Transcorria o mês de Março. O Estado estava em ebulição. Dois
grupos animavam as conversas e as passeatas e contra passeatas davam sempre
ao Largo da Luz. O puxa que puxa já se parecia ao jogo de "quem mais força tinha
e quem com jeito (?) pretendia derrubar o elefante". Uns puxavam para baixo e
outros para cima. Cada um dos contendores tinha um nome de código, usado apenas
na intimidade dos seus integrantes.
Era manhã de sol. Adivinhando-se mais uma enchente no Largo
da Luz, as zungueiras decidiram marcar presença com suas bacias cheias de tudo:
magogas, cuecas de fio dental, água, kitaba, jinguba, etc. Tudo. Dentre as
zungueiras mais conhecidas da urbe, Ndinha destacava-se pela robustez corporal
e exibicionismo. O seu traje predileto era um collant vermelho por dentro de
uns calções extremamente curtos que faziam parar toda freguesia. Era olhar e comprar.
Tão forte era também o seu pregão que nas ruas já tinha ganho o epíteto de “patroa
da Zunga”.
No bairro Vila Nova, onde residia, os adeptos do “puxa para
baixo” preparavam a passeata anunciada para o Largo da Luz. A música dos “kuduristas
revolucionários” tinha sido distribuída em doses megalómanas aos taxistas e adolescentes
ainda sem o discernimento real sobre o estado do Estado. Doutro lado estavam os
adeptos do “puxa para cima”. Estes estavam em maioria, quer em exibição sonora
quer em número. A Vila Nova estava dividida ao meio, fazendo prever desacatos
no final das marchas.
Desperta pelos ventos dos maus agoiros, Ndinha abandonou o negócio mais cedo e
dirigiu-se ao bairro escolhido como “ponto de partida e de chegada” dos
contendores. Mal pousou as imbambas na cozinha, a voz do marido fazia-se
anunciar:
- Ndinha, Ndinhaaaaaa! Onde estás, meu amorzinho?!
- É o quê então, Jota? Queres já o meu dinheiro da zunga ou
ganhaste no “kaluanda da sorte”?
Jota era desempregado e vivia de comissões em negócios que
envolviam alguns notáveis do Estado.
- Ndinha, amorzinho da minha vida, subi de categoria.
- O quê?
- Sim, isso mesmo. Fui promovido. Chama a vizinha Kuditemu para
trazer muita “birra e pincho”. Chama também todos os meus amigos da célula e
tuas colegas da zunga. A festa começou e não há mais perguntas. É preciso
comemorar à dimensão do cargo que não é pequeno...
- Mas te promoveram então aonde e para quê? - Ndinha, a
mulher, ainda entre o sonho e a realidade, vai acompanhando o agitar da
conversa do marido que liga para os amigos um a um. O DJ Malcriado já estava a
montar as colunas de som, cujos decibéis prometiam inundar de som alto o bairro
todo.
- Hoje o bairro todo vai me sentir. - Disse Jota em voz
alta, deitando goela adentro uma “mini-birra”.
- Mas vão te sentir então o quê que não desembuchas nem para
mim? Ou vendeste a nossa casa?
- Ndinha, não me enche de perguntas. Sou chefe de gente graúda.
Não me deram ainda gabinete nem carro de função mas o que está para vir é muita
coisa mesmo, acredita.
- Mas ó Jota, nem só um pingo ou uma pista me dás? Vou me
gabar como às minhas amigas que mandaste convidar? Vou dizer o meu Jota ganhou “kaluanda
da sorte” ou apanhou mbora diamante no comício?
- Vai filha, chama aquele vizinho jornalista da Rádio
Kuribota. Diz chefe Jota está chamar para fazer o meus discurso de apresentação
no bairro.
A mulher fez a curva da ruela que separava a sua casa do
albergue onde Vangula Ciwa passava noites.
- Vizinho me desculpa só. Sô Jota, meu marido, é que me
mandou vir convida-lo para uma festa que estamos a preparar lá em casa. Pediu também
para o vizinho preparar um discurso para apresentar aos convidados todos que
estão a chegar para a festa da nomeação dele. Vem gente importante. Disse ainda
que o mesmo discurso que o vizinho vai escrever deve passar na Rádio, na TVA e
no jornal Verdade.
O homem puxou pela cadeira e, antes mesmo que convidasse a
vizinha para se sentar, la fora a música alta começou com o "mana me
deixa, me deixa".
- Vizinha Ndinha, diz ao kota Jota que aceito o repto.
Dentro de uma hora terei o discurso
pronto se me disser para que cargo o seu marido foi nomeado.
Ndinha, que também transbordava de alegria, reescreveu a
curva e foi questionar novamente o marido para lhe dizer o tão importante cargo
para que fora nomeado.
- Jota, amorzinho, o peão do Vangula já está a escrever o
discurso. Baixei-lhe a ordem que emitiste. Ele disse só falta mesmo pôr já a
função que te deram na célula.
Jota que pretendia guardar o trunfo para o momento mais alto
da festa contraiu os ombros e disse:
- Sou secretário executivo da Liga.
- Liga, meu amor?!
- Sim liga...
- Liga milionária, liga dos veteranos, liga dos campeões ou
liga de quê? Me explica bem que estou a ficar arrepiada com essa tua festa e
esse teu segredo do cargo.
- Filha, oiça bem. Conheces o camarada Beltrano e o
dirigente Fulano? Conheces o camarada Kapwete e o kota Kamundanda?
- Sim. Ando a lhes ver na TVA. São chefes. Têm boa vida mas
o povo diz de boca aberta que são “bajus” e são eles que mandam bater os "revús"!
- Pois, então anota ai. Sou chefe deles. Me nomearam
secretário executivo da "Libaju"!
Texto publicado no Semanário Angolense a 25.10.2014
Texto publicado no Semanário Angolense a 25.10.2014
E no JA a 17.09.23
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