendera com os missionários, saia em defesa de sua "dama desonrada". Chamava uns tantos impropérios aos que com gargantas ressequidas continuavam cantarolando. Até que que rouco, como as que o insultavam procurando por uma reacção mais erótica, se cansava e ao quarto, no silêncio da cama solitária, se escondia meio satisfeito e meio envergonhado, ouvindo aquele coro que com o tempo deixaria de ser chacota.

 - Nange, nange, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate kyo wombela!

 (de tanto "secar", Xoxombo-nome masculino- teve de infiltrar-se de soslaio na "kandumba" ou caserna, onde os rapazes mais espevitados de sua idade costumam deleitar-se, à calada da noite, da quentura prazerosa de suas musas).

O terreiro em que se canta é um espaço mais largo, entre várias casotas que variam entre o adobe cru e pau-a-pique, cobertas umas de zinco já acastanhado pelas incontáveis chuvas e calor, outras com colmos de capim que fumegam as nascer e por do sol ofuscado pelo nevoeiro. O chão parece cimentado, de tanto rebatido que está o solo másculo. O folclore é de sempre e já vai na quinta geração. Apenas os executantes é que se revelam de década em década ou mesmo, nos dias que correm, de quinquénio em quinquénio.

Machos, de mostrar o punho e medricas de esconder a espada sempre houve na vida das comunidades. Canções que mantêm a melodia e inovam a letra também. Essa é apenas mais uma. E o sortudo(?) é António Silva, Xoxombo, o professor de feliz memória.

- Wombela, wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo Wombela.
- Nange, nange, kate okyo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

A roda progressiva em que dançavam tinha no centro o tocador de ngoma e, à cabeça, a tocadora de kisaka "chocalho". De tão exímios que eram, os maestros  pareciam apenas transmitir aos instrumentos, ngoma e kisaka, sinais recebidos do além. Dizia-se que “tocavam com a sabedoria de seus avoengos já há muito nos ‘malombe’”. Era ritmo e cadência nunca vistos antes.

De repente, o círculo pequeno, no início, abriu-se. Cinco metros de raio e dez de diâmetro a engolir a aldeia toda. Man-Kibyona, afamado trapaceiro, diferente do comedido Xoxombo, meteu-se na dança. Antes, tinha ficado encostado a uma parede a apreciar as dançantes, a comê-las com os olhos. Quando se meteu na roda, as mulheres mais avisadas endireitaram o pudor. A cada aproximação do Man-Kibyona as damas aceleravam o passo para deixar distância à recta-guarda ou davam passo à direita. Isso contribuía também para o alargamento do círculo e a entrada na roda de mais rapazes e raparigas, todos acordadas pelo roncar da ngoma, farfalhar íntimo da kisaka e vozes melodiosas espalhadas pelo vento.

Os passos eram cadenciados, curtos e rápidos, às vezes. Dois ou três à frente e menor número para trás. Não se atropelavam. Os pés estavam poeirentos mas não eram pisadelas. Era a participação do solo naquele convívio dançante e repleto de emoção. E, em solilóquio, Xoxombo tudo ouvia e tudo consentia. Os galanteios e os desvaneios.
 -Wombela, Wombela, Xoxombo wombele; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

Um dia sentiu vontade. A coragem terá sido mais forte do que ele fora até à data. Imaginou um quimone apertado, desenhando a mamália. Uns panos riscados e lindos mal amarrados à mbunda que se desprendem do corpo no caminho da dança em que ele era o tocador único de ngoma e ela a tocadora e cantora única de kisaka. Fez do sonho verdade. Ao quinto mês, Kamone era já mulher feita. Nos folguedos com ngoma já o seu dançar era com requinte e discrição. E a chacota encontrou outro personagem.

Publicado pelo Jornal Cultura a 08 de Outubro de 2018

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