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quinta-feira, novembro 29, 2018

UM PASSEIO A KAXITU

Viajar, nos dias de hoje, de Luanda para outras províncias, por estrada, é preciso rezar ao terço, ganhar coragem e inspiração. E quando o objectivo da viagem é visitar um ente enfermo em hospital, "a pessoa vai já com o coração 'ensalsado'", como apimentam as nossas mamãs. Luanda a Kaxitu são uns, às vezes,  nada fáceis sessenta e tal quilómetros que levam a enfrentar táxi apertado, onde haja obras, taxistas barulhentos com suas músicas dislateiras sempre em volume alto, lotadores-bandidos-kibioneiros, etc. "Só Jesus na causa"!

No táxi, um coumbi de nove lugares adaptado para o dobro, a algazarra de vozes nos remete ao interior do mercado Roque Santeiro, no seu auge. Uns discutindo inteligência entre angolanos e zairenses, outros esperteza entre os catetenses e outros povos e outros ainda "mangando" a passividade dos ovimbundu e sua propensão para a migração interna e adaptação à trabalhos agrestes. Tudo como que procurando o sexo dos anjos, conversa só para encurtar distância e dar alguma utilidade à função bocal de falar.
- Xê, nós de Catete não gostamos abuso. Quem abus'apanha. - Atirou uma jovem, nos seus vinte e poucos anos.
- Mô marido é de Malanje, "malanjinho" num paga renda. - Ripostou outra.
Xê, você falá zazá é boelo. "Jurro com dieux", angolano "no" matemática num apanha langa. Langa, língua lingala e francês fala bem. Vocês matemática, cabeça água-água. - Defendeu-se um jovem em tom alto para se fazer ouvir numa algazarra de vozes desencontradas. Mas não era tudo ainda.


De paragem em paragem uns saiam e outros entravam. Quando a vítima da estiga se ausentasse outro cobria-lhe o lugar para sofrer ou defender a honra maculada. E, se razões para mais "consumição", inexistissem, alguém inventava algo.
- Ei mano, você que "entraste" agora, és do "sulu", não é?
- Sim, mana, sou de Kamakupa.
- Mostra ainda o teu Bilhete.
O jovem vasculhou as algibeiras todas e a mochila. Dos papéis que ocasionalmente lhe saiam dos bolsos, nada se parecia a bilhete de identidade ou sua réplica.
- Mana, bilhete, assim no táxi, é então p'ra quê? - Procurou defender-se.
- Num vos disse, os do "sulu" quando vêem aqui, primeiro emprego deles é trabalhar na fábrica de blocos. Nem bilhetes não têm. O único documento deles são cópias de facturas dos clientes. - Estigou a moça que se dizia de Luanda.
 
Um riso total instalou-se na multidão. O moço preferiu manter-se em silêncio até que as plaquetas das gargantas dos estigadores ficaram ressequidas e os estômagos dos que riam desalmadamente doridos. Respondeu depois.
- Mana é a situação. Mas se ainda "nó" sabe, vou lhe dizer que gente do sul, mesmo velho que se arrasta, sabe ler e escrever. Nos lá no centro, que vocês analfebisticamente chamam sul, toda gente andou na escola e na igreja e, por isso, aprendeu a respeitar os semelhantes, os animais e a própria natureza.
Foi o remate final e a conversa mudou de rumo. Eventualmente, cada um daqueles afoitos estigadores se perguntasse, no seu íntimo, o que significava analfabetisticamente e mais outras loisas disparadas num português cantado como hino religioso. A romaria católica à Muxima, própria de Setembro, preencheu o espaço percorrido até à paragem final. Seriam outras gentes, outras falas e outras cenas...

Chegado a Kaxitu, tempo ainda de adentrar o hospital, em hora recomendada para visita, vestido de pano até ao joelho, como mandam os bons costumes (mulher não deve expor zonas púdicas ou íntimas em público), surge pela frente o "camarada segurança" a travar a marcha.

- Minha senhora, sem pano por cima não entra- Atirou o segurança, kalashikov na mão, a impor respeito.
- Kokolo dyami, ngi banga kyebi? Assim, então, irmão chefe-segurança, saí de Luanda para visitar parente que lhe internaram aqui, família próxima não tenho, faço o quê, mô deuju?!
- É ordem superior.- Repetiu autoritário o segurança, sem mais nem menos.
- Mas, mano-chefe, esse ordem superior então é quenhê nome dele, se meu vestido é 'mbora mesmo de ir com ele na igreja Católica apostólica romano, vestido que uso na promaica e tudo? Camá odêpê, faxavor, meu irmão. Me mostra com ele, esse ordem superior, para me explicar se Muxima, nossa Senhora, é menos importante que hospital.
Pela ordem superior o segurança ficou. Nem à chefia imediata recorreu para dirimir a (in) conformidade do "pano para todas". À "mamã das perguntas", como ficou conhecida naquele primeiro de Setembro, mês de Neto, apenas uma solução, apenas uma se mostrou. Hipotecar a sua carteira, com telefone e tudo, em troca de uma tira de tecido para reforçar a cobertura do corpo, da cintura ao joelho.
Para piorar a situação de quem já é a azarenta, ao sair da visita, terá passado próximo do hospital Provincial um carro daqueles que carregam fiscais que correm com as quitandeiras de esquina e a mana do pano já lá não estava. Pasta, telefone, dinheiro, tudo foi. Apenas os prantos ficaram. Com os prantos da idosa, a alegria do segurança-chefe e do seu ordens superiores de "pano para todas, sem excepção"!


Publicado pelo Caderno Fim-de-semana, Jornal de Angola, 9/9/2018

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