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domingo, junho 29, 2014

NZONJI DERRADEIRO


- Me larga. Ó mana, me larga só. Tira a mão da minha camisa, pode rasgar. Estou a falar ´mbora a minha verdade. Não te fiz nada de mau. Não te devo dinheiro, nunca te maldisse, nunca entrei na tua casa... por que me persegues e me prejudicas, ó mana desgraça? - A música expelida pelos altifalantes soava alta. Os munícipes, que já se acotovelavam para passar naquele beco estreito, que leva os Kalulenses ao Bairro Azul, tinham de se esforçar ao máximo para perceberem outras conversas sobre a última chuva de Abril que tinha arrasado a aldeia de Musafu. Na phela[1] do soba, nas abcissas das ruas apertadas, no arreió-arreió[2] e até nos leitos mais íntimos das casas era sobre a última chuva e sobre a chegada do filho do dono do carro arrastado que se comentava.

A vila de Kalulu vivia um dia anormal. Matadidi, o mecânico, tinha perdido o carro dum cliente, arrastado pela fúria da água que desceu da kamunda[3] ao riacho Kambuku, levando tudo o que encontrara pelo trajecto. Nela dos Prazeres, a mulher mais encaixotada do Musafu, teve de se pôr a nado para salvar os filhos e o televisor que engoliam já litros de água, enquanto ela e o amante navegavam entre prazer e mar chuvoso.
Entre o antigo cinema e a casa que já foi comité municipal do MPLA, hoje conservatória dos registos civis, ficava a minha casa. O quintal era amplo, asseado e com muitos visitantes. Uns parentes e outros negociantes que procuravam curtos refúgios do sol ou para dar de mamar as crianças acossadas pela sede e fome.

A rua dianteira, a que nos leva ao Kwame Nkrumah, estava muito cheia. Parecia uma rua de Luanda, com adolescentes que iam e vinham do Instituto, carros e mulheres kitandeiras[4] a preencherem os passeios com magoga[5], bujingangas[6] de vestir e despir roto. Até apitos para o próximo carnaval estavam à venda. Era também no meu quintal que muitos vizinhos da rua de trás, a do Miguel Neto, passavam para atingir a rua principal. Eu era já um idoso, sessenta anos mais ou menos. Não tinha mais a rabujice de hoje. Eu era pacífico e passivo. Ao pé de mim estava um homem a ascender à casa dos quarenta. Cheio de vida e voz firme a pôr ordem na casa. Tinha chegado de visita com uma carrinha carregada de coisas ainda por ver.

Enquanto eu sorria para as pessoas que passavam pelo quintal, umas cumprimentando ou se desculpando por transpor o quintal e outras não fazendo caso disso, ele fervia por todos os poros, reclamando do abuso de fazerem da casa do seu pai um desfiladeiro.

- A vida aqui é assim, filho. Todo mundo é família. Acalma-te. Vai conhecendo as pessoas, ou pelo menos os kandenges[7] que choram pelo quintal. Serão os que te vão oferecer a carne fresca quando tiveres a minha idade. – Aconselhei ao que me deu ouvidos. Tinha inteligência para tal.
- Está bem , pai. Vou cuidar das crias e da hortaliça.
Pegou sementes e lançou-os na sua horta. Pegou milho e distribui-o aos patos, gansos, galinhas e pombos. Estávamos todos em véspera de festa.
Com MMC tinha chegado o meu neto primogénito que começava a ganhar fama de engatatão[8]. Na grande cidade onde moravam as coisas eram feitas precocemente. Aqui não. Há até os precoces, mas tomam juízo e comem a broa do seu trabalho.
- Kutimbe!- Chamei pelo neto.
- Papá!
Fingi não ter ouvido. Dava-me banga[9] ser tratado por vô e repeti a dose. - Kutimbe?!
- Já vou, vô.
- Meu neto! A vida é boa, mas é melhor quando vivida por etapas. Etapas programadas ao detalhe. Olha aqui o teu vô. Careca, dentes incompletos na boca, casa grande, viúvo, quase inválido, mas todo mundo que passa faz vénia, Já viste?
- Sim vô. O chará é Grande na sua pequena vila. Mas eu quero que me ensine a ser grande numa grande cidade.
- Pois bem. Presta então atenção. Tenho umas palavras que te queria dizer no dia do teu aniversário mas antecipaste as coisas. Estava para preparar viagem na semana que vem, quando o mecânico me entregar o jeep. Ouve bem, meu neto: até aos dezoito anos, somos ainda um ovo que não tem vida própria, embora já fora da galinha. Depois disso o pintainho aprende a andar, a fugir, a seguir os conselhos dos progenitores e se vai autonomizando. O melhor é que esse período chegasse aos trinta. Você deve trabalhar e gozar sem chatices de ninguém, tirando o vinho para o vovô. Dos trinta aos sessenta é o período de trabalhar a dobrar, construir um património que não será teu, porque será dela e deles, e depois virão outros anos incógnitos, de velhice e canseira e de desfrute e luta pela vida. A segunda e a terceira etapa da vida têm de ser de grande responsabilidade para que tenhas uma casa e um quintal grande como o meu. Ouviste? É esse o percurso. É esse o caminho que te mostro. Só espero que o encontres.
- Ouvi e vou satisfazer a sua vontade, vô. Obrigado pelo conselho e nunca deixe que o meu comboio descarrile, enquanto estiver vivo.
MMC não era homem de muitas palavras. Era mais conhecido pelo seu pragmatismo. Era de dizer e fazer. Era por isso que a vila toda estava em alvoroço. A fama deixada nos tempos em que fora militar naquelas paragens ainda se mantinha viva e intacta, mesmo entre a geração que nem sequer o conhece pela fotografia.
Avisado pelos mais atentos, o mestre Matadidi pegou um cabrito ainda sem chifres e foi à vila, à casa do cliente que ficou com o carro inundado, desculpar-se e buscar entendimento.
- Pai, bom dia, meu kilamba[10]. Soube da chegada do mano MMC e vim explicar-lhe o sucedido, desculpar-me e prometer que em quinze dias meto a maquina a roncar como no antigamente.
Peguei-o no ombro e trocamos sorrisos. Mostrei-lhe o MMC, todo calmo e a cuidar da horta e das galinhas. MMC abraçou-o de forma inesperada e dentre muitas coisas que lhe disse ouviu-se o “Vim apenas ver o Velho e comer uma galinha”.
O Cabrito ficou amarrado junto à goiabeira e o mecânico juntou-se aos preparativos do que viria a acontecer.
Alertados pela miudagem curiosa que circundava a Power Glic, avô e neto dirigimo-nos à carrinha que gemia a cada quilo que perdia. Estava empanturrada de comidas e bebidas. O resto da família chegaria horas depois para a festa do Kutimbe programada para a casa do avô.
Um pássaro que festejava o raiar do rei sol cantou à janela. Despertei. Uma luzita invadia meu quarto. Olhei para o relógio: seis e meia da manhã. Foi apenas um nzioji[11]. Somente o décimo sétimo aniversário do meu primogénito tinha sido real. Aconteceu a 29 de Junho.

Obs: texto publicado pelo Jornal de Angola, Caderno Fim-de-Semana, 06.05.2018

[1] Palácio, casa oficial do régulo.
[2] Negócio de rua; comércio ambulante e informal.
[3] Montanha; elevação. Do umbundu.
[4] Vendedeiras; do kimbundu kitanda: equivalente a praça ou mercado.
[5] Sanduíche.
[6] Artigos diversos de pouco valor.
[7] Crianças.
[8] Namoradeiro.
[9] Gozo, prazer.
[10] Senhor; amo. Do kimbundu.
[11] Sonho.

 

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