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domingo, agosto 22, 2021

O RANGEL DOS ANOS 80 E O KOTA KAMBWALANGA

Kaputo (aquém)

No Kaputo dos anos oitenta, vivíamos todos como família de mesmo sangue. Tínhamos, grande parte dos moradores da Rua de Ambaca e adjacentes, a origem kwanza-sulina, a língua comum que nossos pais glosavam sem levar mão à boca e a cultura que era forte sem as frivolidades desses tempos.

Filho de vizinho era filho mesmo ou sobrinho. A irmã do amigo era mana e todos os de cabelo branco era avós. Entre os tios, aqueles que chamavam nossas mamãs por cunhada ou mana despontava Kambwalanga.
- Wanañe, a mon'Elombo?¹ - Era assim que me saudava, sempre que cruzasse com ele, pelos lados dos chamados prédios dos cubanos, à antiga floresta de eucaliptos do Rangel, onde prestava serviços de apoio doméstico.
Glosava, embora raras vezes e só com estranhos, algum português. Uma comunicação do tipo "tira água ou dá pão" como costuma brincar a minha progenitora, fazendo alusão aos que possuam pouco ou nenhum traquejo no uso da língua portuguesa. Kambwalanga, de seu nome, era um homem impoluto, um poço de músculos, força e resistência que usava para levar isso e aquilo, montar e desmontar, quando não fosse mesmo para travar até "ventos". Era visto a andar frequentemente a pé, sempre vestindo calções à moda alemã. Aliás, nas conversas com minha mãe e seu irmão Francisco Sentido, que visitava com frequência, costumava falar (em seu materno Kimbundu) sobre a vida de fazendeiros alemães que habitaram o Libolo, a exemplo "Bikman" e Krosigk" de quem herdou o gosto pelos calções.
Demente para uns e consciente para outros, Kambwalanga apresentava ligeiros distúrbios psicossomáticas recortados com momentos de aparente lucidez que lhe permitia manter conversas com fio condutor e com recurso à memória que parecia de grande fertilidade.
Apesar da sua compleição física, nunca o vimos lutar ou entrar em troca de dislates, como era comum em outras pessoas com distúrbios.
Os miúdos do meu tempo, anos 80 do século XX inventaram que Kambwalanga “era o único libolense que tinha percorrido a pé os cerca de 280 quilómetros que separam Kalulu de Luanda, dispensando todas as boleias que lhe tinham aparecido”. Mera invenção dos petizes.
Não se lhe conhece nenhum filho, ou vontade de construir ou arrendar uma casa em Luanda. Para os que se encontrassem no Libolo, Kambwalanga vivia com o irmão Francisco Sentido que trabalhava na Casa Americana. Porém, só o visitava com frequência, depois de ter deixado de com ele partilhar o quartinho na Rua de Ambaca, ao Kaputo. Ele dormitava debaixo de prédios, entre os conglomerados B e C, ou onde a noite o encontrasse.
Nunca alguém apareceu a reclamar dívida contraída ou paternidade não assumida, embora se contasse que antes de apresentar pequenos distúrbios emocionais sazonais Kambwalanga fora um homem com casa, lavra de meter inveja e uma linda mulher.

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¹- Estás bem, filho da Kilombo?

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