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quinta-feira, dezembro 28, 2023

KITOTAS EM MOÇÂMEDES

O Dr. Agostinho Neto, antigo FAPLA no KK, nascido em Malanje, decidiu fazer a sua vida em Moçamedes (Namibe) onde é Director Provincial da Educação. 

Exímio cronista e contista, Agostinho Neto  assinou para o Semanário Angolense, onde também "militei" no mesmo ofício, nos tempos do Director Salas Neto. 

Mesmo sem nos termos encontrado antes, reconheceu-me, baseando-se na foto que encimava os textos e "espetou-me" um caloroso abraço. 

Não sairia de Moçamedes sem dizer-lhe "obrigado" por me ter reconhecido. Deixei-o a ler Kitotas: recuos e avanços. Afinal, o Dr. Agostinho Neto esteve na linha de frente e na região que registou as mais quentes kitotas.

sexta-feira, dezembro 22, 2023

VÊNIA ÀS MULHERES TAXISTAS

"Dentre o total de taxistas, 2% devem ser mulheres". A estimativa é de Beatriz que diz fazer parte de grupos em redes sociais com outras "mulheres que não deixam o carro apanhar poeira” e que “não pedem tomate aos maridos". Vamos à crónica.

Quando, pela primeira vez, me conectei ao aplicativo e chamei pelo táxi privativo e vi o nome feminino, a primeira impressão foi "deve ser um nortense, daqueles que têm o apelido feminino", mas, momentos depois, receberia a chamada de um número desconhecido e a voz a anunciar o táxi era, de facto, feminino.
Muitas ideias aversivas ocorreram-me.
_ Uma mulher-homem? Uma mulher assaltante que se faz passar por taxista?
Quase desisti, mas o lado corajoso gritou altivo.
_ Kanyanga, vai!
Obedeci, afastando as fobias. Afinal era, em Luanda, dia de chuva preguiçosa e contínua. Que fazer?
Minutos depois, apareceu a senhora (já com ou perto de 40 anos transpostos) no terminal aeroportuário, num rosado i10.
_ Sou eu a Beatriz, caro senhor. _ Anunciou-se, perante o meu esforço em associar as informações recebidas na plataforma e o veículo real.
_ Bom dia e obrigado pela celeridade, minha senhora.
_ Aonde vai mesmo o senhor? _ Indagou a confirmar.
_ Vou à vila sede de Viana. Quanto à casa, não se inquiete. Até aonde o seu carro puder chegar.
_Já estava mesmo para me desculpar atempadamente, pelo dia de água e a altura do meu carro. _ Acrescentou.
Seguimos algumas léguas calados, prospectivos e cada um a espera de quem falasse primeiro e o quê. A senhora conduzia como um homem. Demonstrava habilidades na relação íntima com o volante, a estrada e todos os utentes da via. Parecia homem. Porem, e para a minha sanidade, não tinha tiques transexuais, nem barba. Acalmei-me.
_ A quanto tempo a senhora trabalha em serviço de táxi? - Indaguei, complementando:
_ desculpe, fui jornalista e não perdi o gosto pelo questionamento.

A senhora abriu um sorriso de mulher e respondeu sarcástica:
_ Parecia-me tenso e reservado quando entrou no carro...
_ Sim. Hoje há muitas mulheres assaltantes. Não desconfiei da senhora, mas era preciso explorar como fugir, se necessário.
_ Mas, também há homens raptores e assaltantes. Mais homens do que mulheres...
_ Sim. Tem razão.
A chuva dividia-se entre pingos esparsos, pingos regulares e outros mais intensos. Pinguiscava em toda a extensão do trajecto. O trânsito, porém, não estava congestionado e circulava-se bem. Num intervalo de 25 minutos tínhamos transposta a distância que separa o aeroporto 4 de Fevereiro e a Vila Nova (Viana).
Pude ainda saber, durante conversas recortadas, que Beatriz actua em part time há nove meses na actividade de táxi e é investidora em panificação e criação de tilápia. A meta diária é, segundo ela, “fechar Kz 30 mil/dia”, alvo que às 10horas já havia alcançado. Disse ainda que os homens eram "capazes de fazer o dobro", a depender do trânsito e das rotas.
_ As mais longas são mais bem remuneradas. _ Explicou.
Informou que trabalha com carro próprio, permitindo-lhe uma razoável renda para que não falte comida em casa.
_ Quem trabalha com carro alheio paga normalmente ao dono do veículo Kz 100 mil por semana e Kz 400 mil por mês.
O dono do aplicativo fica com 15% da facturação de cada corrida, o que considerou "aceitável".
Desviando para outro dos negócios em que actua, Beatriz reclamou da carestia da farinha de trigo para a panificação, algo que leva a baixar a gramagem e a consequente qualidade do pão.
_ Infelizmente, é o cliente que paga. Nós temos de tirar um pequeno lucro, depois de recuperar o gelo (não sabia que era necessário gelo na produção de pães), o sal, a manteiga, o açúcar, o fermento, a água e outros insumos.
Cumpri a promessa de que ela me devia deixar no ponto mais próximo de minha casa e onde eu sabia que o i10 dela correria riscos de entrada de água, devido a um acentuado buraco na rodovia. Paguei os Kz 3700,00 que o sistema indicou e cada um partiu para a sua vida. Eu para a minha casa que ficava a poucos metros e ela, igualmente, para casa, pois informou que tinha fechado a meta do dia, os Kz 30mil. Ficou por contar a experiência da criação de tilápias, conversa a não esquecer na eventualidade de um reencontro.

Texto escrito a 28.11.2023 e publicado pelo Jornal Cultura de 03.01.2024

domingo, dezembro 17, 2023

O 1° QUADRO DA PRINCESA

Foi-me apresentado pela Lúcia, a mais nova entre os Canhanga de minha (re)produção.

_ Papá, a Argemara (Princesa) fez isso!

Observei e notei que é o começo de uma estrada que pode ser longa e profícua, se se der apoio e se valorizar a arte pictórica nascente.

_ Vou comprá-lo. _ Disse em voz audível, integralmente descodificada pelo Arlindo que se achava por perto.

_ Argemara, ouviste? O papá vai comprar.

Não sei que mensagens mais os irmãos trocaram. Dado o cansaço e acossado por uma ligeira encefaleia, fiz-me ao chuveiro para dormir como "pedra lançada ao poço".

Esta manhã, venho que a autora se encontrava com os primos, a "engenheira"  ambiental Elizabeth Carina e candidato a geólogo Cristiano Canhanga Jaime, chamei-a a perguntar "quanto custa uma tela".

_ Depende do tamanho, papá. Mas esse custou Kz 4500,00, no São Paulo.

_ Vou comprá-lo. Pago Kz 20000,00. Chamei pelo Arlindo, o autodeclarado Director Executivo da Kam&mesa. 

_ Papá?!

_ Põe-no no carro e vai à Kam&mesa. _ Anunciei, fazendo, de seguida, a transferência conta-a-conta.

Deixei-a radiante. Tem o primeiro quadro comprado e estará exposto no quarto n° 06 da Kam&mesa.

sexta-feira, dezembro 15, 2023

SIMBOLISMOS CÁ & LÁ

(As boas coisas que devíamos kabular)

Interiorizei, desde cedo, que uma saída, por mais próximo que seja o destino, deve ser aproveitada, entre outros, para fazer também analogias entre os nossos avanços e atrasos em relação aos outros povos e geografias.

Assim, estando na cidade atlântica mais a sul de África, não me tenho coibido em trocar experiências e anelar o que podemos, mas ainda não possuímos ou gabar-me de nossas riquezas culturais e contornos geográficos ímpares que nos podem colocar, indubitavelmente, em rotas turísticas mundiais.

Eis que, andando desinteressado pelo "calçadão" de Sea Point deparei-me com o Mandela's glasses" que, de imediato, passei a comparar aos meus e a outros mais famosos e dignos de um monumento em noss'Angola querida.

 Os meus óculos, embora sejam de grande utilidade ao meu trabalho, não têm história. Ganham, daqui em diante, a sorte de ter uma estória.

Usei óculos sem graduação, quando era "teeneger", abandonando-os na primeira esquina da juventude, quando o culturismo ocupava parte do meu pouco tempo livre.

Tempos depois, surgiu a necessidade ingente de renda permanente, passando de sub-empregado a dupla ou triplamente empregado, elevando a minha exposição prolongada ao écran do televisor, que só veio a piorar com o surgimento dos telefones celulares. Foi a entrar para a fase da juventude plena (ainda) que fiz a primeira visita ao optometrista e ao oftalmologista que não fizeram mais senão prescrever-me um par de óculos.

Depois de quatro ou cinco anos a usar lentes correctivas, houve ainda um interregno de tempo em que fora declarado livre de "mawanas".  Hoje, porém, depois do telefone celular, os óculos são o meu segundo objecto de preocupação imediata e permanente.

Passemos a Madiba. Quem caminha à beira-mar, em Sea Point, Cape Town, verá, inocultável, um monumento em que se replicam os óculos do primeiro presidente negro da África do Sul. A caminhar pela baia, "Mandela's Glasses" é um ponto em que os turistas de várias origens (e até nacionais) procuram parar e fazer uma foto ímpar que serve de lembrança aos amigos (daqueles que fazem publicações nas redes sociais) e para marcar o autor/turista durante a vida toda, lembrando-se da estadia em Sea Point e da passagem pelo local.

Cada detalhe, cada objecto da vida de um líder com a grandeza de Nelson Mandela ou de Agostinho Neto pode ser transformado em motivo de atracção turística.

É sabido que os angolanos, representados pela Direcção do MPLA, negaram-se em receber os restos mortais do "guia imortal" sem os seus óculos, tendo, ao que se diz, a urna funerária sido devolvida à Ex-União Soviética (Setembro de 1979) para a colocação dos óculos (sem as lentes) e permitir que o cadáver embalsamado fosse facilmente reconhecido como o de Agostinho Neto que sempre se apresentou em público com os seus pesados óculos. Por tudo quanto foi aflorado, os óculos de Agostinho Neto, por si sós, merecem uma descrição e elevados ao conhecimento público dos nacionais e visitantes estrangeiros.

Vejamos, por exemplo, como a China, noutra latitude, faz para fomentar o turismo interno, fazendo réplicas de monumentos de outros países.

Uma réplica da Torre Eiffel pode ser vista em Tianducheng, ao passo que Xangai tem cópias da Torre (inclinada) de Pisa e Thames Town. A Florentia Village pode ser visitada em Wuqing e Hallstatt, em Huizhou.

_ Podemos copiar o monumento com a réplica dos óculos de Mandela e termos também na nossa Marginal de Luanda um local com os "Óculos de Neto"?

Acredito piamente que é possível!

Mas sobre a marginal de Sea Point não é tudo. O rhino's view point é outro local de paragem, quase que obrigatória, de dezenas de caminhantes.

O rinoceronte é um grande herbívoro existente na faixa sul e central de África, incluindo o Sul de Angola, e também na Ásia. São conhecidas cinco espécies, sendo duas em África e outras três no continente asiático.

É óbvio que o seu habitat não é a cidade e, fora os parques e safaris, a maioria das pessoas só os vê na televisão e nos filmes.

Os sul-africanos fizeram uma "brincadeira" encantadora na marginal de Sea Point, implantando peças diversas (representando partes do corpo do animal) que, quando vistas fora do ponto de observação, passam despercebidas. É preciso subir ao ponto de observação para que as "peças diversas" se componham em uma única figura. É uma bela forma de entreter o turista. Coisas simples, mas que marcam.

Sempre que me deparo com esses exemplos, fico a pensar na nossa Palanca Negra Gigante, que só existe em Angola, e que também pode "pastar" na nossa marginal da Praia do Bispo.

Por outro lado, as cidades crescentes como Luanda e Cape Town enfrentam desafios ligados ao estacionamento urbano. Em Luanda, são os jovens e adolescentes que vêem das barrocas da Boavista e outros bairros distantes que se assenhoraram das ruas das Ingombotas como se de sua propriedade se tratasse. O mais caricato é que até os polícias e fiscais pagam "gorjetas" a esses "miúdos" que podiam aprender profissões, em vez de se contentaram com dinheiro fácil e grande parte deles aos vícios como o álcool e drogas.

Diferente de Luanda, a fiscalização do "street parking" de Sea Point e Cape Town é feito de forma rigorosa e produtiva por homens e mulheres adultas que, munidos de equipamentos de facturação, comunicação para chamar a polícia e outros meios, gerem os espaços demarcados para o estacionamento temporário, colectando para a edilidade e agindo contra os incumpridores (resulta em outras colectas).

É fácil reconhecê-los. Homens e mulheres vestindo colectes reflectores e farda azul-escura, atentos aos que param e aos que deixam os espaços livres. A sobre estadia tem outra facturação ou multa. E os automobilistas cumprem. Tal faz também pensarem duas vezes entre caminhar uns metros ou levar a viatura e ter de pagar pelo estacionamento temporário.

A edilidade buscou uma parceria público-privada (ppp) para a sua gestão. Ao fim do dia, os fiscais dos espaços para estacionamento urbano dirigem-se a um "post-office" onde fazem as contas do dia e recebem a percentagem que lhes é devida.

Dá prazer vê-los a entrarem, depois de contas feitas, em lojas ou "street market" para pegarem o jantar e suprir outras necessidades caseiras.

Em 2020, eu havia feito uma reportagem ao meu Camarada de feliz memória, Sérgio Rescova, enquanto governador de Luanda. Pareceu ter acolhido os dados que lhe passei, mas não demorou e foi enviado ao Uige, perecendo tempo depois.

Num curso sobre Economia Moderna, (ENNAP 2020-2021), apresentei o assunto como meu "paper" reflexivo (espécie de monografia), tendo merecido um efusivo acolhimento do professor que recomendou "elevá-lo a artigo científico e ou materializar a experiência em Luanda".

Espero que este apontamento desperte os administradores da província de Luanda e outros a fim de repensarem no dinheiro que perdem ao deixar os espaços para estacionamento urbano em mãos de vadios e (alguns) delinquentes.

Por último, mas não menos importante, trago a experiência absorvida sobre o horário de trabalho. Antes, conto-lhe sobre o exercício mimético de um pombo que se confundira ao negro do asfalto.

O mimetismo está presente em nossas vidas. Humanos, outros animais tidos como irracionais e plantas experimentam, em alguns estágios de sua existência, o mimetismo. O camaleão é o mais conhecido neste exercício. Talvez assolado pelo frio, que no mês de Setembro não poupa nenhum vivente, um pombo negro encontrou um canto alcatroado para fazer-se passar despercebida.

O caminho não me era novo. Era o de sempre e sem novidades por expectar. Decidi, entretanto, focar-me nos detalhes para que a graça não se esvaísse com a redundância. Olhei demoradamente para a paz dos pombos, perante um mar normalmente bravio, mas que se mostrava calmo e um sol altivo em dia de chuva e sensação térmica calculada em 9 graus Celcius.

Caminhava, quase sozinho, naquela passarela longa e larga, perguntando-me "aonde foram os companheiros das caminhadas de todos os dias"?

Sempre encontrei a marginal apinhada de gente que combate a ociosidade, a obesidade e outros males. Geralmente, ninguém lúcido quer ter problemas de coração.

A ausência dos companheiros de passada e outros mais lestos que, normalmente, passam por mim com o quadruplo ou sêxtuplo da velocidade levou-me a questionar insistentemente aos "meus botões":

_ Será que a inundação humana da calçada apenas acontece com a soltura da função pública que, nesta cidade, entra às 09h e sai às 4 da tarde, perfazendo no trabalho presencial as 07 horas que nos custam cumprir em Angola?

Fiquei a pensar ainda na dificuldade que, por vontade nossa, instalámos em chegar às 08h00 e o bónus que recebemos na Lei de Bases da Função Pública que dita a entrada naquela hora "impossível" e a saída às 15h00.

Já que gostámos de kabular (nem sempre em perfeitas condições), por que não se estendeu o horário de entrada para 09 e saída às 4 da tarde, o que não cortaria sequer uma unha aos que têm o "congestionamento do trânsito" como justificação de perenes atrasos no local de prestação de serviço?

Há uma voz que me grita distante: "muitos não gostam mesmo é de trabalhar"! 

 

 Publicado pelo Jornal de Angola de 01.10.23

sexta-feira, dezembro 08, 2023

DO LARGO DO AMBIENTE AO SANA

(Sob cheiro nauseabundo e sol ardente)

A aurora contava ainda instantes, mostrando tetinhas de sol. Uma demanda profissional, “madrugadora” para os hábitos que se vão instalando em Luanda de chagada tardia aos eventos, levou-me a percorrer parte da Avenida Gamal Abdel Nasser (do Largo do Ambiente à intercessão com a Rua da Muxima e desta à intercessão com a Rua Direita de Luanda (junto ao Epic Sana).

Tal levou-me ao já longínquo ano de 1985, quando conheci a Missão Metodista e zona adjacente que percorríamos no final dos ensaios para a comemoração do Centenário da Igreja Metodista que aconteciam na Igreja Central ou Missão Metodista como também foi e é ainda conhecida.

Pude rever o Museu de História Natural e, na viagem ao passado, rememorar o seu interior, ouvir as vozes dóceis das guias, assim como galgar as escadas e aquela passagem inferior qur se diz(ia) "actuam no local, forças incógnitas que fazem os carros se movimentarem mesmo sem aceleração".

Entretanto, voltando ao mundo real, a transformação da área foi tão rápida, adversa e controversa que alguns iluminados ou afortunados acabaram por se apoderar e “concretaram” o horto botânico que se achava na zona do Kinaxixi, fazendo desaparecer toda aquela exuberância verde que hoje só há memória em livros do passado.

A calçada superior, da Avenida Gamal Abdel Nasser, apesar de ter ao lado vizinhos cujas moradias denunciam posses e esperando-se deles (e de seus dependentes) higiene, parece-se a um “montulho” de imundícies entregues a corvos e porcos.

Tudo quanto pude apreciar, ao longo da minha caminhada (ida e na volta com o dia já ensolarado), o comportamento dos residentes e frequentadores se resume no seguinte: abriu gasosa lançou à calçada; usou absorvente, atirou ao apeadeiro; descartou repolho, idem. Um descaso total e imundície sem igual em cidades dignas deste registo. 

A excepção são as três roullotes instaladas sobre a calçada que lutam, contra gigantes assépticos, deixando apresentável o estreito espaço à volta. Mas há um ar pesado e carregado de asco que polvilha o ambiente envolvente e afugentando qualquer requisição estomacal.

Até o lancil desabado da Gamal Abdel Nasser aguarda pelo tombo de um carro para despertar a atenção. Alguém viu aquilo a ruir por dentro?

Que cidade é essa em que dizemos viver e que citadinos são esses que não zelam pela urbe que dizem sua?

sexta-feira, dezembro 01, 2023

UMA PARAGEM NO "VELHO MÁRIO"

TURISMO/KONDA/KWANZA-SUL
Mário Santos e o cronista
Em viagens de descompressão e descoberta do que há de recomendável em termos de nossas potencialidades e realidades turísticas, passei pela Konda, também conhecida como "terras da Tokota", sem que a curiosidade me levasse a adentrar o que se anunciava à entrada do rio Wiri.

Dizíamos, eu e meus companheiros de viagem, nas duas vezes que por lá passamos, que "a Konda não possuía sequer um albergue para o indivíduo se acoitar em noite friorenta de kasimbu".

Não me bastando a desatenção, à terceira, mensageei o meu amigo kondeense residente em Luanda há já largas décadas "se me podia recomendar um lugar para pernoitar", pois dirigia-me, em missão de trabalho, ao seu mui propalado município em tertúlias inter-kwanza-sulinas e "imelistas", ao que respondeu amável e sarcasticamente "chega cedo, paquera uma jovem e dorme em casa dos putativos sogros".

Caí na galhofa, mas encontraria surpresa pela frente.
Conhecedor do que há e pode haver, o Honorato Kondjassili, geólogo kunenense e com muitos anos de kwanza-sulismo, já conhecia o "Velho Mário" e as maravilhas da "sua" fazenda-hospedaria, herdada do tio Waldemar Pereira da Costa.

O que encontrei é um oásis, um encanto afugentador de doenças profissionais e agitacionais urbanas, escondido entre arvoredo e nevoeiro permanente, numa elevação próxima da vila de Konda.

À entrada, há um edifício alto, inestético por fora, mas que se apresenta altivo e guardador de muitas estórias e história.

_ O que é e o que terá sido?" _ São as perguntas que invadem o neófito visitante.

Às paredes altas da antiga moageira apresentam-se anexos distribuídos pelas redondezas e que são hoje "os aposentos dos donos" e toda a área de catering, incluindo os demais serviços como a área de processamento de café, dois njangu (aberto e fechado), jardins, alfobres, gaiola, etc. Perto de légua e meia ficam os hóspedes, a piscina, a quadra de jogos e outros serviços mais ligados à parte agrícola (aprisco, capoeira, pocilga, etc.).
Restos da antiga moagem "Canini"
A casa alta e inestética, aos olhos do visitante de primeira, foi, nos anis 50 do século XX, moagem de fuba de milho amarelo, conhecida entre os kwanza-sulinos de meia e alta idade como fuba "canini", antes de a marca "canini" passar, na década de 70, para a Caima, na Kibala. O edifício que estamos a retratar tinha ainda uma secção de bolacharia, ou seja, a "fábrica de bolachas". Lá estão ainda as máquinas que, com a ajuda do "Velho Mário", contam toda a história.

"Até hoje, muitos mais velhos daqui me tratam por Waldemar, em alusão ao meu tio que foi o fundador da Fazenda Wiri", conta o "general".

Mário Santos, 73 anos, idoso na idade, mas jovem nas ideias e na vontade férrea de viver e fazer as coisas acontecerem como fruto do seu trabalho, é investidor em hotelaria, "há nove anos", na fazenda Wiri que ganha o nome do rio que a rega. É próximo da vila sede da Konda. Diz que é também "proprietário de um restaurante com o selo Tokota", junto ao HMP, em Luanda, gerido pelas filhas e acrescenta: "o nome Tokota foi igualmente levado a um empreendimento em Portugal", onde estão os netos.

Natural do Ebo e criado na Gabela, Mário Santos combina a hotelaria rural à fazenda e não deve nada ao turismo que se faz, por exemplo, em Cape Town.

No Wiri estão 22 quartos que registam uma média de ocupação de 75%.
"O ideal, para quem queira vir correr com o estresse urbano é fazer reserva, pois pode calhar num dia em que tenho apenas 5 camas ocupadas ou todas elas", diz num misto de alegria e apreço pela chegada de 12 hospedes saídos de Luanda e Sumbe.
Antiga fábrica de bolachas
O antigo militar das FAPLA, ostentando, na reserva, uma alta patente que não revelou (embora sendo tratado por gente que o conhece há longos anos por "general") diz ter jogado no ARA da Gabela, passando por todas as categorias: juvenil, júnior e sénior tendo vivido no clube muitas glórias.
"Já na tropa, fiquei nos gabinetes, era miúdo e franzino e fiquei na recta-guarda, mas sempre atendo e a servir os da linha de frente".

E como é que um ebwense-gabelense chegou a converter em restaurante e exposição agro-comercial a "primeira unidade a produzir a fuba canini", antes de a moageira ser transferida para a Caima, na Kibala?

Conta que "foi por insistência do General Serafim do Prado", um kondense que pretendia imprimir mais vida à sua terra natal.
"Eu dizia-lhe que não gostava de tratar papéis, mas ele insistiu e acabei por cá vir, inicialmente a fazer agricultura e depois (já leva 09 anos) a fazer também agro-turismo".

O mais velho Mário Santos, mostrou uma área da antiga moagem que foi fábrica de bolachas e explicou como se processava.
"Eu via como se fazia, mas não trabalhava ainda. Eram os meus pais".

Nos seus 73 anos, lembra as longas viagens, da Gabela a Luanda, em viatura de marca Chevrolet, que chegavam a durar até um mês.
"Era uma eternidade". Lembra que as estradas não estavam ainda asfaltadas e a velocidade das "máquinas" de então também era muito diminuta.

"Essa estrada que liga o Sumbe a Benguela não existia ainda", advertiu, sendo que o trajecto fazia-se via Kibala-Dondo-Luanda.
Na quarta-feira, 15 de Novembro 2023, contou Mário Santos, a fazenda-hospedaria "despediu-se de uma delegação do "instituto das cobras" (CIMETOX-Malanje), recebendo, depois, uma família de seis integrantes, saída da África do Sul e, posteriormente, uma delegação de 12 pessoas saídas de Luanda e Sumbe.

"Amanhã vem uma delegação de diplomatas. É assim o nosso dia-a-dia. É isso que ajuda a compensar a crise da agricultura", explicou.
A dona Odete Waldemar, a esposa, está sempre por perto. É ela quem cuida zelosamente da alimentação e das inúmeras plantas decorativas. A kizaka confeccionada pela dona Odete tem um sabor indiscritível. Só provando. A receita é somente dela.

"Ela é muito exigente e cautelosa no que faz", descreve-a o marido para quem "sem a presença dela seria impossível manter a fazenda, a hospedaria e tudo o que brota a volta".
Pois é. Ao lado de um homem de sucesso está ou deve sempre estar uma companheira alinhada e comprometida.
=
Publicado pelo Jornal de Angola a 31.12.2023

quarta-feira, novembro 29, 2023

LÁ & CÁ: PARQUES E TURISMO

Notas turísticas 

Escalar montanhas é um tipo de desporto de lazer que se encaixa perfeitamente no turismo. Quando se vai a Cape Town, uma das maiores atrações turísticas é a Table Moutain, cuja altitude é de mil e oitenta e seis metros. Um dos desafios dos turistas tem sido chegar aos 950 metros de altura, em atalho íngreme do Kloof Corner (a caminho da Table Mountain). Na minha aventura, os 950 metros pareciam insuperáveis, dado o facto de ser quase cinquentão e único entre uma vintena de jovens de vinte a trinta anos. Olhando para o desafio, escalar a montanha por um andarilho, o lado preguiçoso que, infelizmente, todos temos apelava à desistência.  

Sons estranhos vozeiravam em mim. "Kota, não vale apenas só. Vai p'ra casa, prepara tua prova e aprecia uma kisângwa. 

Procurei não ceder e o lado corajoso se sobrepôs, apelando-me ao foco no resultado e não no desafio.  


Quando, ofegante, a meio do percurso, sem saber se continuava ou desistia, com os vasos nasais a se mostrarem demasiadamente estreitos para levar aos pulmões a quantidade de ar que estes demandavam, abri a boca e levei-a mais próxima dos pulmões. Foi como se um veículo 4×4 tivesse ligado o turbo. 

Não tardou. Os jovens que me achavam de velho passaram a perguntar-me um a um: "Kota, de onde provêm toda essa tua energia"? 

A minha resposta foi curta e incisiva. Perante uma prova aparentemente difícil, foque-se no resultado e não no desafio! 

Mais uma vez, cansado, mas realizado, já no sopé e enquanto esperava pela chegada do Uber, encostei-me a um rochedo, tal qual George Washington, após a travessia do rio Mississipi, mas, não fazendo aquela memorável declaração "I'm tired" embora também estivesse, fiquei a pensar na (im)possibilidade de termos também andarilhos nas nossas serras e montanhas para "entreter" turistas e amealhar alguma pecúnia que muita falta nos faz. Vieram-me à cabeça todas as montanhas da minha infância e puberdade como o Morro do Moco, o Luvili, o Manyangwa (entre Muxixi e Lususu, cuja cordilheira se estende ao Kitumbulu), a Serra da Leba, a encosta do Cristo Rei (Lubango) a Tundavala, a Serra das Neves, o morro do Tongo, as montanhas do Kabutu (Kuteka ao Kikole), a Phaka (Kisongo), o Kalyematuji (Kalulu), o Lupange, o Morro do Xingo, as Serras da Kanda e Kusu e tantas outras elevações escaláveis. 

 

A 16 de Setembro de 2023 fui, pela terceira vez, ao cume da "Table Mountain", tida como uma das "sete melhores maravilhas turísticas do mundo", levado pelo teleférico ou "cable" na língua deles.  

Ao contrário das duas primeiras visitas, em que foram dias ensolarados e abertos, portanto, sem nuvens, desta vez a nuvens densas confundiam-se com chuva preguiçosa e a sensação térmica andava à volta dos 3° célsius, imprópria para um cidadão que vive regularmente próximo da Linha do Equador.  

Mesmo com essa adversidade (frio intenso), e depois de um café e um chocolate quentes, deu para me atrever a uma caminhada pelos andarilhos e pontos de observação cuidadosamente construídos no também Parque Nacional. Chamou-me à atenção a presença do damão-de-Cabo ou hyrox, um animal roedor que vive entre pedras, caminhando sobre elas como se tivesse cola entre as patinhas com três dedos apenas. É o kezu, no nosso Kimbundu, ou canta-pedra, como aprendi no Português Libolense da minha infância. 

Confesso. Já andei à caça destes mamíferos placentários e experimentei a missão árdua de os capturar e deliciar-me com o sabor de sua carne, num período de escassez de conduto. Lamento. Foi em uma época de total ignorância e carências, para além do facto de que o animal ainda se apresentava a cantarolar por todos os lados onde houvesse grutas e rochedos. 

No Libolo, por exemplo, a deslocação forçada pela guerra civil de muitas pessoas de suas aldeias, deixando para trás os seus meios de subsistência, empurrou-os à caça desenfreada, não só para se alimentarem, mas também para trocarem a carne por outros alimentos e bens. Como consequência, criou-se o vício da caça pelo dinheiro e ficou gravemente acometida a fauna, algo que tende a persistir, demandando mão firme e pesada. 

É triste que homens de hoje, alguns mais abastados, do ponto de vista de informação científica e materialmente, continuem a dizimar animais, legando a seus filhos e netos apenas estórias sobre animais (que estejam eventualmente) extintos da nossa fauna que já foi muito rica. 

Cada um, na sua aldeia, no seu bairro, na sua comunidade pode ser influenciador positivo sobre a necessidade de criarmos animais domésticos e pouparmos os selvagens.  

Já nos idos de 1980, o meu pai (de feliz memória) recomendava: 

- Só se mata uma fêmea se não puder ser identificada previamente. 

E justificava que "as fêmeas eram a continuidade da fauna". No dizer dele, embora com pouca instrução académica, "se as fêmeas acabassem já não teríamos animal nenhum e deixaríamos de caçar". 

É que se não tomarmos consciência agora, pode ser que os nossos netos tenham de ir, daqui a cinquenta anos, pedir à África do Sul um casal de canta-pedras para repovoar os nossos parques, devendo, entre tantos outros, ser incluída a instância turística de Tundavala, (já) declarada "Património Natural", depois de ter sido "classificada" como uma das 7 maravilhas turísticas de Angola. 

Pense nisso! 

 

Publicado pelo Jor. Angola de 24.09.23

domingo, novembro 26, 2023

REENCONTREI O HOMEM QUE ME SALVOU

Nascia o mês de Junho de 2005. O espaco "Terraço" em Viana, tinha sido o destino, depois de uma semana repleta de trabalho. Éramos três colegas de serviço, dois senhores e uma senhora, fazendo-nos-nos companhia a irmã da colega.  Divertímo-nos ao som de música juvenil até ao nascer do dia 1° de Junho.
De regresso a Luanda, íamos cansados e as senhoras sonolentas. O Vemba, que ia a conduzir, tinha aproveitado fazer as suas sempre oportunas reportagens que alimentavam a sua rubrica cultural nos noticiários nocturnos da LAC. 

_ Sigam com calma e não ultrapassem os cem quilómetros horários. _ Disse aos dois condutores, Adilson Santos e Vemba Menzes, com a voz meio turva, dada a madrugada, à saída da discoteca. 

O corpo reclamava caldo regadio para, às seis da manhã, abrir a emissão da estação Azul, também conhecida pela sua frequência 95.5 FM.

Até proximidades da antiga FTU, as duas viaturas seguiam uma atrás da outra, estando o Adilson à frente. A cidade sonhava ainda, antes de acordar. Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguíamos, decidiu ziguezaguear, levando-nos à mortífera árvore que de sangue engordava nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Polícia de Luanda. 

Era ainda no tempo das vias estreitas entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-nos a Snt'Ana sepulcral com seus lúgubres lençóis.

_ Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? _ As perguntas gritantes e mudas permanecem. 

Quem as podia responder já cá não está. Descarto, porém, a embriaguez e outras coisas insinuadas em surdina.

De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens "para salvar os infelizes".

_ São jornalistas. Salvem os nossos colegas. _ Verberou-se suplicante nos 99.9 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.

Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.

Machados, serras eléctricas, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda, pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado, no embate contra a árvore, arrastou tudo para trás.

_ Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. _ Era a minha voz suplicante, ainda desconhecedor do meu estado físico real. Fui ouvido.

O Hyundai Avla foi esticado. Amarrado de frente à mesma árvore que também sangrava e puxado pelo camião dos bombeiros.

Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, o Vemba, desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.

Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo (as jovens irmãs) e depois os do lado direito, encontraríamos  Leonardo Inocêncio, jovem médico chegado das terras de Fidel, com as mãos afinadas no bisturi, sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística. 

_ Doutor será que ainda viverei? _ Perguntei-lhe entre lucidez e falta dela, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.

_ Vives, meu amigo. Vives, podes crer. _ Respondeu convicto no que seria o resultado do seu trabalho.

Dez anos depois (em 2017), sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, eis-nos, 23 dias, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. 

Em "conversa-puxa-conversa", médico e paciente, revivemos o dia do acidente e de imediato nos identificamos.

_ És tu que estavas naquele acidente de jornalistas?

_ Sim. Sou eu, Doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobrevivêramos duas. _ Expliquei.

_ Por favor, vamos sair e mostra a cicatriz. _ Orientou o cirurgião com a mesma autoridade e carinho que usa no Hospital perante os pacientes.

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: 

_ E qual dos pés sofreu cirurgia?

_ O esquerdo, Dr. Inocêncio. _ Confirmei, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado e que conserva até hoje um parafuso.

_ Pois é. És tu mesmo. É meu paciente. É verdade. _ Disse Leonardo à vintena de colegas de formação (ENAD) que aguardavam pela perícia.  

_ A ferida é minha. Conheço as minhas impressões. _Ironizou.

Abraçáramo-nos perante o olhar pasmado da turma. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com o Dr. Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro de Junho de 2005.

_ Obrigado, Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.

Obs: voltamos a nos reencontrar e confabulámos durante o almoço, hoje, 27.11.2023, em trabalho em Saurimo.

quarta-feira, novembro 22, 2023

PUSA NKUTWALA

No interior, seja qual for a província, dado que os "engarrafamentos" e descasos com o trabalho ainda não se tornaram cancros, as jornadas são quase sempre madrugadoras. O caçador, o camponês/agricultor, o apicultor, o extractor de malavu/maluvu, o mecânico, o motoqueiro, o pescador, o regedor e o administrador civil todos se levantam cedo para ganhar o dia e o pão. Assim fizemos de Kabinda ao Miconje, quase que a percorrer a província mais setentrional de Angola, do Sul ao ponto Nordeste, até beijar o país vizinho.

Levados por um "pusa nkutwala" que no meu Kimbundu equivale a xinjika (empurra), o carro alugado a uma rent-a-car local começou a "tossir" logo antes de atingir a planície de Malembu, fazendo da viagem, de mais ou menos duzentos quilómetros, uma autêntica odisseia. 

Iam comigo apenas o motorista de ocasião da rent-a-car e o Pioneiro Rodrigues, aquele rapaz guerrilheiro que a 11 de Novembro do ano da independência, saído de uma base militar da Munenga, seguiu a Kalulu para baixar a bandeira Tuga, colocá-la em caixão para enterro e fazer subir, pausadamente como fora ensinado, a inaudita bandeira da Nova e República Popular de Angola.

Bem, ida e volta, o somatório se aproximava a 400 quilómetros que exigiam velocidade acima da média em terreno plano e sarado de estropios, mas o "pusa" só tossia quando mais se precisava da sua agilidade e potência, sobretudo nas elevações e desfiladeiros entre montanhas pontiagudas e ensombradas por a altas copas que, dizem, "no tempo da guerrilha do Movimento, paravam as bombas portugas lançadas contra os camaradas revolucionários.

E o Pioneiro Rodrigues, no auge da sua profissão de colector de estórias e fazendo-se também ele um "griot", ia contando factos e anedotas da sua sexagenária "bioteca", encorajando quanto o cronista, quanto ao Zé, o motorista do Porto de Kabinda, que fazia perna na rent-a-car.

_ Importante é chegar. Essas vivências fazem bem ao coração de jornalista. _ Largou o Pioneiro Rodrigues, quando provocado a pedir socorro a outras viaturas ou a chamar, preventivamente, outra viatura da companhia para o socorro e resgate, em caso de necessidade.

_ Mandem outro carro atrás de nós e tragam gasolina complementar para esse xinjika. _ Ordenei irónico, mas determinado. 

Espaço para dúvidas não havia. Era mesmo ordem que foi acatada com a remessa de outra viatura que chegaria até proximidades de Belize.


De regresso de Ntandu Nzize, cruzaríamos com a carrinha de "socorro", ela também a carecer se socorrista, no troço entre as sedes municipais de Belize e Buku Zaw.

_ Chefe, é o meu colega que nos veio prestar auxílio. _ Atirou o Zé, visivelmente satisfeito. "Vou livrar-me dos bafos e falatórios menos apreciativos (contra a rent-a-car) deste chefe". Terá pensado o "chauffeur".

E não é que, orientado a manobrar em sentido oposto, trocámos mesmo de carro, pensando que a Hilux nos levaria de forma mais lesta e a poupar-nos os lombos?

Mal nos aproximámos, o cenário já era repressivo: balde com a gasolina entornado na carroça, senhoras com diversas imbambas na cabine, um jovem motorista franzino e olhos medrosos, para além dos assentos com ferros que nos comiam o que restava da cobertura óssea. 

Logo ao primeiro solavanco da estrutura que parecia desfazer-se por completo a cada buraco, o Pioneiro Rodrigues soltou um grito murmurado.

_ O meu coração já não aguenta.

Pensei na condição de saúde do mais velho que tudo faz para se manter pipi, embora portador de um coração que não pode mais ser martelado e comecei as indagações.

_ Quanto tempo tem esse carro?

_ É capaz de alcançar a caravana que já leva uns dez quilómetros de avanço?

Nisso, o Pioneiro Rodrigues preocupado com a forma como o Beto jogava as sobras desparafusadas do veículo aos buracos, acrescentou:

_ Jovem, diz uma coisa. Há quanto tempo conduzes?

_ Desde Março deste ano. _ Respondeu o Beto, despreocupado e demonstrando uma inocência infantil.

_ Trabalhas na empresa desde Março ou conduzes desde Março? _ Retorquiu o Pioneiro Rodrigues.

_ Tenho a carta desde Março, chefe!

Olhando para a velocidade de "cágado" e o despreparo do Beto, não fizemos mais do que mandá-lo estacionar e elogiar o quão hábil e veloz era o Zé e sua velha Fortuner sem a cinza de fábrica.

Partimos, mais alegres, menos resmungões, contando estórias sobre vidas passadas e o provir. 

É estória por contar aos poucos.

Publicado no Jor. Angola, 05.11.2023

quarta-feira, novembro 15, 2023

O OCTAGENÁRIO QUE TRABALHA POR PRAZER

Desde 2022 que a fome humana me levou à “Fome de Leão”, uma churrasqueira que fica próximo do Largo Sá Carneiro, na zona de Areeiro, Lisboa. Inventivos, patrão e colaboradores, inovam e se esmeram em ter consigo os fregueses de sempre e acolher outros. Mas, entre todos eles, o sô Raimundo é quem mais desperta a atenção do cliente. 

Alto, esguio e parecendo enfrentar uma luta contra a coluna vertebral que o quer empurrar para frente e ele a oferecer uma tenaz resistência jovial, como que dizendo, “por cá a velhice não passará”, Sô Raimundo é um idoso alegre e mexido.

A partir do pequeno “restaurante”, sempre, como quem nada quer, contemplei as suas rotinas: senta-se, quando os empregados estão com as demandas controladas; levanta-se, para fiscalizar as mesas na parte interna e a cozinha; conversa com quem lhe é familiar e ou procura fazer novas aproximações. E foi numa combinação recíproca de interesses que nos descobrimos.

Eu acabara de fazer uma descrição dele que remeti à esposa, escrevendo que, “caso chegue à idade de reforma, gostaria de viver como um velho que estava à frente de mim. É um octogenário que acompanha a sua pequena churrascaria e que, quando pode, tanto recolhe as moedas, como põe ordem em uma mesa para receber novos clientes. Outros idosos com a coma idade dele estarão, eventualmente, a gozar da reforma, viajando em cruzeiros, e outros ainda a jogar às cartas num jardim qualquer. Mas ele, está sempre activo e a mostrar que quem aprendeu nunca esquece, apesar de me parecer ser o dono, a contar com a forma mui atenciosa e carinhosa como todos os de casa o tratam”.

Coincidentemente, ele encostou-se a mim para perguntar se “estava tudo bem”, ao que lhe respondi que ele tinha um bom comedouro.

Disso nasceu uma pequena conversa. Perguntou onde eu morava, tendo lhe respondido que era angolano com curta estada naquela zona.

_Mas, então, o seu rosto já me é familiar. Diga lá, de onde você é. _ Insistiu.

_ Sou angolano e sempre que venho a Lisboa, procuro instalar-me aqui próximo (Areeiro). A primeira vez que entrei no seu estabelecimento fui cordialmente atendido e faço questão de tomar todas as minhas refeições neste espaço. _Respondi-lhe, criando nele outras curiosidades e, quiçá, saudades.

O idoso parou por alguns instante. Via-se que estava a viajar no tempo, pelos lugares conhecidos, pelas lembranças e, quando se recompôs, voltou a questionar.

_ Você conhece o LubangoAntes era Sá da Bandeira. E Nova Lisboa também conhece?

Para mostrar-lhe que era mesmo angolano, peguei o telefone e mostrei-lhe uma crónica que tinha como ilustração a Fenda da Tundavala.

_ Olha, eu nasci e cresci no Lubango. Esse era o local em que íamos para observar o profundo abismo e mandar os olhos à Vila Arriaga (Bibala) que fica do outro lado, lá abaixo.

Provavelmente, poucos lubanguenses (re)conheçam Raimundo Almeida, a contar pela idade que carrega, pois muitos de seus coetâneos terão ido descansar, mas, ele, ainda forte e lúcido, contou um pouco de sua vida (a parte menos amarga) e adiantou que já “fez parte da Direcção do Mambroa do Huambo”, tendo contribuído na colocação da relva e da bancada que “custou muito dinheiro”, numa altura em que era empreendedor na venda e restauração de pneus.

_ Até do meu dinheiro usei para que tivéssemos um campo como queríamos que fosse. _ Disse nostálgico Raimundo Almeida, um confesso adepto do Benfica.

Dentre os seus lamentos, poucos exteriorizados, está o facto de "ter de pedir visto" para ir ao seu país de nascença (felizmente desnecessário por força do DP 189/23 de 29 de Setembro).

_ Não faz sentido. _Atira.

Raimundo deixou o Angola em 1975, antes da independência, num momento de incertezas, rumando para o Brasil, mas por pouco tempo. Muitos angolanos (filhos de portugueses) que não foram à então metrópole tinham encontrado refúgio na África do Sul e ele trocou, tempos depois, o Brasil pelo Cabo onde ficou trinta anos, tendo “criado” a marca Hungry Lion. Posto em Lisboa, conta que procurou “dar continuidade ao negócio de carnes grelhadas” e traduziu a marca do Inglês  para Português, resultando em Fome de Leão, que disse existir há dez anos. Contou que “o negócio vai de bom a melhor”.

_ Com a pandemia da covid-19, abrimos a área de take away e, hoje, as nossas vendas variam entre 200 a 300 frangos diários, sem contar com as carnes de porco e peixe.

Quando indagado sobre o porquê da sua presença diária na churrasqueira, Raimundo Almeida ironiza: “não gosto de trabalhar. Gosto é de ganhar dinheiro. Tudo o que se pareça a trabalho faço-o por prazer”.

É verdade. Quando o trabalho é feito com prazer, deixa de ser trabalho e passa a lazer, como é o caso do mwadyakime Raimundo.


Publicado pelo Jor. Angola 22.10.23