Alto, esguio e parecendo enfrentar uma luta contra a coluna vertebral que o quer empurrar para frente e ele a oferecer uma tenaz resistência jovial, como que dizendo, “por cá a velhice não passará”, Sô Raimundo é um idoso alegre e mexido.
A partir do pequeno “restaurante”, sempre, como quem nada quer, contemplei as suas rotinas: senta-se, quando os empregados estão com as demandas controladas; levanta-se, para fiscalizar as mesas na parte interna e a cozinha; conversa com quem lhe é familiar e ou procura fazer novas aproximações. E foi numa combinação recíproca de interesses que nos descobrimos.
Eu acabara de fazer uma descrição dele que remeti à esposa, escrevendo que, “caso chegue à idade de reforma, gostaria de viver como um velho que estava à frente de mim. É um octogenário que acompanha a sua pequena churrascaria e que, quando pode, tanto recolhe as moedas, como põe ordem em uma mesa para receber novos clientes. Outros idosos com a coma idade dele estarão, eventualmente, a gozar da reforma, viajando em cruzeiros, e outros ainda a jogar às cartas num jardim qualquer. Mas ele, está sempre activo e a mostrar que quem aprendeu nunca esquece, apesar de me parecer ser o dono, a contar com a forma mui atenciosa e carinhosa como todos os de casa o tratam”.
Coincidentemente, ele encostou-se a mim para perguntar se “estava tudo
bem”, ao que lhe respondi que ele tinha um bom comedouro.
Disso nasceu uma pequena conversa. Perguntou onde eu morava, tendo lhe
respondido que era angolano com curta estada naquela zona.
_Mas, então, o seu rosto já me é familiar. Diga lá, de onde você é. _ Insistiu.
_ Sou angolano e sempre que venho a Lisboa, procuro instalar-me aqui próximo (Areeiro). A primeira vez que entrei no seu estabelecimento fui cordialmente
atendido e faço questão de tomar todas as minhas refeições neste espaço.
_Respondi-lhe, criando nele outras curiosidades e, quiçá, saudades.
O idoso parou por alguns instante. Via-se que estava a viajar no tempo, pelos lugares conhecidos, pelas lembranças e, quando se recompôs, voltou a questionar.
_ Você conhece o Lubango? Antes era Sá da Bandeira. E Nova Lisboa também conhece?
Para mostrar-lhe que era mesmo angolano, peguei o telefone e mostrei-lhe
uma crónica que tinha como ilustração a Fenda da Tundavala.
_ Olha, eu nasci e cresci no Lubango. Esse era o local em que íamos para
observar o profundo abismo e mandar os olhos à Vila Arriaga (Bibala) que fica
do outro lado, lá abaixo.
Provavelmente, poucos lubanguenses (re)conheçam Raimundo Almeida, a
contar pela idade que carrega, pois muitos de seus coetâneos terão ido
descansar, mas, ele, ainda forte e lúcido, contou um pouco de sua vida (a parte
menos amarga) e adiantou que já “fez parte da Direcção do Mambroa do Huambo”,
tendo contribuído na colocação da relva e da bancada que “custou muito dinheiro”,
numa altura em que era empreendedor na venda e restauração de pneus.
_ Até do meu dinheiro usei para que tivéssemos um campo como queríamos que fosse.
_ Disse nostálgico Raimundo Almeida, um confesso adepto do Benfica.
Dentre os seus lamentos, poucos exteriorizados, está o facto de "ter de pedir visto" para ir ao seu país de nascença (felizmente desnecessário por força do DP 189/23 de 29 de Setembro).
_ Não faz sentido. _Atira.
Raimundo deixou o Angola em 1975, antes da independência, num momento de
incertezas, rumando para o Brasil, mas por pouco tempo. Muitos angolanos
(filhos de portugueses) que não foram à então metrópole tinham encontrado refúgio
na África do Sul e ele trocou, tempos depois, o Brasil pelo Cabo onde ficou
trinta anos, tendo “criado” a marca Hungry
Lion. Posto em Lisboa, conta que procurou “dar continuidade ao negócio de
carnes grelhadas” e traduziu a marca do Inglês para Português, resultando em
Fome de Leão, que disse existir há dez anos. Contou que “o negócio vai de bom a
melhor”.
_ Com a pandemia da covid-19, abrimos a área de take away e, hoje, as nossas vendas variam entre 200 a 300 frangos diários,
sem contar com as carnes de porco e peixe.
Quando indagado sobre o porquê da sua presença diária na churrasqueira, Raimundo
Almeida ironiza: “não gosto de trabalhar. Gosto é de ganhar dinheiro. Tudo o que
se pareça a trabalho faço-o por prazer”.
É verdade. Quando o trabalho é feito com prazer, deixa de ser trabalho e
passa a lazer, como é o caso do mwadyakime
Raimundo.
Publicado pelo Jor. Angola 22.10.23
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