Translate (tradução)

quarta-feira, novembro 29, 2023

LÁ & CÁ: PARQUES E TURISMO

Notas turísticas 

Escalar montanhas é um tipo de desporto de lazer que se encaixa perfeitamente no turismo. Quando se vai a Cape Town, uma das maiores atrações turísticas é a Table Moutain, cuja altitude é de mil e oitenta e seis metros. Um dos desafios dos turistas tem sido chegar aos 950 metros de altura, em atalho íngreme do Kloof Corner (a caminho da Table Mountain). Na minha aventura, os 950 metros pareciam insuperáveis, dado o facto de ser quase cinquentão e único entre uma vintena de jovens de vinte a trinta anos. Olhando para o desafio, escalar a montanha por um andarilho, o lado preguiçoso que, infelizmente, todos temos apelava à desistência.  

Sons estranhos vozeiravam em mim. "Kota, não vale apenas só. Vai p'ra casa, prepara tua prova e aprecia uma kisângwa. 

Procurei não ceder e o lado corajoso se sobrepôs, apelando-me ao foco no resultado e não no desafio.  


Quando, ofegante, a meio do percurso, sem saber se continuava ou desistia, com os vasos nasais a se mostrarem demasiadamente estreitos para levar aos pulmões a quantidade de ar que estes demandavam, abri a boca e levei-a mais próxima dos pulmões. Foi como se um veículo 4×4 tivesse ligado o turbo. 

Não tardou. Os jovens que me achavam de velho passaram a perguntar-me um a um: "Kota, de onde provêm toda essa tua energia"? 

A minha resposta foi curta e incisiva. Perante uma prova aparentemente difícil, foque-se no resultado e não no desafio! 

Mais uma vez, cansado, mas realizado, já no sopé e enquanto esperava pela chegada do Uber, encostei-me a um rochedo, tal qual George Washington, após a travessia do rio Mississipi, mas, não fazendo aquela memorável declaração "I'm tired" embora também estivesse, fiquei a pensar na (im)possibilidade de termos também andarilhos nas nossas serras e montanhas para "entreter" turistas e amealhar alguma pecúnia que muita falta nos faz. Vieram-me à cabeça todas as montanhas da minha infância e puberdade como o Morro do Moco, o Luvili, o Manyangwa (entre Muxixi e Lususu, cuja cordilheira se estende ao Kitumbulu), a Serra da Leba, a encosta do Cristo Rei (Lubango) a Tundavala, a Serra das Neves, o morro do Tongo, as montanhas do Kabutu (Kuteka ao Kikole), a Phaka (Kisongo), o Kalyematuji (Kalulu), o Lupange, o Morro do Xingo, as Serras da Kanda e Kusu e tantas outras elevações escaláveis. 

 

A 16 de Setembro de 2023 fui, pela terceira vez, ao cume da "Table Mountain", tida como uma das "sete melhores maravilhas turísticas do mundo", levado pelo teleférico ou "cable" na língua deles.  

Ao contrário das duas primeiras visitas, em que foram dias ensolarados e abertos, portanto, sem nuvens, desta vez a nuvens densas confundiam-se com chuva preguiçosa e a sensação térmica andava à volta dos 3° célsius, imprópria para um cidadão que vive regularmente próximo da Linha do Equador.  

Mesmo com essa adversidade (frio intenso), e depois de um café e um chocolate quentes, deu para me atrever a uma caminhada pelos andarilhos e pontos de observação cuidadosamente construídos no também Parque Nacional. Chamou-me à atenção a presença do damão-de-Cabo ou hyrox, um animal roedor que vive entre pedras, caminhando sobre elas como se tivesse cola entre as patinhas com três dedos apenas. É o kezu, no nosso Kimbundu, ou canta-pedra, como aprendi no Português Libolense da minha infância. 

Confesso. Já andei à caça destes mamíferos placentários e experimentei a missão árdua de os capturar e deliciar-me com o sabor de sua carne, num período de escassez de conduto. Lamento. Foi em uma época de total ignorância e carências, para além do facto de que o animal ainda se apresentava a cantarolar por todos os lados onde houvesse grutas e rochedos. 

No Libolo, por exemplo, a deslocação forçada pela guerra civil de muitas pessoas de suas aldeias, deixando para trás os seus meios de subsistência, empurrou-os à caça desenfreada, não só para se alimentarem, mas também para trocarem a carne por outros alimentos e bens. Como consequência, criou-se o vício da caça pelo dinheiro e ficou gravemente acometida a fauna, algo que tende a persistir, demandando mão firme e pesada. 

É triste que homens de hoje, alguns mais abastados, do ponto de vista de informação científica e materialmente, continuem a dizimar animais, legando a seus filhos e netos apenas estórias sobre animais (que estejam eventualmente) extintos da nossa fauna que já foi muito rica. 

Cada um, na sua aldeia, no seu bairro, na sua comunidade pode ser influenciador positivo sobre a necessidade de criarmos animais domésticos e pouparmos os selvagens.  

Já nos idos de 1980, o meu pai (de feliz memória) recomendava: 

- Só se mata uma fêmea se não puder ser identificada previamente. 

E justificava que "as fêmeas eram a continuidade da fauna". No dizer dele, embora com pouca instrução académica, "se as fêmeas acabassem já não teríamos animal nenhum e deixaríamos de caçar". 

É que se não tomarmos consciência agora, pode ser que os nossos netos tenham de ir, daqui a cinquenta anos, pedir à África do Sul um casal de canta-pedras para repovoar os nossos parques, devendo, entre tantos outros, ser incluída a instância turística de Tundavala, (já) declarada "Património Natural", depois de ter sido "classificada" como uma das 7 maravilhas turísticas de Angola. 

Pense nisso! 

 

Publicado pelo Jor. Angola de 24.09.23

domingo, novembro 26, 2023

REENCONTREI O HOMEM QUE ME SALVOU

Nascia o mês de Junho de 2005. O espaco "Terraço" em Viana, tinha sido o destino, depois de uma semana repleta de trabalho. Éramos três colegas de serviço, dois senhores e uma senhora, fazendo-nos-nos companhia a irmã da colega.  Divertímo-nos ao som de música juvenil até ao nascer do dia 1° de Junho.
De regresso a Luanda, íamos cansados e as senhoras sonolentas. O Vemba, que ia a conduzir, tinha aproveitado fazer as suas sempre oportunas reportagens que alimentavam a sua rubrica cultural nos noticiários nocturnos da LAC. 

_ Sigam com calma e não ultrapassem os cem quilómetros horários. _ Disse aos dois condutores, Adilson Santos e Vemba Menzes, com a voz meio turva, dada a madrugada, à saída da discoteca. 

O corpo reclamava caldo regadio para, às seis da manhã, abrir a emissão da estação Azul, também conhecida pela sua frequência 95.5 FM.

Até proximidades da antiga FTU, as duas viaturas seguiam uma atrás da outra, estando o Adilson à frente. A cidade sonhava ainda, antes de acordar. Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguíamos, decidiu ziguezaguear, levando-nos à mortífera árvore que de sangue engordava nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Polícia de Luanda. 

Era ainda no tempo das vias estreitas entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-nos a Snt'Ana sepulcral com seus lúgubres lençóis.

_ Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? _ As perguntas gritantes e mudas permanecem. 

Quem as podia responder já cá não está. Descarto, porém, a embriaguez e outras coisas insinuadas em surdina.

De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens "para salvar os infelizes".

_ São jornalistas. Salvem os nossos colegas. _ Verberou-se suplicante nos 99.9 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.

Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.

Machados, serras eléctricas, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda, pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado, no embate contra a árvore, arrastou tudo para trás.

_ Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. _ Era a minha voz suplicante, ainda desconhecedor do meu estado físico real. Fui ouvido.

O Hyundai Avla foi esticado. Amarrado de frente à mesma árvore que também sangrava e puxado pelo camião dos bombeiros.

Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, o Vemba, desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.

Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo (as jovens irmãs) e depois os do lado direito, encontraríamos  Leonardo Inocêncio, jovem médico chegado das terras de Fidel, com as mãos afinadas no bisturi, sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística. 

_ Doutor será que ainda viverei? _ Perguntei-lhe entre lucidez e falta dela, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.

_ Vives, meu amigo. Vives, podes crer. _ Respondeu convicto no que seria o resultado do seu trabalho.

Dez anos depois (em 2017), sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, eis-nos, 23 dias, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. 

Em "conversa-puxa-conversa", médico e paciente, revivemos o dia do acidente e de imediato nos identificamos.

_ És tu que estavas naquele acidente de jornalistas?

_ Sim. Sou eu, Doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobrevivêramos duas. _ Expliquei.

_ Por favor, vamos sair e mostra a cicatriz. _ Orientou o cirurgião com a mesma autoridade e carinho que usa no Hospital perante os pacientes.

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: 

_ E qual dos pés sofreu cirurgia?

_ O esquerdo, Dr. Inocêncio. _ Confirmei, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado e que conserva até hoje um parafuso.

_ Pois é. És tu mesmo. É meu paciente. É verdade. _ Disse Leonardo à vintena de colegas de formação (ENAD) que aguardavam pela perícia.  

_ A ferida é minha. Conheço as minhas impressões. _Ironizou.

Abraçáramo-nos perante o olhar pasmado da turma. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com o Dr. Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro de Junho de 2005.

_ Obrigado, Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.

Obs: voltamos a nos reencontrar e confabulámos durante o almoço, hoje, 27.11.2023, em trabalho em Saurimo.

quarta-feira, novembro 22, 2023

PUSA NKUTWALA

No interior, seja qual for a província, dado que os "engarrafamentos" e descasos com o trabalho ainda não se tornaram cancros, as jornadas são quase sempre madrugadoras. O caçador, o camponês/agricultor, o apicultor, o extractor de malavu/maluvu, o mecânico, o motoqueiro, o pescador, o regedor e o administrador civil todos se levantam cedo para ganhar o dia e o pão. Assim fizemos de Kabinda ao Miconje, quase que a percorrer a província mais setentrional de Angola, do Sul ao ponto Nordeste, até beijar o país vizinho.

Levados por um "pusa nkutwala" que no meu Kimbundu equivale a xinjika (empurra), o carro alugado a uma rent-a-car local começou a "tossir" logo antes de atingir a planície de Malembu, fazendo da viagem, de mais ou menos duzentos quilómetros, uma autêntica odisseia. 

Iam comigo apenas o motorista de ocasião da rent-a-car e o Pioneiro Rodrigues, aquele rapaz guerrilheiro que a 11 de Novembro do ano da independência, saído de uma base militar da Munenga, seguiu a Kalulu para baixar a bandeira Tuga, colocá-la em caixão para enterro e fazer subir, pausadamente como fora ensinado, a inaudita bandeira da Nova e República Popular de Angola.

Bem, ida e volta, o somatório se aproximava a 400 quilómetros que exigiam velocidade acima da média em terreno plano e sarado de estropios, mas o "pusa" só tossia quando mais se precisava da sua agilidade e potência, sobretudo nas elevações e desfiladeiros entre montanhas pontiagudas e ensombradas por a altas copas que, dizem, "no tempo da guerrilha do Movimento, paravam as bombas portugas lançadas contra os camaradas revolucionários.

E o Pioneiro Rodrigues, no auge da sua profissão de colector de estórias e fazendo-se também ele um "griot", ia contando factos e anedotas da sua sexagenária "bioteca", encorajando quanto o cronista, quanto ao Zé, o motorista do Porto de Kabinda, que fazia perna na rent-a-car.

_ Importante é chegar. Essas vivências fazem bem ao coração de jornalista. _ Largou o Pioneiro Rodrigues, quando provocado a pedir socorro a outras viaturas ou a chamar, preventivamente, outra viatura da companhia para o socorro e resgate, em caso de necessidade.

_ Mandem outro carro atrás de nós e tragam gasolina complementar para esse xinjika. _ Ordenei irónico, mas determinado. 

Espaço para dúvidas não havia. Era mesmo ordem que foi acatada com a remessa de outra viatura que chegaria até proximidades de Belize.


De regresso de Ntandu Nzize, cruzaríamos com a carrinha de "socorro", ela também a carecer se socorrista, no troço entre as sedes municipais de Belize e Buku Zaw.

_ Chefe, é o meu colega que nos veio prestar auxílio. _ Atirou o Zé, visivelmente satisfeito. "Vou livrar-me dos bafos e falatórios menos apreciativos (contra a rent-a-car) deste chefe". Terá pensado o "chauffeur".

E não é que, orientado a manobrar em sentido oposto, trocámos mesmo de carro, pensando que a Hilux nos levaria de forma mais lesta e a poupar-nos os lombos?

Mal nos aproximámos, o cenário já era repressivo: balde com a gasolina entornado na carroça, senhoras com diversas imbambas na cabine, um jovem motorista franzino e olhos medrosos, para além dos assentos com ferros que nos comiam o que restava da cobertura óssea. 

Logo ao primeiro solavanco da estrutura que parecia desfazer-se por completo a cada buraco, o Pioneiro Rodrigues soltou um grito murmurado.

_ O meu coração já não aguenta.

Pensei na condição de saúde do mais velho que tudo faz para se manter pipi, embora portador de um coração que não pode mais ser martelado e comecei as indagações.

_ Quanto tempo tem esse carro?

_ É capaz de alcançar a caravana que já leva uns dez quilómetros de avanço?

Nisso, o Pioneiro Rodrigues preocupado com a forma como o Beto jogava as sobras desparafusadas do veículo aos buracos, acrescentou:

_ Jovem, diz uma coisa. Há quanto tempo conduzes?

_ Desde Março deste ano. _ Respondeu o Beto, despreocupado e demonstrando uma inocência infantil.

_ Trabalhas na empresa desde Março ou conduzes desde Março? _ Retorquiu o Pioneiro Rodrigues.

_ Tenho a carta desde Março, chefe!

Olhando para a velocidade de "cágado" e o despreparo do Beto, não fizemos mais do que mandá-lo estacionar e elogiar o quão hábil e veloz era o Zé e sua velha Fortuner sem a cinza de fábrica.

Partimos, mais alegres, menos resmungões, contando estórias sobre vidas passadas e o provir. 

É estória por contar aos poucos.

Publicado no Jor. Angola, 05.11.2023

quarta-feira, novembro 15, 2023

O OCTAGENÁRIO QUE TRABALHA POR PRAZER

Desde 2022 que a fome humana me levou à “Fome de Leão”, uma churrasqueira que fica próximo do Largo Sá Carneiro, na zona de Areeiro, Lisboa. Inventivos, patrão e colaboradores, inovam e se esmeram em ter consigo os fregueses de sempre e acolher outros. Mas, entre todos eles, o sô Raimundo é quem mais desperta a atenção do cliente. 

Alto, esguio e parecendo enfrentar uma luta contra a coluna vertebral que o quer empurrar para frente e ele a oferecer uma tenaz resistência jovial, como que dizendo, “por cá a velhice não passará”, Sô Raimundo é um idoso alegre e mexido.

A partir do pequeno “restaurante”, sempre, como quem nada quer, contemplei as suas rotinas: senta-se, quando os empregados estão com as demandas controladas; levanta-se, para fiscalizar as mesas na parte interna e a cozinha; conversa com quem lhe é familiar e ou procura fazer novas aproximações. E foi numa combinação recíproca de interesses que nos descobrimos.

Eu acabara de fazer uma descrição dele que remeti à esposa, escrevendo que, “caso chegue à idade de reforma, gostaria de viver como um velho que estava à frente de mim. É um octogenário que acompanha a sua pequena churrascaria e que, quando pode, tanto recolhe as moedas, como põe ordem em uma mesa para receber novos clientes. Outros idosos com a coma idade dele estarão, eventualmente, a gozar da reforma, viajando em cruzeiros, e outros ainda a jogar às cartas num jardim qualquer. Mas ele, está sempre activo e a mostrar que quem aprendeu nunca esquece, apesar de me parecer ser o dono, a contar com a forma mui atenciosa e carinhosa como todos os de casa o tratam”.

Coincidentemente, ele encostou-se a mim para perguntar se “estava tudo bem”, ao que lhe respondi que ele tinha um bom comedouro.

Disso nasceu uma pequena conversa. Perguntou onde eu morava, tendo lhe respondido que era angolano com curta estada naquela zona.

_Mas, então, o seu rosto já me é familiar. Diga lá, de onde você é. _ Insistiu.

_ Sou angolano e sempre que venho a Lisboa, procuro instalar-me aqui próximo (Areeiro). A primeira vez que entrei no seu estabelecimento fui cordialmente atendido e faço questão de tomar todas as minhas refeições neste espaço. _Respondi-lhe, criando nele outras curiosidades e, quiçá, saudades.

O idoso parou por alguns instante. Via-se que estava a viajar no tempo, pelos lugares conhecidos, pelas lembranças e, quando se recompôs, voltou a questionar.

_ Você conhece o LubangoAntes era Sá da Bandeira. E Nova Lisboa também conhece?

Para mostrar-lhe que era mesmo angolano, peguei o telefone e mostrei-lhe uma crónica que tinha como ilustração a Fenda da Tundavala.

_ Olha, eu nasci e cresci no Lubango. Esse era o local em que íamos para observar o profundo abismo e mandar os olhos à Vila Arriaga (Bibala) que fica do outro lado, lá abaixo.

Provavelmente, poucos lubanguenses (re)conheçam Raimundo Almeida, a contar pela idade que carrega, pois muitos de seus coetâneos terão ido descansar, mas, ele, ainda forte e lúcido, contou um pouco de sua vida (a parte menos amarga) e adiantou que já “fez parte da Direcção do Mambroa do Huambo”, tendo contribuído na colocação da relva e da bancada que “custou muito dinheiro”, numa altura em que era empreendedor na venda e restauração de pneus.

_ Até do meu dinheiro usei para que tivéssemos um campo como queríamos que fosse. _ Disse nostálgico Raimundo Almeida, um confesso adepto do Benfica.

Dentre os seus lamentos, poucos exteriorizados, está o facto de "ter de pedir visto" para ir ao seu país de nascença (felizmente desnecessário por força do DP 189/23 de 29 de Setembro).

_ Não faz sentido. _Atira.

Raimundo deixou o Angola em 1975, antes da independência, num momento de incertezas, rumando para o Brasil, mas por pouco tempo. Muitos angolanos (filhos de portugueses) que não foram à então metrópole tinham encontrado refúgio na África do Sul e ele trocou, tempos depois, o Brasil pelo Cabo onde ficou trinta anos, tendo “criado” a marca Hungry Lion. Posto em Lisboa, conta que procurou “dar continuidade ao negócio de carnes grelhadas” e traduziu a marca do Inglês  para Português, resultando em Fome de Leão, que disse existir há dez anos. Contou que “o negócio vai de bom a melhor”.

_ Com a pandemia da covid-19, abrimos a área de take away e, hoje, as nossas vendas variam entre 200 a 300 frangos diários, sem contar com as carnes de porco e peixe.

Quando indagado sobre o porquê da sua presença diária na churrasqueira, Raimundo Almeida ironiza: “não gosto de trabalhar. Gosto é de ganhar dinheiro. Tudo o que se pareça a trabalho faço-o por prazer”.

É verdade. Quando o trabalho é feito com prazer, deixa de ser trabalho e passa a lazer, como é o caso do mwadyakime Raimundo.


Publicado pelo Jor. Angola 22.10.23

terça-feira, novembro 07, 2023

O ESTADO DAS "NOSSAS MARAVILHAS"

Entre Novembro de 2013 a Setembro de 2014 assistimos a um concurso nacional de promoção de "acidentes geográficos" passíveis de se tornarem locais de interesse turístico e dignos de memória colectiva, passando à designação de "sete maravilhas" de Angola.

Grutas do Zenzo, Lagoa de Karumbu, Quedas de Kalandula, Morro do Moku, Quedas do Cihúmbwe, Fenda da Tundavala e Floresta de Cabinda sagraram-se vencedores, entre vinte e sete finalistas.

Durante a campanha, com ampla divulgação mediática e dinheiro fresco que a sustentou, jornalistas retomados, políticos e figuras proeminentes da sociedade emprestaram seus rostos e vozes para atrair os votos, numa espécie de "gosto do Kanyanga, ele promove Kalulu, voto em Kalulu!"

Racionais ou eufóricos, votamos e foi bom. 

Mesmo não tendo sido finalista, a minha mulher pediu-me para conhecer as Cachoeiras da Binga e, acto contínuo, fomos conhecer as Quedas de Kalandula, em Malanji.

Passados 9 anos, quatro perguntas me ocorrem:

1- Que incrementos infraestruturais tiveram as sete "maravilhas" de Angola?

3- Que quantidade de turistas recebe anualmente cada uma destas "maravilhas"?

3- A par da contemplação visual, há preservação da fauna e flora, podendo ser outros atractivos?

4- A Table Mountain (Cape Town), por exemplo, é um parque nacional. Como vamos nós (Angola) em relação a esta matéria nas nossas "sete maravilhas"?

quarta-feira, novembro 01, 2023

DE VOLTA À MONTANHA

A 16 de Setembro de 2023 fui, pela terceira vez, ao cume da "Table Mountain", tida como uma das "sete melhores maravilhas turísticas do mundo", levado pelo telesférico ou "cable" na língua deles. 

Ao contrário das duas primeiras visitas, em que foram dias ensolarados e abertos, portanto, sem nuvens, desta vez a nuvens densas confundiam-se com chuva preguiçosa e a sensação térmica andava à volta dos 3° celcius, imprópria para um cidadão que vive regularmente próximo da Linha do Equador. 

Mesmo com essa adversidade (frio intenso), e depois de um café e um chocolate quentes, deu para me atrever a uma caminhada pelos andarilhos e pontos de observação cuidadosamente construídos no também Parque Nacional. Chamou-me à atenção a presença do Damão-de-Cabo ou Hyrox, um animal roedor que vive entre pedras, caminhando sobre elas como se tivesse araldite entre as patinhas com três dedos apenas. É o kezu, no nosso Kimbundu, ou canta-pedra, como aprendi no Português Libolense da minha infância.

Confesso. Já andei à caça destes mamíferos placentários e experimentei a missão árdua de os capturar e deliciar-me com o sabor de sua carne, num período de escassez de conduto. Lamento. Foi em uma época de total ignorância e carências, para além do facto de que o animal ainda se apresentava a cantarolar por todos os lados onde houvesse grutas e rochedos.

No Libolo, por exemplo, a deslocação forçada pela guerra civil de muitas pessoas de suas aldeias, deixando para trás os seus meios de subsistência, empurrou-os à caça desenfreada, não só para se alimentarem, mas também para trocarem a carne por outros alimentos e bens. Como consequência, criou-se o vício da caça pelo dinheiro e ficou gravemente acometida a fauna, algo que tende a persistir, demandando mão firme e pesada.

É triste que homens de hoje, alguns mais abastados, do ponto de vista de informação científica e materialmente, continuem a dizimar animais, legando a seus filhos e netos apenas estórias sobre animais (que estejam eventualmente) extintos da nossa fauna que já foi muito rica.

Cada um, na sua aldeia, no seu bairro, na sua comunidade pode ser influenciador positivo sobre a necessidade de criarmos animais domésticos e pouparmos os selvagens. 

Já nos idos de 1980, o meu pai (de feliz memória) recomendava:

- Só se mata uma fêmea se não puder ser identificada previamente.

E jutificava que "as fêmeas eram a continuidade da fauna". No dizer dele, embora com pouca instrução académica, "se as fémeas acabassem já não teríamos animal nenhum e deixaríamos de caçar".

É que se não tomarmos consciência agora, pode ser que os nossos netos tenham de ir, daqui a cinquenta anos, pedir à África do Sul um casal de canta-pedras para repovoar os nossos parques como o da Tundavala que, ao que se diz, foi declarado "Local de Interesse" depois de ter sido classificado como uma das 7 maravilhas turísticas de Angola.

Pense nisso!