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quinta-feira, abril 15, 2021

O COCO[1] QUE DIZIMOU OS PIOLHOS

Um conterrâneo da Kibala, recuando no tempo, narrou episódios da nossa infância que é transversal a uma geografia que envolve os municípios à volta do Libolo e Kibala e num tempo que, se calhar, morre em 2000, podendo prolongar-se em algumas aldeias recônditas. É o nosso feudalismo que pouco há de escrito, dada a fraca imersão na nossa etno-sociologia e etnografia.

Quando nos debruçamos a estudar a história clássica e medieval de Roma e Grécia, recaímos, invariavelmente, em episódios angolanos do Séc. XX, em nossas aldeias interiores.
É exemplo a mãe que "cata" piolhos ao filho, aproveitando adormecê-lo, podendo usar duas fórmulas: cantando e catando.
Vivi esse tempo. Algumas mães, no escuro da noite, sem saber se o achado por seus dedos entre o cabelo alto e sujo é ser vivo ou grão de areia, levavam-no ao dente e largavam depois, um rio de saliva.
Vivi ainda do tempo da bitacaia[2], pulga de javali ou porco doméstico que adentrava os terminais de nossos dedos e calcanhares. A comichão, lenta e incómoda, resultava em dor da ferida escancarada, depois de extraído o animal hóspede oportunista com a ponta de um alfinete ou de um pau aguçado.
Mas o meu conterrâneo contou mais e recordou-me o seguinte:
Noite sem luar na Kibala ou outra aldeia do circuito ambundu kwanza-sulino. Nas terras mais a sul e ou norte o cenário também pode ser idêntico.
O archote é lamparina na cozinha escura. A kizaca, peixe de agua doce ou carne de caça ferve na panela de barro. Há fumo largado pelas lenha que reclamam por mais dias de seca ao sol. Mas quando a lenha seca rareia em tempo de chuva é a semi-seca que se leva à fogueira. No escuro e fumegante da cozinha a mãe pede:
- Mwiha mwombya (alumiar para a panela).
Na atrapalhação, o rapaz tanto alumia como deixa cair na panela a ponta do archote ardido, já em forma de cinza.
- Nzayá, matubá, matondoá![3] -Dispara a mãe impaciente, complementando a emenda com um valente "coco" que mata uma dúzia de piolhos e lêndeas na cabeça do infante.
- Kwolule (não grita). - Adverte, prevenindo para que não se acabem, de uma só vez, os piolhos todos na cabeça com outros cocoricos.
Terminada a confeção do "kondutu"[4], é a vez da panela do funji/pirão. O cuidado é redobrado. Em fuba branca, a cinza preta do archote é vinho tinto em toalha imaculada.

- Mwiha kyambote. - Adverte a mãe.
E o infante, com um grito adiado ou reprimido da primeira pancada, lágrimas do fumo nos olhos, comichão na cabeça dos piolhos famintos de sangue, acende, de novo, o archote que aproxima delicadamente à panela de barro para a qual o fogo chia.
- Mwiha!

- Ñi mwiha a mama!

- Mwiha kyambote.

Depois o repasto: as meninas na cozinha ou fora dela, no terreiro da casa, com a mãe, quando há luar. Os homens na sala ou no njangu. Rapazes juntos.

O rapaz quando não vai à escola da vida, o njangu, volta a reclamar o carinho materno, "lambicando" como cão que se deita sobre a cinza quente da fogueira recente. Dobra-se à frente da mãe que "jijina"[5] lêndeas, piolhos ou grãos de areia escondidos no cabelo a reclamar por uma tesoura.

Contando anedotas, ou canções do seu tempo de menina, a mulher afugenta os males e a infra vida que a pobreza impõe, adormecendo o infante para uma nova aurora e lavoura.

Tal como a geração do último quartel do Séc. XX, as nossas crianças continuarão a ler a história clássica e o feudalismo greco-romano. Quanto às nossas vivências que são recentes, restarão poucas crónicas!


Soberano Kanyanga



[1] Golpe na cabeça com o punho cerrado.

[2]  Insecto díptero da família dos tungídeos.

[3] Despautério.

[4] Acompanhante.

[5] Acaricia. Faz cafuné.

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