Translate (tradução)

sexta-feira, junho 30, 2023

DAKAR AOS MEUS OLHOS


À minha saída de Luanda, os jornais faziam ler algo sobre a «instabilidade social» em Dakar, com manifestantes que tentavam impedir um terceiro mandato de Macky Sall, o presidente do Senegal desde 2012.
Como tudo, enquanto uns protestam, outros aplaudem a cavalgada, exibindo-se resultados como a construção de vias e outras obras que o governo de Macky vai fazendo e também mostrando. Observei que, nas vésperas e durante a Conferência Global da EITI, as ruas de Dakar conheciam um policiamento reforçado, ante a presença de figuras políticas, académicas e representantes da sociedade civil a nível mundial (quase que seria tentado a escrever dos "4 cantos do mundo”).
Os diplomatas residentes em Dakar, apesar de pregarem que "havia segurança", também alertavam os seus compatriotas a não se exporem. Alguns visitantes como eu também restringiram os seus movimentos ao trajecto Hotel-Centro de Conferências-Hotel. Mas, ao terceiro dia ganhei um novo parente, Khalifa Mbengue, que o meu padrinho Tazuary Nkeita me apresentou a uma distância reduzida pelo Whatsapp, desde Luanda.
- Recebe-o. É um irmão, como me tens a mim. - Recomendou ele em francês.
E o mwadyakime Khalifa lá me levou no seu velhinho Prado, (Luanda da Sorte) numa viagem pela orla marítima de Dakar que durou por hora e meia, até chegarmos aos seus aposentos num bairro com pouco menos de cinco anos.
Ao longo do percurso, esses olhos que vêm, ouvidos que ouvem e cérebro que traduz foram mimoseados com informações como a geração de energia eléctrica que é, “maioritariamente, por fontes térmicas, havendo pelo país pequenas centrais fotovoltaicas, uma a carbono e uma pequena hidro-eléctrica, no Norte”. Soube que, ao contrário de Luanda, onde se reclama o último ajuste para metade do dólar americano, no Senegal, “um litro de gasolina custa €1.5”. Isso mesmo, o equivalente a um euro e meio, ou seja, FCFA 990. O leitor pode fazer as suas contas, seja ao câmbio formal ou informal.
Pela orla de Dakar e em outras vias que nos conduzem ao Centro Internacional de Conferências de Dakar e ao Aeroporto Internacional Blaise Diagne vêem-se novas e limpas estradas com muitos nós rodoviários. O trânsito, porém, é muito congestionado ao longo de quase o dia todo, independentemente das horas de ponta.
Em Dakar, empresas públicas de transporte rodoviário são inexistentes, contrariamente ao que se vê em Luanda. «Quem tem dinheiro compra carro. Quem não pode, anda de taxis-colectivos que circulam apinhados, decorados e envelhecidos», pontualizou o meu cicerone.
A via expressa, da cidade ao aeroporto, apresenta-se jovial, com nós que lhe conferem afluentes e egressos. Está murada pelos dois lados, impedindo intrusões de pedestres, automóveis e veículos de tracção animal que, por esta cidade, é normal ver circularem (ainda) até na cidade.
Das ruas que percorri, poucas cheiram a mijo, mas há umas porcas (poucas) que reclamam por melhor conservação. As praias são limpas e registam intensa afluência de jovens que praticam desportos, sonhando com a fama de um nome célebre na Europa. Exibem equipamentos para jogos e actividades físico-recreativas. Pelo menos, os jovens sem trabalho não se doam ao ócio ou à gatunice de Luanda que, por cá (Dakar) a lei islâmica (religião muito praticada) manda retribuir com a amputação da mão que xaxata mulher alheia ou rouba.
Falando dos jovens, o meu amigo Khalifa perdeu-se na enorme lista de universidades e escolas técnicas superiores. “There are lots of them”, disse-me ele no nosso diálogo em inglês (Há bastantes). Porém, muitos jovens com formação universitária e técnica sólida não têm trabalho. Muitos glosam línguas estrangeiras. Uma das suas filhas é, inclusive, professora de Inglês. "É isso, a falta de trabalho, que faz do senegalês um povo emigrante", confessou desgostoso.
Posto em casa de Khalifa Mbengue, um duplex ou triplex, construído com suas poupanças e habitado por ele, pela filha professora, a filha que trabalha no aeroporto e o filho versado em contabilidade (em cada piso uma família), confesso, fiquei um pouco acanhado para não quebrar nenhuma norma protocolar.  
Quando chegámos, encontramos a mulher a rezar. Depois da reza, ela serviu gelo e água. Parece que os homens têm de ser servidos. Foram aparecendo o filho, as filhas, a nora e netos. Um deles é também Khalifa, 4 anos e muito falador, mas glosa mais Holof do que Francês.
Depois, fui convidado à mesa de jantar. Colocaram-me no assento que, em Angola seria o do chefe de família: o topo da mesa. Novamente, foi a esposa do Khalifa a servir, para mim e para o esposo, uma saborosíssima "galinha fyote" e arroz.  
Buscando que eu comesse à vontade, a esposa de Khalifa colocou ao meu dispor uma bacia com água e sabão, para lavar as mãos. Usei, todavia, talheres para o arroz e as mãos para deliciar a galinha. No fim, já repleto e com ossadas por toda a berma do prato, a simpática esposa do meu anfitrião pegou no grosso da galinha, a caixa toda (apenas tínhamos comido asas e chochinhas), e meteu-a no meu prato.
- Eat. We made it for you (coma, à vontade. Preparamos mesmo para si)!
Aquela voz melodiosa foi ordem aos meus ouvidos e preceitos. Caí com ela (a galinha).
Mas, enquanto eu procurava ser elegante para com a simpática senhora, eis que o Khalifa pede licença:
- Sorry, I'm going to pray (vou rezar).
Fez uns minutos. Eu naquela enorme mesa e sala, tendo à frente, de forma obliqua, a senhora de poucas palavras e falando mais Francês e Holof do que Inglês. Eu arrojo-me melhor no Inglês. Estava sempre a ser o segundo nas acções. Respondia e depois perguntava. Passado pouco tempo, o Khalifa voltou a juntar-se à mesa e partimos para os chás. Primeiro um especial.  
- It tastes good (tem bom sabor)! - Admirei.
Acto contínuo, o Khalifa pediu à esposa que me oferecesse uma caixinha de 200 gramas. Agradeci, desta vez em francês.
- Merci beaucoup, ma soeur (obrigado, minha irmã)! - Aliás, sempre que me apresentasse alguém eu dizia sempre, misturando Inglês e Francês, procurando que me entendessem:
- My name is Luciano, from Angola. My usual language is Portuguese. I'm trying to improve English and French. Je ne parle pas français mais je comprendre un peu (meu nome é Luciano, sou de Angola. A minha língua de trabalho é o português. Estou a tentar melhorar o inglês e o francês. Não falo, mas compreendo um pouco de Francês).
- Tu parles bien (tu falas bem). -  Diziam, para me encorajar a falar mais.
Voltando aos chás, recebi a oferta e foi servido outro chá, desta vez inglês, que também caiu bem.
Servi, como sempre pouco açúcar, mas a anfitriã estava atenta e pediu que colocasse mais. Não tive muitos argumentos para dizer que "muito açúcar faz mal à saúde" e fiquei-me pelo "That's enough, thanks!" (Já chega, obrigado).
A estada naquela casa familiar corria-me à feição. Porém, o tempo correia igualmente apressado. Atrevi-me a olhar para o relógio que marcava 21h30. Pensei que ele devia levar-me no hotel ou, no mínimo, chamar um táxi, pois teria de ir trabalhar no dia seguinte. Hesitei. Conversámos um pouco mais. Contei-lhe que em 1998, em Bamako, capital do Mali, fiquei uma semana a comer «poulet grillé avec pomme frillé» (churrasco), por não conhecer o nome dos pratos locais. O acolhedor Khalifa trocou algumas palavras em Holof com a esposa que lhe deu um caderno e uma esferográfica. Fez uma lista de pratos senegaleses e deu-ma.
- Ma sœur, je suis très heureux. Merci beaucoup pour tout l´accueil et la gentillesse dans votre maison. Thank you very much! (minha irmã, estou muito satisfeito. Muito obrigado por toda a recepção e amabilidade em vossa casa. Muito obrigado)!  
Com essas palavras, repetidas à saída de casa e do carro (já no hotel), despedi-me daquele maravilhoso casal e dois netos que não largavam o «grandfather» e a «grandmother».
Se alguém me perguntar, aqui em Dakar, a que família pertenço, não titubearei e dir-lhe-ei com firmeza: I belong to Khalifa's family (pertenço à família Khalifa), a bela e acolhedora que o meu padrinho Tazuary Nkeita, (angolano de gema) "me deu". É pena que não tenhamos feito fotos.
Escrito a 15 de Junho de 2023. Publicado pelo Jornal de Angola, edição de 18.06.2023

Sem comentários: