Era sábado de
futebol. O país inteiro estava de olhos na TV e ouvidos no rádio que de meia em
meia hora vomitava algumas verdades e muitas mentiras. Ora se dizia que a
equipa lilás seria campeão, se vencesse e outra empatasse. Ora se dizia que os
presidentes estavam em campanha “ganhística” extra-campo, a oferecerem prémios
de jogo chorudos aos adversários do adversário à conquista da taça.
E o
disse-que-disse passava de boca em boca a velocidade estonteante. Ninguém se
podia alcandorar como detentor de verdade sobre o jogo de bastidores e de
influências que se apregoavam na média.
No bairro da
Lata, as ruas estavam movimentadas. A equipa do bairro tinha subido de divisão
e teria no seu primeiro embate o vencedor da taça do ano precedente. Todos
queriam saber quem será o campeão que rebaptizaria a equipa do bairro da Lata
no campeonato maior do Estado.
Na rua das
gajajeiras havia mais gente do que estrada. Até mesmo as frondosas gajajeiras
pareciam desaparecer, ante aquele mar de gente, a subir e a descer para lugar
incerto. O estádio das gajajas estava ainda de portas encerradas. Onde e meia,
sol ardente, bairro a dentro. As kilumbas aproveitavam camuflar a feíce,
enquanto os homens endireitavam as aparências. A “barbaria” do Chiquito, à
berma da rua das gajajeiras, tornou-se lugar de encontros e reencontros. Os
homens à direita e as mulheres perfiladas à esquerda. Conversas díspares
poluíam o recinto de 32 metros quadrados. Do lado masculino era o futebol quem
comandava.
- Epá, qual dos
adversários preferes para a nossa benquista equipa da Lata?
- Para mim,
qualquer. Só temos campeões na fila da frente. – Lené antecipou-se à pergunta
de Kapenda que era novo naquela pequena urbe e que procurava por afinidades.
- Qualquer como
assim? - Voltou a pôr conversa, na expectativa de mais argumentos e
contra-argumentos.
- Sim, qualquer.
Veja bem. Nós seremos neófitos. Na frente do campeonato deste ano estão um
bi-campeão, um campeão, e depois uma equipa que nunca foi campeã, mas que já
tem tradição e com bom plantel. Depois vêm a segunda equipa mais titulada do
campeonato e em quinto o papa títulos. Qualquer um deles será osso duro e não
pêra fácil.
- Boa
argumentação! - Exclamou o barbeiro que acompanhava atento a conversa.
- E vais ao campo
ou só te ficas pela rádio e TV? - Voltou a questionar Kapenda.
- Sou o
coordenador do fã club da equipa da Lata. Não falto a nenhuma partida.-
Respondeu Nelé.
Enquanto os
homens festejam o futebol, as mulheres praguejavam os resultados do censo
realizado pelo Estado que tinham colocado a descoberto um segredo que puderam
manter incólume por muito tempo.
- Mana Joia,
sabes o que o censo descobriu?
- Não, Lena.
Descobriu o quê?
- Poças! Nem te
digo, Mana Joia. A dupla e tripla agregação estão em risco.
- Como assim?
- Não viste os
resultados do censo? – Ripostou Mariquinha.
- Ó Mariquinha!
Qual censo qual quê? Mas então o tal censo censou o quê? Me fala meu Deuju!
- Sim, Mana Joia.
- Mariquinha, mais serena, olhou para as companheiras desinformadas e
abeirou-se da pasta onde tinha os relatórios preliminares sobre o comportamento
quantitativo e qualitativo da população. – Não somos assim tantas que cheguem
três a quatro para cada uma.
- Ai é? Como
assim? Então o censo disse o quê?
- Joia, Josina de
Andrade, de nome próprio, natural de Kunda Dya Base, Malanje, criada e crescida
em Luanda, em casa de madrinha abastada, mas pouco escolarizada, parecia
adivinhar um perigo em frente.
Foi aí que
Mariquinha começou a desbobinar.
- Quem olha, e
guardamos isso por mito tempo, pode lhe parecer que haja bwé de terrenos
desocupados, mas é mentira. Quer dum lado quanto do outro, há mbayas.
- Mbayas, como,
minha filha, Interveio dona Joana, mulher de respeito em todo o bairro da Lata.
Era a coordenadora da comissão de bairro, dona de um Jeep que fazia ciúmes aos
governadores da capital.
- Sim tia Joana.
O censo veio a desmontar a ideia de que existiam três a quatro mulheres para
cada angolano. Quase todos os homens se gabavam de garanhões e de terem mais do
que uma “munzúbia”, entre a oficial e as que chamam de posições ou sei la o
quê.
- E não é
verdade, filha? Não sabes que morreram muitos na guerra e também, mesmo em
tempos de paz, os rapazes são mais propensos a desportos radicais e outras
forças violentas que os levam, algumas vezes à morte?
- Sim, tia Joana.
Sei disso. Estudamos isso em demografia, mas o censo diz que a proporção é bem
diferente e contrária até ao que dizem os homens. Veja bem - Mariquinha, mais
serena do que antes, prossegui na sua explanação – Há mais mulheres do que
homens, mas não chega uma e meia para cada um. São apenas 52 mulheres para cada
48 homens. Quer dizer que, em cada cem pessoas, 52 são mulheres e 48 são
homens. Onde é que saem as demais com que se fazem passear os chefes e
kamangwistas?
- Minha filha, eu
sou segunda, mas também não sei. -Respondeu Joana perturbada.
- Sim, tia Joana.
Veja bem. - Mariquinha continuou explicativa e inocente. - O censo demonstrou
que nem sequer há uma mulher e meia para um dos homens. Onde é que saem as
demais? O censo, mana Joana, mostra que as mulheres é que têm múltiplos homens
agregados a si.
- Concordo
contigo, minha filha. - Joana, a boss
do bairro da Lata, começou a entender e não tardou em contar o segredo:
– Então, se os homens pensavam que cada um
tinha direito demográfico de quatro mulheres, a verdade diz que pelo menos três
ou quatro partilham a mesma “xuinga”.
- É isso, Dona
Joana. – Respondeu Lareira, assim apelidada pela sua fama de namoradeira a
troco de boleia e aquecedora de lares apossados de gelo. A moça de má fama
resistiu ao início da conversa mas pode ir mais além. Intrometeu-se na conversa
e contando as verdades verdadeiras de que era dominadora. – Nós é que estamos
na mó de cima, mana Joana. Mesmo no Kunene a diferença é mínima. Nós é que
usamos e abusamos dos homens. Pior é que ainda há homens xuingado que pensam
que têm mesmo por direito demográfico esse número ilusório de mboas e que a
xuinga não passa por várias bocas. Outros assumem voluntariamente o socialismo
mulherístico e empurram a carroça para frente, partilhando com xulos e outros
levando uma vida de timatosismo ou pachequismo.
- Ai é, filha? –
Interrompeu Joana, pensando que fosse única nessas andanças. – Olha, filha,
olhando para o censo, até na Lunda Norte, onde o direito consuetudinnário
institucionaliza a poligamia não há mulheres suficientes para o elevado número
de homens, mas cada uma se arroga ao direito de ter mais do que uma. De onde é
que saem as demais?
- É do segredo,
tia Joana. Responderam as comadres todas do salão de cabeleireira.
E não tardou. O
sino do estádio tocou. A ambulância passou com o seu wion, wion, wion
característico. Seguiu-se o carro da polícia a abrir as alas. O povo todo
eufórico. O jogo da equipa da aldeia nada tinha de importância, pois a subida
de divisão era já um facto. Restava saber com quem se jogaria na primeira volta
do campeonato, por isso, os ouvidos deviam estar ligados ao rádio e os olhos à
TV. Nelé e Kapenda saíram de imediato, com a aparência ainda por terminar. Era
dia de futebol!
Texto publicado no Semanario Angolense a 01.11.2014
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