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domingo, janeiro 29, 2017

DIA DE REUNIÃO


Era sábado de um ano bissexto. A aldeia de Pedra Escrita tinha deixado de ser um amontoado de gentes de várias origens e começava a se tornar numa comunidade homogénea. Toneco, o coordenador, recebera a missão de fazer daqueles retalhos, juntados à força de balázios pelo Comandante Infeliz, um conglomerado comum, vivendo as pessoas em harmonia. E já eram mais de mil e quinhentas vidas, distribuídas por não menos de duzentos lares. Contados os que emigraram para longas e curtas estadas, estariam aí umas duas mil almas.

Cinco e meia da manhã. Kilombo, a coordenadora da OSA, e Cati, sua adjunta, estavam a rondar o terreiro das reuniões comunitárias. Os olhos distribuíam ora para a casa de Toneco ora para a casa de Mangodinho. As reuniões aconteciam ao raiar do sol, seis ou sete horas, a depender do sinal do Soba ou, no caso deles que não têm ainda soba, quando o secretário mandar tocar o sino. Depois são mais dez minutos para a concentração dos adultos.

Antigo homem de reconhecimento, nas FAPLA, Toneco parecia adivinhar a intenção das mulheres. Lembrou-se dum Lema de então é pô-lo em prática: "se o adversário madruga eu não durmo". Passou pela porta traseira e foi avisar o Mangodinho que também estava desperto.

- O mano se ausenta por uns instantes. Pode ir à lavra comunitária. Vamos medir a temperatura cá dentro e depois mando-o chamar. - Apelou Toneco.

Enquanto isso, no terreiro já era alta a temperatura. Kilombo e Catarina agitavam as bandeiras.

- Esse Mangodinho e o comparsa dele Toneco, só porque querem se distribuir os cargos de soba, estão a querer nos atrofiar? Não pode ser! Cati, vais ver, min´rmã. Comigo, nenhum homem desta aldeia torra farinha. Vamos se destapar e ver se é homem que fez mulher ou mulher que nasce homem. Isso é abuso. É discriminação. Isso não é lei. Quem é que disse que onde toma banho homem não toma banho mulher? - A voz de Kilombo era audível em quase todo o bairro. Tamanha era a fervura da mulher.

Cati, mais branda, entretanto, ia também, de quando em vez, alimentando aquela fogueira de palavras.

- Lhes deixa, Mana Kilombo. Se não nos deixarem frequentar a tal lagoa vou lhes rogar uma praga que a água toda vai secar. - Ajuntou.

- Xê, Mana Cati, escolhe outra praga. Essa de secar a água vamos ter fome. Vem só chuva grande de arrastar o tanque e ponto final. A Banga deles acaba, sacanas de merda, e ficamos todos como no antigamente.

As duas abraçaram-se por instantes, sem desarmar a vigília ocular que mirava a casa de Mangodinho e a de Toneco que estava de ouvidos ao terreiro e de lápis sobre o papel.

Às seis e meia, já o sol rasgava a montanha de Manyangwa, aquela que viaja norte-sul, barrando a visão leste-oeste.

- Ndrim, ndrim, ndrim... - Rapaz Cordeiro, sobrinho de Toneco, tocou o sino.

A comunidade, homens de um lado e mulheres de outro, formaram duas alas. O centro foi alargado para couberem quatro cadeiras: a do Secretário Toneco, as dos arguentes Kilombo e Mangodinho, mais uma de reserva.

- Isso é abuso. Já estão a ver? Como é que o gajo do Zequeno não vem, se nós já estamos aqui desde as cinco horas? - Atirou Kilombo que se preparava para o ir buscar à força.

- Não faz isso, mana Kilombo. Manzequeno também tem família. Tem mulher e filhos. Você não sabe o que se passou em casa dele. Como é que falas assim do outro? - Acudiu Katembo, uma senhora de quarta classe do tempo de Agostinho Neto.

Toneco pediu licença para mandar ir buscar uma lapiseira. Na verdade, era para mandar um rapaz correr até à lavra comunitária e avisar a Mangodinho que quando lhe fosse dada a palavra começasse por reportar o estado da lavra e o dia da chegada do professor.

- Bom dia minha comunidade! - Cumprimentou Toneco.

- Bom dia nosso secretário. - Respondeu a multidão.

- Bem. Camaradas, irmãos, meus conterrâneos. A terra é nossa, a aldeia é nossa e os problemas também são nossos. Somos nós que temos que resolver para ver se nossa aldeia vais mais à fren...?

- À frente. - Completou o povo.

- Bem. Estamos aqui chamados pela mana Kilombo que está à frente das mulheres organizadas da nossa aldeia. Isso é bom quando a voz da mulher se faz sentir na hora dos assuntos. Mas a mulher, mesmo em casa, tem que saber gritar. Gritar bem para não espantar os filhos nem a aldeia. Não é assim?

- É assim mesmo. - Respondeu a assistência.

Lá atrás ainda se ouviu uma voz a resmungar: E reclamar é mal? Mas foi abafada por outras mulheres que pretendiam ouvir. O sol estava a subir e era hora de dar matabicho às crianças.

- Pois é. - Continuou Toneco. - O mano Zequeno teve um assunto urgente, mas não tarda ele estará aqui. Podemos já ouvir a mana Kilombo e quando ele chegar falar também o que estiver na cabeça dele. Em princípio, o problema todo está aqui. Toneco exibiu um saco preto amarrado o que levou estupefação à assistência.

- Como é que o problema do acesso das mulheres à piscina fica num saco? - Questionaram-se.

Kilombo falou. Volteou tanto que acabou baralhando até as suas apoiantes. Toneco teve de manda-la parar. Mangodinho chegou, saudou e expôs também.

- Queridas irmãs e irmãos. Atrasei-me porque as aulas dos nossos filhos e irmãos recomeçaram segunda-feira. O professor vem no mesmo dia. Temos de lhe mostrar a escola reparada que está aí e a lavra que fui ver. Se fuba vamos continuar a contribuir, as verduras não precisamos mais. Lá já tem tudo.

A multidão, Kilombo incluída, fez um interrupção ao discurso e brindando-o com uma estrondosa salva de palmas.

- Obrigado pelas palmas. Mas são do nosso Secretário. É ele o nosso chefe... Sobre o assunto desta assembleia, devo dizer que me chateou o que encontramos na "peixina". Estávamos mesmo a pensar em distribuir horário de banho e de limpeza. Ou então, quem sujou limpa já. Mas, logo no primeiro dia, encontramos adubo. Isso é bom?

O secretário chamou da plateia uma senhora.

- Mana Cati, põe essas luvas e faz, favor. Abre só esse saco.

A mulher ao ver o que havia, no interior, fez meia-volta e pôs-se ao fresco.

- Mana Kilombo, favor nos ajuda. - Pediu Toneco.

Kilombo coçou a nuca, mas fez coragem e calçou as luvas. Porém, ao reparar a fralda de que ela mesma se havia esquecido no recinto de banhos, também recuou.

Toneco, abriu o saco e deixou cair o lixo para que todos vissem. Daí em diante foram só apupos às duas senhoras.

- Pois, mamãs. É esse o problema. Mas vou falar com o Manzequeno, que está aqui, para encontrarmos meio termo. Homem e mulher têm direitos iguais. Até também na valorização do esforço dos outros e na higiene para não atrairmos mais doenças que matam muita gente. Não é assim?

- É assim, mesmo nosso secretário. - O povo respondeu e cada um fez-se a caminho dos seus afazeres, sem que Toneco tivesse a necessidade de bater o martelo. Ponto final.

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