A noite era de poucas estrelas e um vento bom, quente e apalpador, que vinha empurrado da Baia de Maputo. O meu anfitrião e cicerone Ouri Pota Chapata Pacamutondo entendeu levar-me a uma espécie de "sindicato dos artistas".
O bairro fica próximo do aeroporto e é já fora do caso urbano com casas de autoconstrução e algumas preocupações no saneamento. A casa indicada é a do saxofonista Américo Macutamo "Mile Davis" que tem uma taberna muito frequentada pelos artistas e divulgadores de arte.
As conversas, sem sumário rígido, variavam entre sociedade e artes. Afinal, tinham recebido um jornalista-escritor-cronista que visitava Maputo pela primeira vez, que estava sedento de recolher o máximo de informação possível sobre esta terra lusófona no Índico. Os moçambicanos, por sua vez, curiosos, procuravam igualmente indagar isso e aquilo. Mostravam, na verdade, ser bons question-makers sobre a Angola do pós-independência e pós-guerra civil que enterrámos em 2002.
Quando lhes falei sobre o encanto que era a Ponte Maputo-Katembe, a curiosidade deles virou-se, obviamente, ao que nós Angola tínhamos construído de relevante no pós-independência, fazendo-me desfilar um rio de anotações mentais de tudo quanto meus olhos registaram e a minha mente gravou.
_ Sou do Libolo, interior de Angola, de onde saí aos dez anos. Conto já 40 anos em Luanda e conheço todas as capitais das 18 províncias. Dou-vos dois exemplos: Luanda que encontrei em 1984 tinha o BPA e o Hotel Presidente como os mais altos prédios. No outro lado da Baia, que chamamos Ilha, é o Panorama quem brilhava e diziam ter 5 estrelas. Hoje quem espreita a cidade baixa encontra um conglomerado de arranha-céus. Muitas ruas que conectavam a parte urbana à suburbana em crescimento exponencial eram estreitas, tendo sido alargadas e melhoradas. Construíram-se nós rodoviários para facilitar a circulação automóvel, cujo parque teve uma ascensão de 8 para 80. Enfim, são muitas coisas que, quando nos recolhemos à retrospectiva nos levam a essa conclusão. Outro exemplo são as cidades construídas de raiz, por quase todo o país, para amenizar a carência de habitação. Foi um passo bom, mas temos mais. O meu bom exemplo tem sido a cidade de Ondjiva que foi toda despedaçada pela aviação sul-africana ao tempo do apartheid. Hoje o que se encontra é um "fénix renascido dos escombros". _ Contei-lhes, entre pausas, para atender os pontos-d 'ordem e amenizar a garganta com líquido dourado.
Os bons apreciadores da "espuma" já iam em boas doses (eu disse doses e não doze) quando, embalado, o Manhiça lançou a sua proposta irrecusável.
_ Epá, ó mano escritor angolano, assim mesmo estamos a selar a nossa amizade. A esta hora já não nos dá jeito para irmos à minha casa e voltares ao hotel, mas amanhã o "meu filho" Pota levar-te-á ao meu atelier para teres uma recordação.
Agradeci de imediato a amabilidade e sonhei envolto a obras pictóricas. Afinal, ao que o Pota e outros companheiros contaram, o Manhiça, moçambicano de 45 anos que decidiu "pintar o seu país", depois de largos anos na Alemanha, é um dos mais proeminentes "seguidores" de Malangatana.
Domingo, dia D, comparecemos à hora nove. "Encontrámo-lo" não estava. O filho explicou que o avisara para que não saísse sem telefone. "Mas o tio Pota já conhece a teimosia do seu amigo. Disse que não demoraria, só que se aparece alguém a dar-lhe conversa ele se esquece de outros compromissos".
Aguardamos até à hora do esvaziar da paciência. Diligente, porém, o filho de Manhiça (grandes conversador) tinha feito ligações a alguns amigos do pai para que quem o visse o alertasse da chegada do visitante angolano. Não tardou chegou animado com o seu cigarro fumegante, convidando-nos a adentrar o seu atelier.
"The dog and his owner" (o cão e o seu dono) era um conjunto de quatro peças que ficaram repartidas. Duas estão agora em Angola e outras duas permanecem em Moçambique, ainda sem novo dono.
=
Publicado no Jornal Cultura de 12.03.24
Sem comentários:
Enviar um comentário