O óbito
da prima Cici, falecida aos 22 anos, quando frequentava o quinto ano de
medicina geral, tinha sido menos demorado do que o habitual nas comunidades
rurais. Enorme que foi a perda, o casal decidiu espalhar o mais cedo quanto
possível os familiares que tinham viajado de longe e se esforçarem a encarar
aquela dura realidade. Sendo do ciclo familiar mais próximo, Mangodinho ficou
mais umas semanas em Luanda, ajudando aqui e acolá, na recomposição da casa.
A
piscina, sua "lagoa imaginativa", precisava de ser esvaziada e limpa.
O jardim, verde florescente dias antes, reclamava por rega, poda e limpeza. As
paredes interiores, brancas de neve, apresentavam marcas de pés descalços e até
mesmo sapatões poeirentos e ou lamacentos. Havia resto de qualquer coisa em
algum lugar.
Foi já a
fechar a metade do mês que recebeu o convite do coetâneo Mbondondo para
conhecer o istmo de Luanda.
Num velho
Corolla, que andava resmungão, cortaram a cidade toda pelo meio, até se
enfiarem numa língua de terra abraçada pela água salgada. Mangodinho sentia o
cheiro à maresia mas não divisava o mar que, à noite, camaleava do azul para
negro.
-
Zequeno, ouviste falar sobre a ilha que levou a nossa prima, não é? É então aqui.
Chegamos.
- Ó
primo, Mbondondo, ilha é aqui mesmo? E água de sal então está aonde?
- Calma,
Zequeno. Não fala alto, porque aqui tem pessoas importantes e podem pensar que
somos do mato.
- Mas ser
do mato é mal? Então, quando eles vão ao mato, também não nos costumam
perguntam "aquela camontanha nome dele é qualé? Aquele rio nome dele é
quê?" É mal perguntar em Luanda?
Mbondondo
na defensiva, magicava respostas equilibradas. Procurava mostrar aos que os
rodeavam que ele era já quase um Kalu. Procurava também não ofender a honra do
amigo que tinha uma visão do mundo diferente dos kaluandizados.
- Mas ó
Mbondondo, então, aqui na ilha também tem aldeias muito escuras tipo no mato?
- Como
assim, ó Zequeno, se as ruas todas por onde passamos estão iluminadas e o
bairro tem energia? Onde é que você viu escuridão?
Mangodinho,
o Zequeno, levantou a cabeça e com o braço direito esticado levou o seu
interlocutor a esticar a cabeça para a mesma direcção do "infindável"
Atlântico.
- Epá,
olha: essa aldeia aí se parece com a nossa Pedra Escrita. Só tem uma casa com
gerador!
Um navio,
ao Largo, aguardava ordem de atracar no Porto Comercial de Luanda. Era único no
mar do horizonte visual.
-
Zequeno, fica espero. Tudo isso que te parece mata é mar. É só água com sal.
Água do mar, kalunga-Lwiji. É um rio sem fim. O que estamos a ver é barco
longe, no mar. Não é casa com gerador.
Entraram
numa tasca e beberam do que o bolso permitiu. Quando o álcool começou a falar
mais alto do que todas as vozes juntas, abraçaram-se e choraram juntos.
- Esse é o mar, dá alegria aos caluandas a quem tira stress, aquele cansaço da cabeça de quem trabalha no escritório. Tira sarna às pessoas que vêm da
bwala. Mas também dá tristeza. Água do mar é
pesada e tem kalema que enrola pessoa, mesmo nadadora famosa no Longa como nós.
Kalunga é alegria e morte. - Explicou Mbondondo ao seu coetâneo Zequeno
que bebeu mais um trago e adormeceu.
Publicado no caderno fim-de-semana, do Jornal de Angola, 03/06/18, pag. q0
Publicado no caderno fim-de-semana, do Jornal de Angola, 03/06/18, pag. q0
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