Corriam os anos sessenta do século XX. A chuva tinha caído bastante naquele ano distante. Os rios ainda escoavam em abundância. As florestas alegres de verde, embora o capim começasse a vergar as flores para baixo, dando lugar à festa das codornas entre o areal esparso dos caminhos afunilados. Anunciava-se o kasimbu, reortografado pelos lusos por cacimbo. Às mães estava confiada com a colheita do último milho e a preparação de novas terras para a época vindoura. Era tempo de olhar para o cipembe¹ que reentra na lavoura.
Para os pais, eram tempos difíceis. Estavam divididos entre a participação na luta armada pela independência, que deles ordenava entrega afóbica, e o recrutamento coercivo para as milícias africanas do regime colonial. Muitos corações estavam divididos, assim com os lares e as famílias que podiam ter um tropa tuga e um irmão kambuta². Porém, aos infantes a vida corria bem, divididos entre a escola, as férias, a pesca miúda, as caçadas, as armadilhas aos pássaros e as brincadeiras. Fora da escola, com professores rígidos no ensino do â-mbê-cê-ndê, as férias grandes era o melhor que as crianças viviam de suas vidas inocentes e imaculadas.
Nos parcos momentos de inactividade militar, os pais de Kambweyo dividiam-se entre a lavra, a pastorícia e a nembele³. Uns abraçavam-se às vihamba⁴ e outros à arte de kukendja⁵.
Os jovens, cuidadores da aldeia e os intelectuais saídos para o trabalho nas vilas e cidade, aproveitavam o sábado para exorcizar a dureza do trabalho o contragosto que era combater ao lado do combatido e pôr a politica em dia. Era dia da Voz de Angola⁶.
No momento em que a aldeia de Kambweyo se mostrava vazia, Borges, um DGS, barba aparada, óculos escuros em tarde cinzenta, fez-se à Aldeia, interceptando Arlindo e Agostinho, meninos a contar 3 e 6 anos que brincavam à corrida de jante.
- Então, estão bem?
- Sim, chefe.
- Aonde foi vosso pai.
- Papai wanda ko kacipembe7.
Borges, um DGS/PIDE com já muitos anos de Angola, conhecia os códigos, as expressões mais frequentes e os lugares.
Era um tempo em que a metrópole concorria para o lugar cimeiro de maior produtor vinícola da Europa. Os destilados locais que haviam sido remetidos à preciosidade da clandestinidade estavam "terminantemente proibidos" e caçados os seus fabricantes e utilizadores.
Nas aldeias do Vye, os jovens de então os haviam rebaptizado de kacipembe. Nome que soava cipembe8 aos ouvidos de caçadores de desgraça alheia.
Borges, confuso, sacou dois rebuçados da sua sacola e voltou a aproximar-se dos dois primos que empunhavam cada um deles uma jante de bicicleta com que ensaiavam corridas de uma ponta a outra de Kambweyo.
- Ó meninos, venham cá. Tenho rebuçados para vocês.
Enfiou a mão ao porta-luvas e de lá retirou a sacola na qual guardava as guloseimas. Escolheu duas unidades e emendou:
- Se quiserem amêndoas também é só dizerem. - Adoçou.
- Então, digam lá outra vez. Vocês são irmãos de mesmo pai e mesma mãe.
- Hum-hum. - Abanaram as cabeças em jeito de negação.
- Então aonde foram vossos papás e os amigos de vossos papás. - Indagou o agente Borges, conhecido na aldeia, por causa da sua Land Rover branca com carroça coberta de lona que já levara para castigos na cidade jovens e adultos daquela aldeia.
- Vatete vanda ko kacipembe9. - Voltaram a responder os petizes.
Confundindo kacipembe e cipembe, Borges meteu-se, sem caça, a caminho da cidade. Os meninos e os jovens de Kambweyo tinham ganho o dia, enquanto o agende da PIDE/DGS registava mais um fracasso nas suas tentativas de prender e molestar os utilizadores de destilados locais.
=
¹- Terreno agrícola em sistema de repouso (Umbundu).
²-Guerrilheiro do MPLA
³- Igreja (Umbundu).
⁴-Adereços mágicos, mixórdias (Umbundu).
⁵- Destilar (Umbundu)
⁶- Programa radiofônico do MPLA emitido a partir de Dolisie, República Popular do Congo.
⁷- Bebida destilada à base de milho, cana e outros produtos).
8- Terreno agrícola em sistema de repouso (Umbundu).
9- Os papás foram beber kaporroto/kacipembe.
Adaptado de uma estória contada por Agostinho Lopes.
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