A aldeia fica a uns 3 quilómetros de Muxaluandu, a capital do Nambuangongo. Kicanga Sala. É assim que está grafado na sinalética da IMUA[2] local. A rua da igreja, que tem perto de meio quilómetro, é a mesma em que ele vivo.
Cara do Car(v)alho. É o nome que ganhou nas trafulhas que a vida lhe impôs.
Nas nvundas[3] que se sucederam à chacina
da Fazenda Marta, em 1961, meteu-me na mata e na guerrilha e em busca da
revolução que o levou ao Congo de Mobutu, onde gastou a juventude.
- O estrangeiro, em terra do outro, para se impor, tem de ter algo
extraordinário. Inteligência, profissão, força ou elegância. Qualquer coisa. -
Conta.
Cara do Car(v)alho, altura média, era, à data, um poço de força. Um
refugiado que fazia trabalhos braçais e não admitia abusos.
- Eu ameaçava e batia mesmo. Mas batia com responsabilidade. Só quem
passasse dos limites. - Justifica.
Hoje, setenta e quatro "cacimbos" no lombo, já curvo, é uma
bengala de pau, com terminal em T, que o ajuda a erguer o corpo e caminhar.
Comparados os exemplares vivos da sua mocidade, CdC é ainda um muzangala[4].
Quem for a Kicanga Sala encontra-o bem aparentado. Cabelo negro, sem calvície,
corte bem alinhado, num estilo que o remete ao Congo de Tshisekedi[5].
Coluna vergada, andando a custo, dado peso da idade, sempre sorridente, um
falar preguiçoso, mas melódico. Gosta de apanhar sol nascente de
"cacimbo" à beira da rodovia poeirenta que vai a Muxya. Sentado numa
cadeira branca, de plástico, junto à mangueira na elevação, permitindo-lhe ver
quem entra e sai da aldeia, calças e casaco pretos, camisola branca e chinelos
também enegrecidos, é receptor de todas as saudações.
- Bom dia, tio Cara. Bom dia, avô Cara. Bom dia, compadre Cara. Bom dia,
papá Cara, Bom dia, irmão Cara ... - Cumprimentam-no e responde, mesmo a
contragosto. E explica:
- Hoje já não gosto desse nome. - Atirou, depois de responder amigavelmente
à saudação do seu amigo Kito, procedente de Luanda.
Cara do Car(v)alho explica como surgiu o nome que lhe ficou colado para
toda a existência.
- No Congo, era preciso atitude. Era assim que eu advertia os insurrectos.
Quando voltámos, nos anos oitenta, fui trabalhar em Kiminya, onde os que me
conheciam continuaram a me chamar como faziam no Congo. Continuei a advertir os
que mangavam o meu sotaque com a mesma expressão, "cala a boca, seu cara-de- car(v)alho!". Vim para a
aldeia natal e o nome me seguiu. -Conta o septuagenário.
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