"Dentre o total de taxistas, 2% devem ser mulheres". A estimativa é de Beatriz que diz fazer parte de grupos em redes sociais com outras "mulheres que não deixam o carro apanhar poeira” e que “não pedem tomate aos maridos". Vamos à crónica.
Quando, pela primeira vez, me conectei ao aplicativo e chamei pelo táxi privativo e vi o nome feminino, a primeira impressão foi "deve ser um nortense, daqueles que têm o apelido feminino", mas, momentos depois, receberia a chamada de um número desconhecido e a voz a anunciar o táxi era, de facto, feminino.
Muitas ideias aversivas ocorreram-me.
_ Uma mulher-homem? Uma mulher assaltante que se faz passar por taxista?
Quase desisti, mas o lado corajoso gritou altivo.
_ Kanyanga, vai!
Obedeci, afastando as fobias. Afinal era, em Luanda, dia de chuva preguiçosa e contínua. Que fazer?
Minutos depois, apareceu a senhora (já com ou perto de 40 anos transpostos) no terminal aeroportuário, num rosado i10.
_ Sou eu a Beatriz, caro senhor. _ Anunciou-se, perante o meu esforço em associar as informações recebidas na plataforma e o veículo real.
_ Bom dia e obrigado pela celeridade, minha senhora.
_ Aonde vai mesmo o senhor? _ Indagou a confirmar.
_ Vou à vila sede de Viana. Quanto à casa, não se inquiete. Até aonde o seu carro puder chegar.
_Já estava mesmo para me desculpar atempadamente, pelo dia de água e a altura do meu carro. _ Acrescentou.
Seguimos algumas léguas calados, prospectivos e cada um a espera de quem falasse primeiro e o quê. A senhora conduzia como um homem. Demonstrava habilidades na relação íntima com o volante, a estrada e todos os utentes da via. Parecia homem. Porem, e para a minha sanidade, não tinha tiques transexuais, nem barba. Acalmei-me.
_ A quanto tempo a senhora trabalha em serviço de táxi? - Indaguei, complementando:
_ desculpe, fui jornalista e não perdi o gosto pelo questionamento.
_ Parecia-me tenso e reservado quando entrou no carro...
_ Sim. Hoje há muitas mulheres assaltantes. Não desconfiei da senhora, mas era preciso explorar como fugir, se necessário.
_ Mas, também há homens raptores e assaltantes. Mais homens do que mulheres...
_ Sim. Tem razão.
A chuva dividia-se entre pingos esparsos, pingos regulares e outros mais intensos. Pinguiscava em toda a extensão do trajecto. O trânsito, porém, não estava congestionado e circulava-se bem. Num intervalo de 25 minutos tínhamos transposta a distância que separa o aeroporto 4 de Fevereiro e a Vila Nova (Viana).
Pude ainda saber, durante conversas recortadas, que Beatriz actua em part time há nove meses na actividade de táxi e é investidora em panificação e criação de tilápia. A meta diária é, segundo ela, “fechar Kz 30 mil/dia”, alvo que às 10horas já havia alcançado. Disse ainda que os homens eram "capazes de fazer o dobro", a depender do trânsito e das rotas.
_ As mais longas são mais bem remuneradas. _ Explicou.
Informou que trabalha com carro próprio, permitindo-lhe uma razoável renda para que não falte comida em casa.
_ Quem trabalha com carro alheio paga normalmente ao dono do veículo Kz 100 mil por semana e Kz 400 mil por mês.
O dono do aplicativo fica com 15% da facturação de cada corrida, o que considerou "aceitável".
Desviando para outro dos negócios em que actua, Beatriz reclamou da carestia da farinha de trigo para a panificação, algo que leva a baixar a gramagem e a consequente qualidade do pão.
_ Infelizmente, é o cliente que paga. Nós temos de tirar um pequeno lucro, depois de recuperar o gelo (não sabia que era necessário gelo na produção de pães), o sal, a manteiga, o açúcar, o fermento, a água e outros insumos.
Cumpri a promessa de que ela me devia deixar no ponto mais próximo de minha casa e onde eu sabia que o i10 dela correria riscos de entrada de água, devido a um acentuado buraco na rodovia. Paguei os Kz 3700,00 que o sistema indicou e cada um partiu para a sua vida. Eu para a minha casa que ficava a poucos metros e ela, igualmente, para casa, pois informou que tinha fechado a meta do dia, os Kz 30mil. Ficou por contar a experiência da criação de tilápias, conversa a não esquecer na eventualidade de um reencontro.
Texto escrito a 28.11.2023 e publicado pelo Jornal Cultura de 03.01.2024
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