A octogenária nascida e crescida na missão de Kamundongo (Kuito-Bié),
onde se formou e louvou, manifestara, em vida, o desejo de ser sepultada junto
de seus familiares e contemporâneos cujos restos repousavam já em Kamundongo.
Os filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, contados em centenas,
não fizeram mais senão cumprir o pedido da antiga diaconisa.
- Vamos levar a avó a
Kamundongo e cumprir com o seu último desejo. - Afirmaram entre tristeza e
alegria.
Tristeza porque era uma biblioteca que ia a enterrar.
Alegria porque a sua obra apontava para um descanso merecido ao lado do Senhor. Dai a canção “Tu kusiña
kimbo lya vel´apo!”
A missão de Kamundongo fica a 22 quilómetros da capital
biena. À semelhança das missões homólogas do Chilesso, Dondi, Chissamba,
Chilume, Vouga, entre outras, Kamundongo viu nascer e formou homens e mulheres
que tiveram um papel relevante no surgimento da consciência nacionalista
angolana, na luta pela emancipação dos angolanos e no processo de criação da
nossa nação (ainda em curso).
Inicialmente como professora de artes e ofícios e mais tarde
como parteira, Celita Adolfo, nascida em 1928, foi uma mulher que fez o máximo
que pôde pelos homens e pela sua IECA de que foi diaconisa. Teve, por isso, a
merecida homenagem de despedida na Igreja Central do Kuito, também designada
por “Catedral da Paz”, e um elogio fúnebre à dimensão da Grande mulher que foi.
Troço da picada que nos leva a Missão de Kamundongo |
Em Kamundongo, localidade alcançável em tempo chuvoso apenas
com recurso a carros todo-o-terreno e com pontecos a reclamar por reparações, as
árvores frondosas que guardam a memória de notáveis homens e mulheres da
sociedade Biena e não só, acolheram as centenas de pessoas que foram ao último
adeus a Celita.
Uns cantando, outros acompanhando apenas os coros mas
guardando reverência e expressando nos seus rostos comoção, outros ainda mais
soltos nos gestos e mais alegres nos semblantes, duas mulheres se destacam
entre a multidão.
Uma é idosa. Tem o
netinho às costas. Setenta ou mais anos, indicam as rugas e a flacidez da
epiderme. Está toda apossada de tristeza, como quem quer dizer, mas sem força,
sem fôlego “sempre estivemos juntas, por que me deixas nesta cidade provisória”?
Despejada de quase tudo, dos amigos de infância e adolescência, das colegas dos
coros em que cantou, despojada talvez de filhos e netos ao longo das carnívoras
guerras travadas no planalto central angolano, a idosa só podia oferecer a sua
comoção, enquanto panos já envelhecidos de tantas lavagens cobriam seu corpo
quase secular como também amparavam o “nekulu”
que cabriolava despreocupado nas costas.
Noutra frente, uma jovem há pouco saída da adolescência,
disputava com as amigas o melhor cabelo emprestado e grife da tarde sem sol, nem
chuva. Com um vestidinho colado ao corpo, como se fosse sua pele, e a mostrar
as encostas das nádegas, a jovem estava pintada à moda de mulheres da vida. E
como nestes eventos a vaidade e a petulância vivem juntas, lá estava ela
totalmente singular, exibindo as chaves de uma viatura que seu trabalho honesto
e limpo ainda não permitem comprar. Se calhar, esteja também a sonhar com uma
despedida e um repouso eterno em
Kamundongo… Porém, para lá chegar, terá antes de conhecer e seguir as peugadas
de Celita Adolfo e ter como guião a fé, boas obras, honestidade e moderação.
Kamundongo, Kuito, 04 de Fevereiro de 2014.
Publicado no Jornal Cultura, edição nº 148 de 21 Nov-04 Dez/17
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