A amizade que carregam, há mais de meio século, dá-lhe a ousadia
para falarem de tudo e sobre tudo. Entre eles, nada é segredo. Apenas há
segredos que desvendam só quando a fila ande. Aí sim. Abrem um espaço nos
epitáfios e levam ao conhecimento dos parentes mais chegados as extravagâncias inauditas
do de cujus.
Chegados da
Kibala, Kitembo e os amigos Kanhanga, Kilole e Kapitia notaram a ausência de
Kandungu. O homem tinha o telefone desligado, não mandava os habituais recados
aos manos da sua geração e igualhagem, nem pedia dinheiro para a cura de
reumatismo que ardilosamente desviava para as "baixinhas espumosas",
como gostava de tratar as cervejas de garrafa curta.
-
Compadres, o gajo deve ter ido para a pior ou a caminho disso. Depois do culto,
é melhor irmos espreitar, se ainda encontramos o corpo quente. - Kanhanga aos
coetâneos que depressa concordaram.
Juntaram
moedas, as que haviam sobrado de um domingo de muitos balaios: fundo de
construção, acção de graças, dízimo do Senhor (roubará o homem a seu Deus?
Questionara o pastor para melhor penetrar-lhe o cérebro e a algibeira), oferta
dominical, etc. Tinha sido uma fina peneira, mas, mais-velho é já mais velho,
tem sempre reserva estratégica. E foi com o sacudir dos kafokolos, onde
normalmente fica enfiada a reserva estratégica, que fizeram a vaquinha com que
se meteram a estrada, ao encontro de Kandungu.
Encontraram-no
vivo, mas degradado. Isso mesmo degradado e em estado lastimável. Os saltos,
provocados pelos buracos na via que separa a capital da sede de Kibala, haviam
debilitado a sua coluna de sustentação. Os antibióticos e analgésicos para
afugentar as artrites foram substituídos pelas "pequenas espumantes".
Encontraram um amigo vivo mas transfigurado. Mais morto do que vivo.
Primeiro
entrou Kitembu, amigo e tio, embora dois anos mais novo do que Kandungu.
Seguiram-se-lhe Kanhanga e Kilole. Kapitia chegaria meio atrasado, pois fora
ver a filha nas cercanias.
- Boa tarde
sô Kandungu. Esta hora já estás calibrado? - Saudou, gozão, Kitembu.
- Não
brinques assim. Se me encontraram com vida é já sorte. Quanto à bebida com que
sempre te embirras, hoje só bebi mesmo uma. Estou mesmo a morrer e nem sei
porquê que Deus não me leva já. - Respondeu Kandungu, resmungão e com a voz
trémula, como se lhe faltassem apenas instantes para transitar para outra
dimensão da vida.
- Mas ó
Kandungu, é mesmo morrer que queres, quando pessoas com noventa fogem da morte
como satanás foge da cruz? - Indagou Kilole?
- Sim, mano
Kilo. Aqui já não está a dar certo. Sofrimento é muito. Morrer é descansar.
Os amigos,
algo co condoídos, algo chateados, com o indivíduo que degradou o corpo por
livre vontade, decidiram retirar-se e voltar no dia seguinte. Eram todos
reformados e Kitembu tinha um bom jeep em que se faziam transportar, quando não
fosse na carrinha de dupla cabina que Kanhanga acabara de receber de oferta do
filho.
- Vamos.
Quando voltarmos trazemos outras ideias e esperamos não te encontrar mais nesse
leito e nessa desgraça. - Disse Kitembu a despedir-se e puxando pelos amigos.
Kapitia,
que acabara de chegar, tentou ainda convencer Kandungu para se livrar da ideia
de se eutanasiar.
- Mas, ó
mano Kandungu, ainda a semana passada que choramos o irmão Domingos João, até
as lágrimas nos olhos ainda não se secaram, você quer já nos deixar?
- Sim,
Kapitia, é melhor eu partir. Se vocês acham que estou a brincar, amanhã mesmo
não vão mais me encontrar.- Disse Kandungu com as últimas forças que lhe
restavam.
Kapitia,
entre sarcasmo e compaixão, decidiu solicitar uma oração, mesmo Kandungu não
sendo mais membro da igreja, ao que todos concordaram, até o inferno que se
achava sem forças para se pôr em pé.
- Oremos:
" Pai nosso, nosso Senhor, Deus que dá a vida e que a retira quando quer,
estamos aqui perante nosso irmão que jazz nesse leito, mais pra lá do que cá. A
vida que o irmão Kandungu leva é de muito sofrimento e miséria, pai. Já que ele
mesmo está a pedir, por que é que o pai não manda essa noite seu anjo busca-lo?
Ao menos ele descansa perto ou longe do Senhor, em função das suas obras no
mundo. Que assim seja. Ámen!
- Ámen! -
Confirmaram os amigos.
Kapitia
ainda não tinha terminado a oração é já Kandungu se sacudia de pé, entre
os amigos. Afinal, não era a morte que precisava.
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