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segunda-feira, junho 01, 2020

O HOMEM QUE ME SALVOU

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: E qual dos pés sofreu cirurgia?
Nascia o mês de junho de 2005. Viana, Terraço, tinha sido o destino depois de uma semana repleta de trabalho. Três colegas de serviço, em companhia da irmã de uma das colegas voltavam a Luanda sonolentos e cansados. O Vemba tinha aproveitado fazer as suas sempre oportunas reportagens que alimentavam a sua página cultural nos noticiários nocturnos da LAC. A viagem de ida, o convívio até ai corriam à feição.
- Sigam com calma e não ultrapassem os cem quilómetros horários. A voz soberana fazia-se ouvir apesar de meio turva dada a madrugada. Reclamava caldo regadio para às seis abrir a emissão da estação Azul, também baptizada por 955.
Já a primeira das duas viaturas se tinha afundado no horizonte visual. A cidade sonhava ainda antes de acordar.  Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguiam os quatro, decidiu ziguezaguear, levando-os à mortífera árvore que de sangue engordava nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Policia de Luanda.
Era ainda no tempo das vias estreitas entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-os a Snt'Ana sepulcral com seus lúgubres lençóis.
- Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? - As perguntas gritantes e mudas permanecem. Quem as podia responder já cá não está. Apenas a embriaguez e outras coisas meditadas em surdina posso descartar.
De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens para salvar os infelizes.
- São jornalistas. Salvem os nossos colegas. - Verberou-se suplicante nos 999 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.
Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.
Machados, serras, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda, pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado no embate contra a árvore arrastou tudo para trás.
- Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. - A voz soberana, ainda distante do seu estado físico real, foi ouvida.
O Avla teria de ser esticado, amarrado de frente, à mesma árvore que também sangrava, e puxado pelo camião dos bombeiros.
Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, Vemba,  desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.
Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo e depois os do lado direito, encontrariam Leonardo Inocêncio, jovem chegado das terras de Fidel, mãos afinadas no bisturi, sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística.
- Doutor será que ainda viverei? - Perguntou-o o Soba preocupado, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.
- Vives, meu amigo. Vives, podes crer. - Respondeu convicto no fim do seu trabalho.
Dez anos depois, sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, ei-los, 23 dias, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. Em "conversa puxa conversa", médico e paciente revivem o dia do acidente e de imediato se identificam.
- És tu que estavas naquele acidente de jornalistas?
- Sim. Sou eu doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobreviveram duas. - Explicou o sobrevivo.
- Por favor, vamos sair e mostra a cicatriz. - Orientou o cirurgião com a mesma autoridade que usa no Hospital perante os pacientes.
- O esquerdo, Dr. Inocêncio. - Confirmou o Soba, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado.
- Pois é. És tu mesmo. - confirmou o médico.
- É meu paciente. É verdade. - Disse Leonardo à vintena de colegas que aguardavam pela perícia. - "A ferida é minha". Conheço as minhas impressões. - Ironizou.
Abraçaram-se perante o olhar pasmado da turma. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro  de junho.
- Obrigado Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.

PS: completam-se hoje 15 anos

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