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quinta-feira, julho 29, 2021

O METODISMO, A FENÊ E MOVIMENTO DE NETO

A lucidez no discurso e o peso da idade são provas do valor histórico-experimental do que lhe vem da alma. Velho Afonso José, religioso metodista desde criança, diz que "nunca frequentou outra" senão a sua "apostante" americana, a Igreja Metodista Unida em Angola.

Natural de Nambuangongo, comuna de Canacassala, o ancião mergulha nas memórias do percurso que leva Angola à independência e atira sem titubear:

- O cão não dá osso no outro.

Quando solicitado a esmiuçar, o mbuta muntu[1] vai mais a fundo.


- Em 1961 jovens daqui, do Nâmbwa , fizeram uma emboscada para impedir os colonos de sair para Luanda ou São Salvador. Os brancos montaram uma cilada e atraíram as mulheres, idosos e crianças para uma igreja a que atearam fogo. Esse massacre de Uhumba é, para nós, o início da luta, mas ninguém escreveu nos livros. Os jovens, usando catanas, machados e armas de pólvora de fabrico rudimentar, atacaram, em resposta, os colonos que retaliou com artilharia, canhões e infantaria. Quando a população se refugiou nas matas, usaram até bombas de napalm para queimar a produção no meio da floresta.

Quanto ao primeiro movimento na região do Nâmbwa, Afonso José diz que "foi a 'UPA Lumumba'".

- É assim que os guerrilheiros se apresentavam nos ataques. Primeiro na Fazenda Margarida e mais tarde em todo o norte. O MPLA chegou depois no Kaji Mazumbu e no Ngalama, Piri, em 1966.

Aqui, prosseguiu, "eram mais os jovens que iam ao Congo ao encontro do irmão Holden para receber treinamento no Kinkuzu e em busca de material como armas e munições".

Todos os chefes de famílias que permaneciam nas aldeias ou refugiados nas matas, pretendendo abandonar Angola, contribuíam com valores que se dizia "para fazer registo em São Salvador".

- Era a contribuição para a luta. É por isso que reclamamos, quando nos dizem que não combatemos ou vemos que só uns são integrados nos antigos combatentes e outros não. - Justifica, lançando interrogações ao vento.

- Quenhê o mais velho que está em Nâmbwa e não combateu? Uns estavam nos quartéis e outros nos destacamentos. Todos lutaram contra o branco. Infelizmente, quando um irmão desviou dinheiro da UPA para o MPLA aí começou a separação e o desentendimento entre uns e outros e fomos até 1974, ora ataca o colono ora ataca o irmão igual. - Recorda melancólico.

Segundo o mais velho Afonso, nos kibetu[2] entre a Fenê e o Movimento de Neto, "o 25 de Abril foi a salvação do MPLA aqui no Norte".

Não pretendendo substituir-se à História pura, recolhida e decantada com o uso de técnicas e metodologia da investigação da ciência, fica para o confronto com outras opiniões a do mais velho Afonso José que aceitou conversar com este caçador de "pirilampos".



[1] Idoso, pessoa notável e/ou respeitável.

[2] Porrada, confrontação.

quinta-feira, julho 22, 2021

O KAMUTUMBULÊ[1] DE KICANGA SALA

A aldeia fica a uns 3 quilómetros de Muxaluandu, a capital do Nambuangongo. Kicanga Sala. É assim que está grafado na sinalética da IMUA[2] local. A rua da igreja, que tem perto de meio quilómetro, é a mesma em que ele vivo.

Cara do Car(v)alho. É o nome que ganhou nas trafulhas que a vida lhe impôs.

Nas nvundas[3] que se sucederam à chacina da Fazenda Marta, em 1961, meteu-me na mata e na guerrilha e em busca da revolução que o levou ao Congo de Mobutu, onde gastou a juventude.

- O estrangeiro, em terra do outro, para se impor, tem de ter algo extraordinário. Inteligência, profissão, força ou elegância. Qualquer coisa. - Conta.

Cara do Car(v)alho, altura média, era, à data, um poço de força. Um refugiado que fazia trabalhos braçais e não admitia abusos.

- Eu ameaçava e batia mesmo. Mas batia com responsabilidade. Só quem passasse dos limites. - Justifica.

Hoje, setenta e quatro "cacimbos" no lombo, já curvo, é uma bengala de pau, com terminal em T, que o ajuda a erguer o corpo e caminhar. Comparados os exemplares vivos da sua mocidade, CdC é ainda um muzangala[4]. Quem for a Kicanga Sala encontra-o bem aparentado. Cabelo negro, sem calvície, corte bem alinhado, num estilo que o remete ao Congo de Tshisekedi[5]. Coluna vergada, andando a custo, dado peso da idade, sempre sorridente, um falar preguiçoso, mas melódico. Gosta de apanhar sol nascente de "cacimbo" à beira da rodovia poeirenta que vai a Muxya. Sentado numa cadeira branca, de plástico, junto à mangueira na elevação, permitindo-lhe ver quem entra e sai da aldeia, calças e casaco pretos, camisola branca e chinelos também enegrecidos, é receptor de todas as saudações.

- Bom dia, tio Cara. Bom dia, avô Cara. Bom dia, compadre Cara. Bom dia, papá Cara, Bom dia, irmão Cara ... - Cumprimentam-no e responde, mesmo a contragosto. E explica:

- Hoje já não gosto desse nome. - Atirou, depois de responder amigavelmente à saudação do seu amigo Kito, procedente de Luanda.

Cara do Car(v)alho explica como surgiu o nome que lhe ficou colado para toda a existência.

- No Congo, era preciso atitude. Era assim que eu advertia os insurrectos. Quando voltámos, nos anos oitenta, fui trabalhar em Kiminya, onde os que me conheciam continuaram a me chamar como faziam no Congo. Continuei a advertir os que mangavam o meu sotaque com a mesma expressão, "cala a boca, seu cara-de- car(v)alho!". Vim para a aldeia natal e o nome me seguiu. -Conta o septuagenário.



[1] Indecifrável, impronunciável, incitável.

[2] Igreja Metodista Unida em Angola.

[3] Guerras, confusões.

[4] Jovem.

[5] Alusão a Félix Kisekedi, Presidente da RDC.

quinta-feira, julho 15, 2021

VATATE WANDA KO KACIPEMBE

Corriam os anos sessenta do século XX. A chuva tinha caído bastante naquele ano distante. Os rios ainda escoavam em abundância. As florestas alegres de verde, embora o capim começasse a vergar as flores para baixo, dando lugar à festa das codornas entre o areal esparso dos caminhos afunilados. Anunciava-se o kasimbu, reortografado pelos lusos por cacimbo. Às mães estava confiada com a colheita do último milho e a preparação de novas terras para a época vindoura. Era tempo de olhar para o cipembe¹ que reentra na lavoura.

Para os pais, eram tempos difíceis. Estavam divididos entre a participação na luta armada pela independência, que deles ordenava entrega afóbica, e o recrutamento coercivo para as milícias africanas do regime colonial. Muitos corações estavam divididos, assim com os lares e as famílias que podiam ter um tropa tuga e um irmão kambuta². Porém, aos infantes a vida corria bem, divididos entre a escola, as férias, a pesca miúda, as caçadas, as armadilhas aos pássaros e as brincadeiras. Fora da escola, com professores rígidos no ensino do â-mbê-cê-ndê, as férias grandes era o melhor que as crianças viviam de suas vidas inocentes e imaculadas.

Nos parcos momentos de inactividade militar, os pais de Kambweyo dividiam-se entre a lavra, a pastorícia e a nembele³. Uns abraçavam-se às vihamba⁴ e outros à arte de kukendja⁵.

Os jovens, cuidadores da aldeia e os intelectuais saídos para o trabalho nas vilas e cidade, aproveitavam o sábado para exorcizar a dureza do trabalho o contragosto que era combater ao lado do combatido e pôr a politica em dia. Era dia da Voz de Angola⁶.

No momento em que a aldeia de Kambweyo se mostrava vazia, Borges, um DGS, barba aparada, óculos escuros em tarde cinzenta, fez-se à Aldeia, interceptando Arlindo e Agostinho, meninos a contar 3 e 6 anos que brincavam à corrida de jante.

- Então, estão bem?

- Sim, chefe.

- Aonde foi vosso pai.

- Papai wanda ko kacipembe7.

Borges, um DGS/PIDE com já muitos anos de Angola, conhecia os códigos, as expressões mais frequentes e os lugares.

Era um tempo em que a metrópole concorria para o lugar cimeiro de maior produtor vinícola da Europa. Os destilados locais que haviam sido remetidos à preciosidade da clandestinidade estavam "terminantemente proibidos" e caçados os seus fabricantes e utilizadores.

Nas aldeias do Vye, os jovens de então os haviam rebaptizado de kacipembe. Nome que soava cipembe8 aos ouvidos de caçadores de desgraça alheia.

Borges, confuso, sacou dois rebuçados da sua sacola e voltou a aproximar-se dos dois primos que empunhavam cada um deles uma jante de bicicleta com que ensaiavam corridas de uma ponta a outra de Kambweyo.

- Ó meninos, venham cá. Tenho rebuçados para vocês.

Enfiou a mão ao porta-luvas e de lá retirou a sacola na qual guardava as guloseimas. Escolheu duas unidades e emendou:

- Se quiserem amêndoas também é só dizerem. - Adoçou.

Agostinho, o mais velho, dois anos à frente e Arlindo com cinco anos, aproximaram-se desconfiados. Filhos de irmãos assimilados, falavam português, mas estavam treinados: com branco, mesmo amigo dos papás, resposta é só em Umbundu.

- Então, digam lá outra vez. Vocês são irmãos de mesmo pai e mesma mãe.

- Hum-hum. - Abanaram as cabeças em jeito de negação.

- Então aonde foram vossos papás e os amigos de vossos papás. - Indagou o agente Borges, conhecido na aldeia, por causa da sua Land Rover branca com carroça coberta de lona que já levara para castigos na cidade jovens e adultos daquela aldeia.

- Vatete vanda ko kacipembe9. - Voltaram a responder os petizes.

Confundindo kacipembe e cipembe, Borges meteu-se, sem caça, a caminho da cidade. Os meninos e os jovens de Kambweyo tinham ganho o dia, enquanto o agende da PIDE/DGS registava mais um fracasso nas suas tentativas de prender e molestar os utilizadores de destilados locais.


=

¹- Terreno agrícola em sistema de repouso (Umbundu).

²-Guerrilheiro do MPLA

³- Igreja (Umbundu).

⁴-Adereços mágicos, mixórdias (Umbundu).

⁵- Destilar (Umbundu)

⁶- Programa radiofônico do MPLA emitido a partir de Dolisie, República Popular do Congo.

⁷- Bebida destilada à base de milho, cana e outros produtos).

8- Terreno agrícola em sistema de repouso (Umbundu).

9- Os papás foram beber kaporroto/kacipembe.

=
Adaptado de uma estória contada por Agostinho Lopes.

quinta-feira, julho 08, 2021

RAZÕES DO APLAUSO AO SIMPLIFICA 1.0

Para renovar a sua carta de condução, um cidadão (bem, identificado) foi a uma repartição da Direcção de Transito e Segurança Rodoviária. Conferidos os documentos, foi-lhe dada uma nota para liquidação, pois a instituição não tinha Terminal de Pagamento Automático.

- Senhor vai à administração municipal para proceder ao pagamento dos emolumentos.
Posto no banco indicado, não havia ATM.
- Senhor, vai ao outro banco.
Posto no banco indicado, ficou a saber, depois de enorme espera na fila, que o ATM tinha ficado sem papel.
Foi procurar outro banco para proceder ao pagamento e o dia fez-se tarde.
No dia seguinte, voltou às instalações policiais para apresentar o comprovativo do pagamento.
- Senhor, falta o atestado médico. Vai à administração tratar.
- Mas, ó chefe, por que não me disse já ontem e trataria tudo lá? Contrariado, foi em busca da nova demanda. Voltou à administração municipal que lhe fora indicado:
- O senhor deve ter o modelo. Vendem na Imprensa Nacional ou no SIAC (que ficava a 30 minutos de carro). - Informaram-no.
Com algumas palavras dóceis, lá apareceu um modelo ao preço de Kz 2mil que pagou sem comprovativo.
- O senhor deve ir àquela outra repartição para pagar a inspecção que custa Kz 3mil. - Indicaram-lhe.
Feito o pagamento, o médico/inspector não estava no seu posto.
- O senhor deve esperar até que ele chegue, caso ainda volte (eram já 14h30), ou voltar amanhã às 14h50 para fazer a inspecção e receber o atestado.
Ao terceiro dia, depois de mais 30 minutos de espera, lá chegou o homem:
- Fulano de tal!
- Presente!
- Vê bem?
- Sim. Vejo. Naquela placa (que se achava distante) lê-se iva.
- Ok. E os pés estão em dia? Nenhuma dor?
Correu no mesmo lugar, mostrando aptidão, antes de responder.
- Como vê, sô tor, estou em dia. - Disse, em meio a brincadeira, para descontrair.
Aguardem a chamada daqui a pouco.
Mais trinta minutos, recebeu o atestado de aptidão física, entretanto, tarde para ir à entidade policial.
Ao quarto dia, apresentou os documentos, tendo sido diligentemente atendido.
Por mais que o órgão policial queira ser eficiente, se outros serviços à montante não forem lestos, o resultado final será lento e levará alguns automobilistas/taxistas (aqueles que vemos só com papel de multa) a preferirem o recurso a Mateus 5:25.
PS: Publicado pelo Jornal de Angola de 25.07.2021

quinta-feira, julho 01, 2021

O WC E A COLECTA DE INFORMAÇÕES

Que o wc é um dos lugares em que mais tempo fico, isso a minha família há muito já sabe. Que o vaso sanitário é também o "assento" em que mais me demoro, fora do ambiente profissional, isso há muito eu conclui. O wc, longe do que alguns desavisados pensam, "mero lugar para higienização do corpo e descarga do aparelho digestivo", é também um espaço íntimo, onde o utente fala consigo mesmo, servindo-se de elevada privacidade que o leva a viajar aos mais complexos dossiers. Tanto é que, no seu livro de memórias (pág. 88), o Gen. Higino Carneiro conta ter visitado um brigadeiro da equipa militar opositora, tendo "encontrado no wc telegramas militares" que se constituíam em confidências militares naquela altura e circunstâncias¹.

Gosto de entrar em wc higienizado, arrumado e com outras alternativas, para que ninguém me imponha pressão.

Antes da inovação tecnológica, quem fosse  ao wc, latrina ou sentina, fazia-se acompanhar de um jornal que lhe fazia companhia na hora de "expulsar os demônios" e servir-se do mesmo para limpar as "lágrimas do demônio".
Vezes havia em que, na ausência de um jornal de qualquer data, o papel intermédio do saco de cimento ou um caderno antigo faziam o lugar do sapupo². Hoje é telemóvel. Tem notícias frescas e ao gosto, vídeos, piadas, fotos, dicionário, gramática e até os álbuns familiares. Essa coisa pequena, o telemóvel, é hoje o "amigo inseparável" do homem moderno.

Mas, sobre o wc não é tudo. Descobri que é um bom lugar para obter informações sem ter de se chatear ou obrigar a ninguém. É como o indivíduo que fica escondido numa sacristia ou confessionário. Lá chegam os desabafos e as confissões desarmadas e desalmadas.

Um desconforto intestinal levou-me a ficar dez minutos em um wc que tinha outras cabines. Sem fazer barulho, para que ninguém desse conta da ocupação prolongada da cabine, se constrangesse verbalmente, ainda um mal-humorado a gritar "sai daí, cagão", fiquei quietinho a dialogar com o meu telefone.

Não é que muitas confissões e desabafos me chegaram ao ouvido?
Calculo que o wc seja também um lugar predileto de gente ligada à obtenção de  informação classificada, sem fazer recursos a métodos ortodoxos!
=
¹ Memórias - Soldado da Pátria, 2021, pg. 88: "... Lembro-me de um dia ter ido à casa onde residia o brigadeiro António Urbano ´Tchassanha´, membro da UNITA na Comissão Política, para tratarmos assuntos prementes. Estávamos a falar e pedi para ir à casa de banho. Lá observei, com surpresa, grande quantidade de telegramas que eles trocavam com a direcção, no concernente às forças militares e ao processo de desmobilização. Os telegramas relatavam o que estavam a esconder em armamento e forças militares. Abordei-o, surpreso pelo que vi e li. Ficou sem jeito. Não soube justificar. Pois, uma vez mais aí estavam provas irrefutáveis da violação dos Acordos de Paz no âmbito militar"...
²-  Sabugo, também conhecido como "caroço de milho".