Ndala Kaxibo é a terra da minha avó Juliana Kihuhu, mãe do meu finado pai António Fernando Ndambi. Os povos que fui encontrando pela picada lembraram-me a imagem e propensão profissional do meu progenitor: caçador e agricultor, servindo-se de instrumentos rudimentares.
Seguindo a rodovia, iam jovens, adultos e adolescentes à caça colectiva, empunhando como armas zagaias (arcos) e flechas. Magros cães, postos à prova de fome para que farejassem e corressem valentes atrás de pacas, coelhos, corsas e veados, seguiam-nos excitados para saciar a fome. Mas as presas teriam único destino: os homens caçadores e suas famílias. Os canídeos aguardariam umas bolinhas de funji e ossos que resistissem à gula dos dentes. Nessas caçadas, o que se consegue é repartido por todos, o que as torna em jornadas prazerosas e sempre produtivas.
Aos olhos do aventureiro, que se põe no interland desconhecido, a picada era acidentada, poeirenta e íngreme. As montanhas e colinas dificultavam visualizar o que se podia encontrar à frente, tirando ligeiros recortes de picada a contornar o intervalo entre gêmeas montanha, o sopé de uma delas ou a atravessar rio abaixo, momentos visuais raros e aprazíveis para quem se dirige ao desconhecido.
Uns vinte e cinco minutos se haviam gasto quando cruzámos com o primeiro veículo. A camioneta, a quem a poeira roubava a brancura e a pureza, ia carregada de gentes, imbambas e um cão.
- Bom dia, mano! - Cumprimentei o condutor.
- Bom dia, chefe!
- Vamos à Ndala Kaxibo. É a primeira vez. Pode dizer se já estamos a meio caminho ou se falta muito?
- Está já no meio. Mais à frente, a estrada está mais melhor. - Respondeu sorridente o motorista, ao que agradeci revigorado.
Limpei os óculos que me comunicavam uma sensação de que estariam empoeirados. Era apenas ilusão óptica. Quem reclamava limpeza era o para-brisas. Enquanto as mãos mostravam destreza em puxar o volante ora à direita, ora à esquerda, o pé direito era artista: momentos no travão e outros no acelerador. Preguiçoso ia o esquerdo, inactivo.
Não tardou surgir uma aldeia que se estendia pelos dois lados da rodovia. Fazia vento e este arrastava a poeira. A picada tinha sido alargada. Árvores do muxitu¹ que a ladeavam tinham sido afastadas. A terra humificada estava sendo seccionada pelo crescente passar de carros e motas, soltando do solo argilo-arenoso partículas de ínfima densidade que acompanham o vento no seu voo.
- Que aldeia é essa? - Indagou Beto Spina?
- Não sei. Vamos abrandar e perguntar. - Respondi-lhe.
Dois makwenze² que vestiam camisolas vermelhas com propaganda do MPLA "fabricavam" adobes. Se calhar um deles estava a preparar-se para "amigar" ou aumentar a casa, se fosse já "casado".
- Bom dia, Camaradas!
- Bom dia.
Foi uma resposta sem vida. Se calhar, misturada em desconfiança, como normalmente acontece em aldeias que viram pessoas desaparecer em tempos que a memória ainda conserva.
- Que aldeia é essa? Chega ainda aqui, se faz favor. - Pedi-lhes.
- Aqui é Sector de Hanza. - Respondeu o que se achava mais próximo.
- E, Mbwexi onde é?
- É depois daquela baixa que tem bambus.
- Para a sede ainda falta muito? - Voltei a atirar.
- Daqui para lá, o que vocês andaram é mais do que o que falta. É já perto e a estrada está mais melhor!
A resposta encheu-nos de ânimo. Fui ao porta-bagagens para extrair algum material de "evangelização" e reforçar a mensagem de que "na quarta-feira, 24, o Xis deve ser no VIII".
À medida em que a nossa conversa se tornava mais amena, outros aldeões se foram aproximando, inclusive senhoras com bacias à cabeça, saídas do rio.
Foi aí que me lembrei de conversas antigas entre a minha mãe e a sobrinha do meu pai, a prima Rosa, sobre a proximidade entre as aldeias de Hanza e Mbwexi.
- A mama, nga mwebo a Elisa Kasola. Wamwinjya?³ - Apresentei-me inquiridor.
A senhora, que parecia a mais velha do grupo, encetou uma viagem à memoria e, no fim da peregrinação, perguntou, fechando o campo.
- Kasola k'Aphuku?⁴
- Sim, mwene. Omon'ê Nvundi⁵. - Acresci.
Seguiram-se beijos e abraços. Eram descendentes de Alfredo Manda, tio do meu pai. Nisso tudo, o Beto, que conserva o domínio oral da língua, me foi assessorando, criando maior empatia.
Feitas as apresentações e fornecidas outras informações como o estado de saúde da única irmã sobreviva do meu pai, que procurei em casa sem a ter encontrado - vive adoentada em casa da filha, na vila - distribuímos o material do MPLA e pedi-lhes que votassem "no Partido em que estou eu, vossa família".
- Kekano kyambote. Papa mupaka Xis ou omunwe!⁶
- Embelá ximbu twamwinjya!⁷ - Disseram em coro, largando-nos mais satisfeitos ainda.
Partimos. Todos alegres. Trezentos metros depois, estava a aldeia de Mbwexi. Os imóveis estendidos paralelamente, à beira da estrada, feitos em tijolos, contam a história de uma antiga comunidade de prósperos fazendeiros, até à independência, em 1975.
Infelizmente, as guerras em que estivemos envolvidos fizeram com que as casas ficassem todas sem tectos, barrotes, portas e janelas. Alguns tijolos foram, inclusive, "enfeitar" campas que se acham próximas da aldeia.
Mbwexi estava vazia. Apenas um mestiço e mutilado com mais duas crianças se achavam à sombra de uma cubata. Os demais homens encontrámo-los em "pelotões" a caminho da caça. Parámos adiante para contemplar quão bela tinha sido aquela comunidade, no passado, com casas sumptuosas de colonos-fazendeiros que ali se haviam instalado para construir suas vidas à custa da exploração de suor alheio.
Já em picada larga e melhorada, chegar à sede de Ndala Kaxibo tornou-se imperativo. Os postes de energia eléctrica e os fontanários indicam a entrada ao vilarejo, cujas casas se distribuem paralelamente.
Cumprindo formalidade, apresentámo-nos à esquadra da polícia onde explicámos os intentos daquela viagem ousada.
No rossio da área administrativa, foi ao nosso encontro a jovem Carla. Bem-falante, denunciando ter vivido em uma cidade e estudado acima do que seria o normal para uma jovem naquela terra. Tinha um boné do EME.
- Bom dia, prezados senhores! - Cumprimentou-nos.
- Bom dia. A camarada é a administradora comunal adjunta? - Questionei-a.
- Não, camarada! Ainda sou muito nova para esse cargo. - Respondeu, num português fino, sem sotaque, nem abertura de vogais.
- Então é a segunda secretária do Partido. - Insisti, buscando associar uma função relevante ao seu estatuto social.
- Nem isso ainda. Sou CDA da OMA e também trabalho na Administração Comunal.
Soubemos, depois, que os pais são da vila de Kibala, mas ela nasceu e estudou em Luanda, tendo, há onze anos, decidido ir trabalhar em Ndala Kaxibo.
- Tomara que mais jovens tomassem semelhante decisão. Há coisas que só avançam com juventude esclarecida e com conhecimento de outras realidades. - Soltou o Beto Martins "Spina".
Carla Filipe apresentou a pequena vila. Erguida num desfiladeiro ladeado por montanhas que fazem adivinhar, mais a oeste, um imenso campo aberto e plano onde se recuperam fazendas deixadas ao abandono na aurora da independência.
- Essa é a escola antiga, do tempo colonial. Estas duas escolas maiores são novas. Aquele é o centro médico, também novo. Atrás de nós está o "palácio" do administrador. Como vê, de cem a cem metros, temos fontanários nos dois lados da estrada e a energia é, hoje, um facto insofismável...
Carla Filipe fez as honras da comuna. Os responsáveis políticos e o comandante da polícia estavam ausentes. A "odisseia" terminou com a entrega de material de propaganda do MPLA.
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¹ Mata fechada, selva.
² Jovens.
³ Ó mãe, sou sobrinho de Elisa Kasola. Conhece-a?
⁴ Kasola filha de Kaphuku?
⁵ Sim. É ela. A filha dela é Nvundi.
⁶ Vejam bem. É aqui que devem colocar o Xis ou o dedo (impressão digital).
⁷ Conhecemos o MPLA há muito tempo.
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20.08.2022