No interior, seja qual for a província, dado que os "engarrafamentos" e descasos com o trabalho ainda não se tornaram cancros, as jornadas são quase sempre madrugadoras. O caçador, o camponês/agricultor, o apicultor, o extractor de malavu/maluvu, o mecânico, o motoqueiro, o pescador, o regedor e o administrador civil todos se levantam cedo para ganhar o dia e o pão. Assim fizemos de Kabinda ao Miconje, quase que a percorrer a província mais setentrional de Angola, do Sul ao ponto Nordeste, até beijar o país vizinho.
Levados por um "pusa nkutwala" que no meu Kimbundu equivale a xinjika (empurra), o carro alugado a uma rent-a-car local começou a "tossir" logo antes de atingir a planície de Malembu, fazendo da viagem, de mais ou menos duzentos quilómetros, uma autêntica odisseia.
Iam comigo apenas o motorista de ocasião da rent-a-car e o Pioneiro Rodrigues, aquele rapaz guerrilheiro que a 11 de Novembro do ano da independência, saído de uma base militar da Munenga, seguiu a Kalulu para baixar a bandeira Tuga, colocá-la em caixão para enterro e fazer subir, pausadamente como fora ensinado, a inaudita bandeira da Nova e República Popular de Angola.
Bem, ida e volta, o somatório se aproximava a 400 quilómetros que exigiam velocidade acima da média em terreno plano e sarado de estropios, mas o "pusa" só tossia quando mais se precisava da sua agilidade e potência, sobretudo nas elevações e desfiladeiros entre montanhas pontiagudas e ensombradas por a altas copas que, dizem, "no tempo da guerrilha do Movimento, paravam as bombas portugas lançadas contra os camaradas revolucionários.
E o Pioneiro Rodrigues, no auge da sua profissão de colector de estórias e fazendo-se também ele um "griot", ia contando factos e anedotas da sua sexagenária "bioteca", encorajando quanto o cronista, quanto ao Zé, o motorista do Porto de Kabinda, que fazia perna na rent-a-car.
_ Importante é chegar. Essas vivências fazem bem ao coração de jornalista. _ Largou o Pioneiro Rodrigues, quando provocado a pedir socorro a outras viaturas ou a chamar, preventivamente, outra viatura da companhia para o socorro e resgate, em caso de necessidade.
_ Mandem outro carro atrás de nós e tragam gasolina complementar para esse xinjika. _ Ordenei irónico, mas determinado.
Espaço para dúvidas não havia. Era mesmo ordem que foi acatada com a remessa de outra viatura que chegaria até proximidades de Belize.
_ Chefe, é o meu colega que nos veio prestar auxílio. _ Atirou o Zé, visivelmente satisfeito. "Vou livrar-me dos bafos e falatórios menos apreciativos (contra a rent-a-car) deste chefe". Terá pensado o "chauffeur".
E não é que, orientado a manobrar em sentido oposto, trocámos mesmo de carro, pensando que a Hilux nos levaria de forma mais lesta e a poupar-nos os lombos?
Mal nos aproximámos, o cenário já era repressivo: balde com a gasolina entornado na carroça, senhoras com diversas imbambas na cabine, um jovem motorista franzino e olhos medrosos, para além dos assentos com ferros que nos comiam o que restava da cobertura óssea.
Logo ao primeiro solavanco da estrutura que parecia desfazer-se por completo a cada buraco, o Pioneiro Rodrigues soltou um grito murmurado.
_ O meu coração já não aguenta.
Pensei na condição de saúde do mais velho que tudo faz para se manter pipi, embora portador de um coração que não pode mais ser martelado e comecei as indagações.
_ Quanto tempo tem esse carro?
_ É capaz de alcançar a caravana que já leva uns dez quilómetros de avanço?
Nisso, o Pioneiro Rodrigues preocupado com a forma como o Beto jogava as sobras desparafusadas do veículo aos buracos, acrescentou:
_ Jovem, diz uma coisa. Há quanto tempo conduzes?
_ Desde Março deste ano. _ Respondeu o Beto, despreocupado e demonstrando uma inocência infantil.
_ Trabalhas na empresa desde Março ou conduzes desde Março? _ Retorquiu o Pioneiro Rodrigues.
_ Tenho a carta desde Março, chefe!
Olhando para a velocidade de "cágado" e o despreparo do Beto, não fizemos mais do que mandá-lo estacionar e elogiar o quão hábil e veloz era o Zé e sua velha Fortuner sem a cinza de fábrica.
Partimos, mais alegres, menos resmungões, contando estórias sobre vidas passadas e o provir.
É estória por contar aos poucos.
Publicado no Jor. Angola, 05.11.2023
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