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quinta-feira, abril 08, 2021

UMA CODORNADA AO FERIADO

Mangodinho, na vida dele de homem com careca no lugar de cabelo branco, lugar de peixe é no rio assim como o javali é na mata. Na adolescência tentou criar um macaco na jaula e perdiz na capoeira. O tiro saiu-lhe pela culatra. O macaco fugiu na primeira oportunidade em que viu floresta e sem cinto à cintura. Até a perdiz que já aprendia a cacarejar com as galinhas, meteu-se no mato e jamais voltou ao convívio doméstico.

Sempre que pode, viaja pelas malambas e traz aos seus ouvintes os lugares, os bichos e as pedaladas da vida.
- Kandenges, isso é assim. Dias você avança outros se atrasa ou recua. Mas, cada cabelo branco na cabeça, cada cicatriz no corpo, cada

ruga na testa é uma viagem no tempo. - Costuma dizer.
Em mais uma viagem a Ngimbi, Mangodinho foi visitar o amigo Kito Kahala. A amizade deles só faltou mesmo cruzar sangue para se chamarem cunhados ou tio e sobrinho. Se vivessem os dois no interior, fosse Wambu Kalunga ou Mbangu-de-Kuteka, se teriam mesmo oferecido sobrinha ou prima.
Ao puxar a corda que mandara ao poço das lembranças, Mangodinho repescou uma ocorrência antiga dum tempo, que se lembra, era ainda kitutu. Os rapazes à sua volta falavam sobre pássaros. E o kota "contador de cenas" como lhe chamam, lemnbrou-se de um tempo que já voou quando apresentou à mãe a primeira codorniz.
- Mãe, apanhei rola.
- Rola? Parabéns! Mostra ainda. Caçaste com fisga ou caiu na armadilha?
- Lhe apanhei mesmo na corda. Está a ver aquele caminho que deixamos de usar por causa do capim que cresceu muito, nê. Elas ficam aí, tipo estão a banhar com areia e fazem uns kaburacos tipo é para meter lá ovos.
- Mas como é que fizeste então para apanhar rola que vive nos paus?
- Essa vive mesmo no capim. Sempre que vamos brincar elas não voam. Andam bem rápido e se escondem nos funduros, ali onde o capim é alto e com picos ou fogem para os espinhos.
Peguei a avezita, ainda por depenar, e levei à mãe que acondicionava mais lenhas nas maswikas que abraçavam a panela de kizaka.
- Oh, esse é dikombe não é rola. Dikombe vive na mata e faz ninho no chão. Rola é aquela que fica parece pomba, que faz ninho no pau e só desce para comer. Voa rápido e cabeça dele é tipo pessoa com ngimbu.
Mangodinho, conta, abanou a cabeça, em sinal de aprovação da aula de biologia, pousou as armadilhas e foi depenar a avezita, enquanto a mãe fabricava planos sobre o que levaria à mesa. O peixe seco, meia cura, quase a amarelar, seria postergado para próxima funjada.
Pegou alho, jindungu e sal. Fez uma pasta no pequeno almofariz. Pegou tomate maduro e ferveu um bocado. No mesmo almofariz em que pisara o ndungu com alho e sal, triturou o tomate semi-cozido.
O vento nocturno que varria a aldeia informava de casa em casa quem jantaria o quê. Para Mangodinho e os seus, a fubada da janta foi puxada pela codorniz que, aos seus olhos, parecia enorme para a fome de carne que tinha.
- Parabéns meu filho. - Disse-lhe a mãe. - Vê se amanhã consegues mais uma. Anda com os mais velhos para te ensinarem a armadilhar. Homem tem de saber caçar e pescar. A enxada é para as mulheres. - Recomendou antes de ir amamentar a kasule e chamar pelo sono.
De recordação em recordação, Mangodinho contou também que, durante os dias que se seguiram, o seu anelo era encontrar ovos de codorniz. Narrou que a carne tinha sido tão gostosa que queria encontrar os pintainhos, levá-los à gaiola e cria-los na aldeia. Era mera ideia de quem estava cansado de bater orvalho ou capim seco enrolado nos atalhos.
Já na Ngimbi, em casa do seu amigo Kito Kahala, encontrou uma chocadeira de codornizes, num nono andar da cidade do Kilamba.
- Ó Mangodinho, ainda vem.- Chamou Kito Kahala. - Estamos a "galinhar" aqui. - Continuou o anfitrião, puxando pela mão do convidado, enquanto aguardavam pela fubada codornizada.
O convite levava 72 horas e, ao trazer à memória a primeira funjada codornizada, surgiu na cabeça de Mangodinho outra ideia: não comer em casa e guardar espaço vazio no estômago.
No compartimento arejado e bastante higienizado estavam o "berçário" de aves recém-chocadas e três chocadeiras: codornizes, galinhas e patos.
- Aqui saem 500 pintos ao mês. - Contou, Kito, enumerando as técnicas e as quantidades.
- Para chocar codornizes são15 dias. A galinha vinte e poucos dias. Os patinhos saem ao vigésimo nono, quase um mês. A chocadeira demanda temperatura idêntica à do animal e humidade para para que não se queimem os ovos, nem se asfixiarem os pintos na hora de partirem os ovos e saírem para fora.
- Ó mano Kito, isso aqui é obra! E eu a pensar que ainda me faltava comer capim para encontrar ovos de codornizes e fazer gaiola, afinal estão mbora aqui mesmo na cidade? Que maravilha! - Exclamou Mangodinho.
- É mano. Também aprendi com outros criadores, aqui mesmo na cidade.
- E como é que consegues juntar os ovos? Quanto tempo demoram para ovar? - As perguntas do visitante pasmado pareciam chuva de Abril em terra árida.
- Bom, mano, é assim: a codorniz não cuida do ovo. A base da gaiola deve ter inclinação para que elas não os pisem e não os partam. Depois de recolhidos, são bem procurados nas lojas. Os passarinhos também são comprados a bom preço por serem um pitéu gostado pelos homens de garfo e pomada.
Antevendo receber boas novas da cozinha, Kito Kahala tinha já um pé na maternidade e outro no corredor da sala, enquanto dava as últimas explicações.
- Mas, ó mano, não vai ainda. Assim, esses kaovitos são para fritura ou para juntar à carne seca e fazer companhia à pevide?
- Ó Mangodinho, nunca te falaram do resultado do ovo de codorna? É melhor do que comprimido azul. Assim mesmo, se o mano quer que te gostem, leva já duas dúzias e passa a comer três por dia. O resultado não demora!
Mangodinho ficou a pensar nas expressões "garfo e pomada" e num "resultado melhor do comprimido azul". Kito Kahala abriu a porta de saída do compartimento, coincidindo com o chamamento da filha de que a mesa já estava pronta.
- Há vezes em que você encontra o doméstico na selva e o animal selvagem na cidade. A vida tem dessas. O conhecimento demanda andar! - Desabafou Mangodinho enquanto tragava, com as mãos, um apetitoso pedaço de codorniz regado com Don Luciano e Laureano Paulo.

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