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sexta-feira, novembro 11, 2022

"PÉSSIMO, PESSIMÍSSIMO E MAIS MELHOR"



A vida se reinventa. Assim também as línguas e os respectivos elementos morfológicos, como é o caso dos adjectivos. Viajar sobre rodas pelo país adentro é um deleite inenarrável. Tudo o que se possa partilhar é mera tentativa ou forma de convite para aguçar o apetite pela descoberta de um mundo que é nosso e ao nosso dispor, sem fim.

O calendário apontava 11 de Novembro deste quadragésimo sétimo ano da nossa história como Nação. Acompanhado pela mulher, decidi presentear-me com o conhecimento das restantes três vilas kwanza-sulinas, à data, ainda em falta: Kilenda, Kasonge e Musende.
A Kilenda, pequeno município encravado entre Kisama, Kibala, Hebo, Amboim, e Port'Amboim, esteve, durante toda a sua história, mais para o Port'Amboim do que para a Gabela que lhe fica a escassos 25 quilómetros e, hoje, a 30 menos de trinta minutos (a contar com o novo asfalto serpenteante).
Dizem os kilendenses ouvidos que "entre duas picadas, a melhor era a que os levava ao mar, local mais seguro e próspero". Mas é também notório, no falar e agir, que kilendenses e amboimenses/gabelenses se parecem gêmeos ou feitos uns para os outros.
Testemunham que "o alcatrão deu vida às pessoas e à vila" que se reergue do sufoco e esquecimento.
"Depois de muito tempo nesse matuku¹, temos hoje, mais do que nunca, a certeza de que as estradas de alcatrão modificam a vida das pessoas e das localidades", contou o funcionário público Erneste Sabalo ansioso agora em ver a sua vila ligada por estrada asfaltada ao Kizowo (Kibala), passando por Ndala Kaxibo, cuja requalificação da picada (hoje bastante acidentada) está para sair do papel.
À entrada, há um outdoor a anunciar "Bem-vindo à vila paisagística de Kilenda". Verdade constatada, a paisagem é um encanto. Porém, o senão foi ver pouca venda. Se calhar, dado ao facto de a vila de Kilenda ter apenas uma entrada asfaltada e, por isso, poucos visitantes.
Mesmo assim, deixei a vila/município da Kilenda com incomensurável satisfação. Afinal, faltavam-me apenas mais dois municípios por desvendar e explorar. Aos 25 minutos até Gabela, acrescemos outros 30 até Kondé e ainda restou tempo para levar a mulher a conhecer a vila do Hebo, outra com apenas uma entrada asfaltada e que reclama, igualmente, o alcatroamento da via Gabela-Waku Kungu.
O Musende, que dista perto de 200 quilómetros (passando por Kibala) era o próximo desafio, demandando quase duas horas com breve paragem em Karyangu (onde se diz que tem projectada, há décadas uma mini-hidrica para apoiar a agroindústria e afins) e outros abrandamentos para melhor contemplar os campos agricultáveis e agricultados, a floresta extensa e aberta, os rios caudalosos e pachorrentos, os estuários alagados, as bandeiras dos partidos que se esqueceram do símbolo maior da nossa identidade (vermelha preta e amarela), as montanhas pedregosas e um infinito de detalhes naturais que "só se vivem in loco".
Na sede da comuna de Karyangu, por exemplo, deu para contemplar a beleza dos rápidos do Longa, junto à antiga ponte suportada por pilares de pedra. O tabuleiro original foi deitado àgua abaixo pela Unita, nos anos 80 do século XX, tendo sido substituído por um tabuleiro metálico. A asfaltagem, entre 2010-13, da antiga picada que é hoje a EN240 levou a construir um ponte maior e mais segura. O adolescente Kapakata diz, sem titubear, "gosto de passar naquela ponte kapequena, que brilha ao sol, mas essa é mais melhor".
Até Musende foi um mimo. A estrada é convidativa. À entrada da vila, que se acha perdida entre casas de kudibangela, anuncia-se numa rotunda as distâncias: Malanji=135 Km; Kwitu=295.
Olhei para a mulher que, hipnoticamente, também mirava os olhos para mim. Precisávamos de definir o destino.
- Vamos a Malanji, marido! - Disse quase ordenante.
- Vamos comer primeiro. - Procurei baixar a sua ansiedade e aparente desejo de encontrar o mais cedo possível água morna para afugentar o cansaço e uma cama limpa.
Adentramos as ruelas dos bairros à procura de letreiros que indicassem restaurante ou similar. Debalde!
De volta ao asfalto, que anunciava o seu fim, parei a "viata" e perguntei onde se podia comer. Não estava em questão onde dormir, pois sabíamos que seria difícil encontrar.
- Kota, devia parar na praça. Há lá barracas e umas manas que organizam um pouco bem a comida, mas já que está aqui, apanha a estrada que vai ao Kwitu, olha à sua esquerda e vai encontrar "uma restorante". - Sugeriu o jovem a quem me dirigi.
Não foi difícil encontrar, apesar da via sofrível que mostrava alguns restos de alcatrão, já sem data conhecida, entre o castanho e ravinado pavimento.
Ante a presença de alguns mizangala³ aproveitei pôr conversa com um deles.
- Jovem, por favor, boa tarde!
- Boa tarde. - Respondeu com cara de poucos amigos.
- Vem, por favor. Sabe dizer como está a estrada até Malanji?
- Eh, kota! Está péssima. Nós preferimos ir de mota pequena em vez de carro. Está mesmo mal. - Explicou com detalhes de conhecedor ocular.
A mulher reclamou da inexistência de condições no interior do tal "restorante" e desistimos do almoço. Faltava encontrar um sítio para dormir e ficámos a pensar nos 135 quilómetros até Malanji ou nos 295 até Kwitu. Eu decidi ir em direcção a São Lucas, caminho do Ndulu/Vye. Ela estava céptica.
Andámos na direcção que propus, perto de meio quilómetro, e senti que, se insistisse, podia chegar sem a coluna ou sem o carro. Parei e voltei a perguntar a mais um jovem que fazia moto-taxi.
- Mano estás bem?
- Sim chefe, somente vós?
- Nós ainda estamos. Diz-me. Conhece esta estrada do Kwitu? Como está em relação à de Malanji?
- Eh! Essa está pior. - Respondeu em tom desaprovador.
A mulher ainda tentou convencer-me em conceder-lhe a graça dos 135 quilómetros em rodovia tida como "péssima". Eu fiquei impávido. Literalmente sem forças para premir o acelerador e a pensar no adjectivo que se sobrepusesse ao péssimo que é superlativo absoluto sintético de mau.
- Mulher, sendo que uma estrada foi relatada como péssima e outra pessimíssima, temos de voltar à EN 240 (Musende-Kibala), almoçarmos na Kibala e dormitar no Waku. É soluça. Que achas?
A Irlanda murmurou um "nim" repleto de desalento, fome e cansaço que só seriam mitigados pela beleza do que se punha à vista.
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1- Cova, esconderijo, ninho.
2- Autoajuda, precárias.
3- Jovens.
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Texto publicado no Jornal de Angola edição de 20.11.22

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