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quinta-feira, novembro 20, 2014

A FAMÍLIA GPS: DONA PAULINA E SEUS DOIS MARIDOS


Nada do que se passava no bairro e arredores era do desconhecimento daquela dupla família. Os filhos andavam todos nas escolas do povo. Gaspar, coveiro na Sant´Ana, trazia dias sim, semanas sempre, as informações mais frescas de quem foi enterrado “congelado ou a quente”. Nomes de finados, biografias, figurantes e até conversas inéditas sobre poligamias e poliandrias praticadas pelos de cujus, ele sabia de cor.
Paulina era enfermeira do Hospital do Prenda e kitandeira em dias de folga. Doentes abastados, com família que conjuga o verbo ter. Doentes pedintes que se alimentavam de restos se sopas de quem podia e tinha. Doentes quase a conjugar o verbo ir, ela sabia de tudo. Na kitanda, outra  praça do ouvir dizer e contar como se estivesse no filme, Paulina era a maior contista. Falava sem tabu nem deontologia sobre as suas experiências hospitalares e sobre coisas que “até mesmo o diabo era capaz de duvidar”.
- Xê, mana Tonha, se mana Paulina está te contar cenas do hospital, é melhor ouvir com uma orelha e esquecer com a outra.
Já viste doente que sai de noite para ir assaltar banco e volta de novo na cadeira de roda? Contou que um dia um senhor, você lhe vê tipo coitado. À noite chegam os comparsas dele e lhe levam na cadeira de rodas até um carro.
- Mas assim lhe levam p´ra quê, Yeta? – Indagou Chica.
- É, Yeta, coisas que mana Paulina conta na praça é só já ouvir. Disse que lhe levavam para ir assaltar os bancos. Quando Judiciária chega e colhe já fotografia dos dedos, é mbora dum doente acamado do hospital. Isso mesmo se acredita?
- Hum!, aceita só já quem quer.
Paulina não só era boa falante como era realista. Dizia-se dona do seu destino e que espera “julgamento só de Deus”. Por isso ela fazia a tripla afectiva com Simão. Velho de Ambrizete que foi corrido pelos filhos sob acusação de feiticismo que nunca se comprovou. A lavra de citrinos que tinha decidiu doar ao sobrinho, filho de sua irmã, obrigando os filhos, que dizia ser apenas de sua mulher, irem trabalhar como assalariados do primo, o seu sobrinho. Acusaram-no “nganga”e deram-lhe "kibetu" até descarregar nojice nas calças. Coitado do velho Miguel saiu daí e encontrou dona Paulina que tinha acabado de chorar o seu homem, Gaspar Kaquarta que foi considerado morto num ataque dos fantoches quando saia dum funeral no Kitexe.
Ali mesmo. Se conheceram na estação dos Caminhos-de-ferro de Malanje. Velho Simão e Mana Paulina, mal se viram, paixão pegou. Amigaram-se. Na casa que Gaspar deixou havia um anexo de pau-a-pique que Velho Gaspar foi reconstruindo com blocos de cimento e areia da rua. Arranjar ripas para zincar o quarto não foi difícil. O emprego de marceneiro permitiu-lhe contacto com uma agência de fazer urnas funerárias e a serração da vila. Fazia os seus caixões e uns “mochos” que vendia às kintandeiras, colegas de Paulina nos dias de folga.
Tudo que fosse sobre compra e encomenda de caixões para pessoas vivas, moribundas ou mortas, o velho Simão sabia e contava também à sua dona e os miúdos, pelos “furutos” da casa aproveitavam também captar umas conversas, nem sempre completas que levavam à rua, aos amigos e vezes tantas aos professores também.
Por sua vez, nas horas em que supunham que os miúdos estivessem já dormitando, “hora do vamos se o galo canta”, os miúdos aproveitavam ligar as suas antenas para ouvir os relatórios diários que Paulina e Simão trocavam, antes do cantar do galo que era num silêncio sepulcral.
Ano e meio depois daquela morte chorada do vizinho Gaspar Kaquarta, homem que facilitava todos os enterros dos vizinhos e parentela, com Paulina já amigada e o kota Simão a dar uma de tio Matoso “lundulou”, o dono de casa reapareceu. Tinha sido raptado pela guerrilha e o seu corpo foi confundido com o de um infeliz companheiro de desgraça que era militar da ODP, também mestiço.
No dia em que o vizinho apareceu, com os olhos dele todos rasgados, o bairro todo se pôs em fuga.
- Vizinho coveiro ressuscitou! – A berraria ecoava por todas as ruas da vila.
- É quê? Vizinho fez quê?
Todos fugiram, até Paulina e os três filhos, menos o velho Simão que continuou na sua cadeira de fitas a enxotar as moscas que saboreavam o sumo da sua ferida na perna.
Como protagonista e vilão dum filme de acção. Cara-a-cara, olho no olho. Gaspar a dizer com o coração “quero entrar, deixa-me entrar”. Velho Simão, apesar da idade, a dizer também, apenas no coração, “aqui, seja quem for, morto ou vivo, aqui não entra”.
O “bilo” silencioso foi de uns cinco minutos. Ninguém disse nada nem fez nada. Ficaram só a se estudarem até             que cada um tirou a mais acertada ilação.
- Você é o pai dos meninos não é? É o Senhor Kaquarta. Então saiba que a notícia que chegou na tua família foi de que o senhor foi abatido. A tua família chorou, fizeram um funeral sem corpo  e, depois do luto nossa mulher me admitiu aqui para cuidar dos meninos. O terceiro está já na barriga. – Explicou Simão.
Gaspar deu-lhe um abraço cheio de energia. Os dois foram abraçados à sombra da figueira que espalhava folhas pelo quintal. Gaspar abriu também seu saco de memórias e foi narrando o que se passou durante o tempo todo e o que pretendia fazer com seu regresso.
- Mano, a vida que nos falta viver é pouco. Casa, você aumentou lá "kabucado". Os filhos você educou lá kabucado e aumentou mais um que está a vir. Se Paulina concordar, podemos viver aqui os três. Ela com os filhos fica na casa grande. O anexo de dois quartos, dividimos, um é teu outro é meu. O resto é conversa de homens crescidos.
O cavalheiros selaram o acordo e quando os ânimos se amainaram, Paulina que fora buscar refúgio em casa de uma colega do hospital regressou com os monas à casa em clima de paz total.
A tripla viveu mais décadas. Paulina ainda pôde dar mais quatro filhos aos maridos que foram se revezando na procriação. Os de Gaspar Kaquarta são clarinhos e com olhos rasgados. Os de Simão Meso ma Nkala são pretinhos como carvão e duma altura que desafia a trepadeira. Juntos os filhos eram seis. Com os pais, a equipa era de nove e tratada carinhosamente por “família GPS”, iniciais de Gaspar, Paulina e Simão, mas também por saberem de tudo o que se passava na Vila da Mata. Os filhos, todos varões, compravam e vendiam informações nas escolas em que estudavam e contavam aos pais. Paulina via e ouvia na Clínica do Prenda e na Praça “Ajuda Marido” e levava para casa, partilhando com os maridos e os filhos. Gaspar que voltara ao seu antigo emprego no campo santo de Sant´Ana, atendia e assistia aos mais diversos funerais e reproduzia as imagens vocais aos de casa.
Simão que fabricava e atendia os compradores de urnas também tinha as informações frescas sobre bairros e ruas onde havia ou haveria "komba" e canjica. Viveram do seu jeito, enfrentando a curiosidade e "mexerequice" duns vizinhos mais inconformados, até que a cova os chamou, um a um.

Nota: Texto escrito para e publicado pelo Semanário Angolense

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