_ Sigam com calma e não ultrapassem os cem quilómetros horários. _ Disse aos dois condutores, Adilson Santos e Vemba Menzes, com a voz meio turva, dada a madrugada, à saída da discoteca.
O corpo reclamava caldo regadio para, às seis da manhã, abrir a emissão da estação Azul, também conhecida pela sua frequência 95.5 FM.
Até proximidades da antiga FTU, as duas viaturas seguiam uma atrás da outra, estando o Adilson à frente. A cidade sonhava ainda, antes de acordar. Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguíamos, decidiu ziguezaguear, levando-nos à mortífera árvore que de sangue engordava nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Polícia de Luanda.
Era ainda no tempo das vias estreitas entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-nos a Snt'Ana sepulcral com seus lúgubres lençóis.
_ Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? _ As perguntas gritantes e mudas permanecem.
Quem as podia responder já cá não está. Descarto, porém, a embriaguez e outras coisas insinuadas em surdina.
De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens "para salvar os infelizes".
_ São jornalistas. Salvem os nossos colegas. _ Verberou-se suplicante nos 99.9 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.
Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.
Machados, serras eléctricas, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda, pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado, no embate contra a árvore, arrastou tudo para trás.
_ Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. _ Era a minha voz suplicante, ainda desconhecedor do meu estado físico real. Fui ouvido.
O Hyundai Avla foi esticado. Amarrado de frente à mesma árvore que também sangrava e puxado pelo camião dos bombeiros.
Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, o Vemba, desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.
Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo (as jovens irmãs) e depois os do lado direito, encontraríamos Leonardo Inocêncio, jovem médico chegado das terras de Fidel, com as mãos afinadas no bisturi, sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística.
_ Doutor será que ainda viverei? _ Perguntei-lhe entre lucidez e falta dela, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.
_ Vives, meu amigo. Vives, podes crer. _ Respondeu convicto no que seria o resultado do seu trabalho.
Dez anos depois (em 2017), sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, eis-nos, 23 dias, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública.
Em "conversa-puxa-conversa", médico e paciente, revivemos o dia do acidente e de imediato nos identificamos.
_ És tu que estavas naquele acidente de jornalistas?
_ Sim. Sou eu, Doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobrevivêramos duas. _ Expliquei.
_ Por favor, vamos sair e mostra a cicatriz. _ Orientou o cirurgião com a mesma autoridade e carinho que usa no Hospital perante os pacientes.
Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar:
_ E qual dos pés sofreu cirurgia?
_ O esquerdo, Dr. Inocêncio. _ Confirmei, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado e que conserva até hoje um parafuso.
_ Pois é. És tu mesmo. É meu paciente. É verdade. _ Disse Leonardo à vintena de colegas de formação (ENAD) que aguardavam pela perícia.
_ A ferida é minha. Conheço as minhas impressões. _Ironizou.
Abraçáramo-nos perante o olhar pasmado da turma. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com o Dr. Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro de Junho de 2005.
_ Obrigado, Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.
Obs: voltamos a nos reencontrar e confabulámos durante o almoço, hoje, 27.11.2023, em trabalho em Saurimo.
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