Nos meus tempos de criança já
tinha ouvido falar e visto o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão
duro que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em
bocados nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em
Kalulu, nos anos oitenta do século XX era vendido nas empresas cafeícolas
Libolo I, Libolo II e Libolo III.
Tempos depois, com a fome que se
seguiu aos dias das refregas pós-eleitorais de 1992, surgiram dois tipos de
feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta sogra”. O primeiro era de
fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco minutos. O segundo
era de uma dureza nunca vista e que naqueles tempos de fome e penúria muito
servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.
- Mamã almoço hoje é feijão. Só
que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda
botija, e nada! - Diziam.
Quando pensava ter já ouvido e
assistido a muita coisa, hoje fui surpreendido com o feijão “afugenta cliente”.
Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é bluff.
Fiz, com antecipação de 24 horas
e reconfirmação de 4 horas antes o pretendido almoço, um pedido para pitéu em
instância turística para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono
sobático”. Gentil, como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa
praia. Trocamos mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Um
título e um agradecimento desse lado, outro título e agradecimento da praxe do
outro lado.
- Papá, o almoço hoje é onde?-
Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda no meio do culto Metodista.
- Filho, ainda é cedo. Respondi-lhe
com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local
de adoração.
-Mamã, papá não está a falar onde
vamos comer:- Resmungou, em busca de auxílio.
- Eu já disse que vamos almoçar
num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos
para o almoço.
- Papá, vamos comer “papuço”? -
Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta.
- Sim. Vamos comer kakusu, se te
portares bem.
O sol corria para o meio centro.
As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo
esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as
lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o
local e hora do almoço.
- Mor, já confirmaste o almoço? -
Desta vez foi a digníssima, talvez preocupada com a fome dos filhos (as
mulheres têm essa “mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando
o seu quinhão.
- Sim, já enviei mensagem a
confirmar nossa ida ao local e obtive resposta garantindo que tudo estaria a ser
preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.
“Teu culto finda aqui.
Despede-nos Senhor. Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – O coro
central entoou o seu último hino, o da despedida dominical.
Fez-se fila para saudar o pastor,
o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato corria
de lado a outro. Se tinha apossado da igreja depois de duas horas e meia de
“prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se aos veículos e
motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Seguimos-lhe exemplo e
procuramos por um ATM que encontramos sem muita demora. Fizemo-nos a caminho do
Centro turístico que distava cerca de treze quilómetros.
- Papá olha praia! – Gritaram as
crianças. A menina aproveitou lembrar-se que não tinha facto de banho.
- Não é praia, filhos. É lagoa
natural. Aí não se nada. É perigoso.
- E só vamos comer mais nada?-
Insistiu a menina.
- Sim, Mara, vamos comer e ir
descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.
Estacionada a viatura, passamos
pela cozinha que estava às moscas. Nem uma brasa acesa. Comecei a temer
desconfiar das palavras amorosas da gestora que me garantira, de pés quase
juntos, “encontrarás tudo pronto”.
-Será que já está mesmo pronto e
só a espera que chegássemos?- Indaguei aos meus botões, sempre seguido pela
digníssima e pelos putos que, por instantes, se tinham distraído com a
exuberância da lagoa e deixado de perguntar sobre a comida.
- Boa tarde, jovens, podem
mostrar-me o “gerente”?- Indaguei.
- Os três moços que jogavam à
dama, entreolharam-se e apontaram-me o caminho da sala onde estaria o
responsável.
- Boa tarde, jovem. É o gerente?
- Sim. Sou eu mesmo.
- A Drª fulana falou-lhe de
quatro pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu…
- Sim, boa tarde, mano. Ela
falou. Podem dirigir-se á mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também
há sombra e cadeiras.- Aconselhou.
Escolhemos o espaço aberto, com
uma visão mais ampla sobre a nascente natural barrada pela acção humana,
resultando numa majestosa lagoa com margem betonada num dos lados. Os putos
andavam de um lado ao outro como felino que demarca o seu espaço vital.
- Papá, quero andar de canoa.
- Papá, quero nadar nessa piscina
bem grande.
- Papá, quero isso… - Renato e
Mara não se cansavam de pedir o usufruto daquelas águas, entretanto barradas a
nado.
E não tardou a explicação de
Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à sua vontade de
mergulho.
- Mano, o papá tem razão. Aí está
escrito “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer
deixar tomar banho nessa lagoa.
Sem nado, as atenções voltaram à
comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar
esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma
pequena desculpa.
- Já está tudo pronto. Só falta o
feijão!
- Só falta o feijão? Preferia que
faltasse o kakusu que pode ser pescado por mim do que o feijão. Queres que
aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionei-o já com um vinco
visível no rosto.
- Não chefe. Já está a ferver mas
vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.-
Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.
- Traz já o que tens e o feijão
vem mais tarde. - Ordenou minha senhora algo aborrecida.
Quatro peixes enxutos, bocadinho de mandioca e batata-doce,
um molheco de tomate e cebola e nada mais. Os peixes tinham sido congelados,
depois de grelhados, e aquecidos, estando secos e sem temperatura interior. O
resto foram só reclamações e o feijão, ainda fervente, serviu mesmo o seu papel
de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.
Nota: Texto reeditado e publicado pelo Semanário Angolense, edição de 17.01.2015
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