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quinta-feira, julho 22, 2021

O KAMUTUMBULÊ[1] DE KICANGA SALA

A aldeia fica a uns 3 quilómetros de Muxaluandu, a capital do Nambuangongo. Kicanga Sala. É assim que está grafado na sinalética da IMUA[2] local. A rua da igreja, que tem perto de meio quilómetro, é a mesma em que ele vivo.

Cara do Car(v)alho. É o nome que ganhou nas trafulhas que a vida lhe impôs.

Nas nvundas[3] que se sucederam à chacina da Fazenda Marta, em 1961, meteu-me na mata e na guerrilha e em busca da revolução que o levou ao Congo de Mobutu, onde gastou a juventude.

- O estrangeiro, em terra do outro, para se impor, tem de ter algo extraordinário. Inteligência, profissão, força ou elegância. Qualquer coisa. - Conta.

Cara do Car(v)alho, altura média, era, à data, um poço de força. Um refugiado que fazia trabalhos braçais e não admitia abusos.

- Eu ameaçava e batia mesmo. Mas batia com responsabilidade. Só quem passasse dos limites. - Justifica.

Hoje, setenta e quatro "cacimbos" no lombo, já curvo, é uma bengala de pau, com terminal em T, que o ajuda a erguer o corpo e caminhar. Comparados os exemplares vivos da sua mocidade, CdC é ainda um muzangala[4]. Quem for a Kicanga Sala encontra-o bem aparentado. Cabelo negro, sem calvície, corte bem alinhado, num estilo que o remete ao Congo de Tshisekedi[5]. Coluna vergada, andando a custo, dado peso da idade, sempre sorridente, um falar preguiçoso, mas melódico. Gosta de apanhar sol nascente de "cacimbo" à beira da rodovia poeirenta que vai a Muxya. Sentado numa cadeira branca, de plástico, junto à mangueira na elevação, permitindo-lhe ver quem entra e sai da aldeia, calças e casaco pretos, camisola branca e chinelos também enegrecidos, é receptor de todas as saudações.

- Bom dia, tio Cara. Bom dia, avô Cara. Bom dia, compadre Cara. Bom dia, papá Cara, Bom dia, irmão Cara ... - Cumprimentam-no e responde, mesmo a contragosto. E explica:

- Hoje já não gosto desse nome. - Atirou, depois de responder amigavelmente à saudação do seu amigo Kito, procedente de Luanda.

Cara do Car(v)alho explica como surgiu o nome que lhe ficou colado para toda a existência.

- No Congo, era preciso atitude. Era assim que eu advertia os insurrectos. Quando voltámos, nos anos oitenta, fui trabalhar em Kiminya, onde os que me conheciam continuaram a me chamar como faziam no Congo. Continuei a advertir os que mangavam o meu sotaque com a mesma expressão, "cala a boca, seu cara-de- car(v)alho!". Vim para a aldeia natal e o nome me seguiu. -Conta o septuagenário.



[1] Indecifrável, impronunciável, incitável.

[2] Igreja Metodista Unida em Angola.

[3] Guerras, confusões.

[4] Jovem.

[5] Alusão a Félix Kisekedi, Presidente da RDC.

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