No carro da
kandonga[1]
era a voz mais audível. Kapalakata era diferente no falar e até no espalhar
fedores. As suas axilas eram lixeiras a céu aberto com revestimento peludo que
desafiava as savanas de Kamakupa[2].
Nem só vergonha das kindozas[3]
tinha. Tagarelava ao mesmo tempo que se dedicava ao seu “BCA, Bela Vista, Estalagem,
Término”, referências à rota Congoleses-Viana.
- Sim, podes. -
Respondi-lhe com o cachimbo na mão, à mostra.
- Não, mô kota, é
mesmo para apreciar. Para tocar e ensaiar a banga[6].
Tipo já o kota, aqui na foto do livro. Retorquiu o muzangala[7]
fazendo alusão à foto estampada na capa do meu livro de estreia. Uma jovem que
seguia no kandongueiro, com o livro à mão, tinha me reconhecido e puxou
conversa de ocasião com "o escritor que contava ser mais velho do que
realmente é".
- Obrigado, minha
querida. Tenho vivências e sei viajar para um passado intangível para muitos
jovens de hoje. - Respondi entre sorriso leve.
- O Senhor tem
avôs ainda vivos ou ouve essas cenas de velhos conhecidos? - Insistiu Mona
Linda de sua graça.
- Nada disso,
minha jovem. Não conheci os meus avôs e nem tenho velhos por perto.
- E esse
cachimbo? De quem foi que herdou?
A pergunta da
jovem interessada em saber a vida do seu "escritor" despertou a
curiosidade de mais pessoas que acharam estranha a presença duma pessoa que
escreve livros num candongueiro.
- Mas os
escritores não vivem bem? Ou é outra nganza[9]
do kota? - Foi assim que Kaparakata se meteu na conversa que até aí lhe era
alheia.
- O meu cachimbo,
já velhinho, foi uma oferta do tio Gasolina, que baikou ainda jovem, quando lhe
falei "tio, vou mbora ser escritor
de kimbundu". É um adereço de banga nos meus dias de anos, ou quando
nascem meus filhos biológicos ou literários. Também ajuda-me a descontrair e dá
vazão à inspiração.
- E como é que o
kota faz para ter ideias? - Intrometeu-se Kaparakata.
- Fico a
cachimbar e ao mesmo tempo a matutar. Viajo num passado que não vivi e transito
para o futuro que não sei se vai acontecer. O regresso ao presente é que dá nos
livros e nas crónicas que escrevo quase todos os dias.
O puto[10]
cobrador me meteu na conversa de saber se "ando a me janar[11]
ou é só banga mesmo". Pediu-me para apreciar e na hora de descer nem só
"se lembrei" mais do cachimbo. Ele também, no canto dele de kobele,
xinini[12].
Tipo cachimbo é dele. Cabrão me funou[13]
a pipa de caxexe[14].
Na semana dos
quarenta kixibu[15],
meti um grito na aldeia toda. Um “nanyi u ngi kwatekesa” nyi kabexi?! [16]
Quem vir ou souber onde estão a espalhar, kaúla[17]
só e depois me fala se é quanto é!
Contei-lhe a
estória da gatunagem que Kapalakata me fez a olho aberto e com testemunhas e
tudo.
Uns me disseram
que gostaram. Meteram um like no
anúncio, deixando-me confuso se era gosto pela larapiagem do Kapalakata ou se
do “ajudem o pedinte” que fiz. Outros ainda elogiaram as palavras escritas como
se fala/falava nos nossos musekes kalus[18].
Hóuve os que
ficaram na defensiva, banzelando[19]
o que fazer. Mas houve um mesmo que tomou o assunto a sério. Bateu-se no peito
e disse-me:
- Olha, Soba
Grande, vou tugar[20].
Quando voltar, vou pôr contentamento no teu coração e tua nganza vai continuar.
O homem usou
palavras tugosas e não essas kimbundozas. Olhei-o nos
olhos, se apertamos ainda num abraço de despedida e , quando chegou, me
telefonou.
- Alô?!
- Olha, Sô tor,
tenho o que muito precisavas. Parabéns pelo tetra
vezes dez. Quando o teu colega, que viajou comigo, chegar aí já verás.
- Obrigado meu
mwata[24]
de verdade. Já imagino, mas quero mesmo botar neles meus olhos e mandar-te um
abraço telefónico.
Nove e meia de
quarta-feira, avião nem havia acabado de tirar as patas da pista, o homem,
outro tuga a se mwangolizar, fez-se anunciar aos meus colegas de serviço.
- Bom dia
senhoras e senhores. Posso confabular com o Dr. Nhanga?
Desconheço a
resposta que lhe foi dada. Saí de imediato para que sentisse o calor da
recepção. Deu-me um kandandu[25]
e sacou da pasta diplomática uma caixa verde. Abri-a e vi, envernizado, um
cachimbo inglês. Dei-lhe outro kandandu, antes mesmo de ligar ao autor material
da proeza. Não querendo fazer-se de herói sem ter bazucado[26]
pelo menos uma vez, o homem meteu a mão na algibeira e sacou outra caixinha
forradinha com a cor da esperança.
- É também para
ti. Já a tinha há muito tempo em casa, mas decidi junta-la à do Rosário e
colorir a tua entrada para o clube dos
enta.
Eram lapiseiras
com meu nome gravado.
- Obrigado meu
caro amigo engenheiro, etc. Me escaparam bwe[27]
de palavras bajulosas. Mas eram de verdade. Verdade da alegria.
O meu cachimbo,
que o meu finado tio Gasolina me deu, quando lhe falei "tio, vou mbora ser
escritor de kimbundu", que me roubaram com ele no kandongueiro, já tem
outro com GPS para localizar qualquer homólogo do Kapalakata, gatuno de matuji[28],
wakambe ó sonhi nyi kilunji[29].
[1] Venda
especulativa, aqui trata-se de transporte colectivo informal.
[2]
Município da província angolana do Bié.
[3]
Moças, jovens raparigas.
[4] Mais
velho, pessoa respeitável.
[5] Muito
bonito, calão de Luanda, séc. XXI.
[6]
Estilo.
[7]
Jovem.
[8] Jovem
rapariga.
[9] Tique,
estilo, moda.
[10]
Miúdo.
[11]
Lyambar, entorpecer.
[12] O
cobrador não fez questão de…, acobardou-se.
[13]
Roubou.
[14] De
pianinho.
[15]
Cacimbo, estação seca em Angola.
[16] Quem
me ajuda com um cachimbo?!
[17]
Compre.
[18]
Subúrbios de Luanda.
[19]
Pensando.
[20]
Viajar para Portugal.
[21]
Português com hábitos angolanos.
[22]
Individuo.
[23]
Doença que enfraquece o organismo.
[24]
Senhor; notável; título da autoridade tradicional da Lunda.
[25]
Abraço.
[26]
Disparado uma bazuca.
[27]
Muitas.
[28]
Fezes; porcaria.
[29] Sem
vergonha nem juízo.
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