Os
homens da fiscalização (farda verde, banga nos land cruizer da caixa aberta,
rebocadores na traseira da patrulha) meteram-se a levar tudo o que fosse carro
mal estacionado ou há muito parado na via pública.
Depois
dos fiscais, ou simultaneamente, chegava uma outra patrulha de medicina
alternativa com ambulância, cordas e anestesiantes. Chamavam a este grupo de
"equipa Kitoko".
Naquela
tarde de sol preguiçoso, como carvão molhado que patina no fogareiro para assar
a lambula do almoço, já cinco viaturas, daquelas que soçobravam pela rua,
acolhendo dementes e kangonheiros em horas esquivas, haviam sido removidas
pelos homens da administração. No mesmo local, dois dementes recolhidos pela
"brigada kitoko" contavam já piadas na ambulância e a caminho do
manicómio.
Quando
os fiscais se preparavam para remover a sexta viatura, deparam-se com um homem
maltrapilho, chaves na mão, cabelo há décadas reclamando por pente, corrente ao
pescoço e sem rumo aparente.
-
É mais um deles. - Gritaram os três fiscais que inspecionavam visualmente a
área a partir do cimo da carrinha de cor branca e riscas amarelas em todas as
suas faixas laterais.
-
Mais um. Agarrem-no. Matadidi, prepara o calmante. - Ordenou o chefe dos
fiscais aos para-médicos tradicionalistas.
De
seguida, fiscais e “kitokistas” trocaram olhares sem falas. Apenas gestos a
combinar o desenrolar da operação de captura.
Ouviu-se
um "agarra, agarra maluco" vindo de todos os lados: fiscais na
carrinha de patrulha, para-médicos na ambulância e os monandenges nas
cercanias. Agarra maluco para cá, agarra maluco pra lá e o próprio visado, às
tantas, sem saber ainda o que se passava, também ajudou a gritar “agarra
maluco” até que foi atingido pela corda em forma de laço.
-
Porra! Não sou maluco, pa! Me larguem, seus gatunos de merda! - Tentou ainda
defender-se, mas com a perna já no laço.
Suspeitando
que se tratasse de assaltantes, o suposto demente agarrou com mais força a mala
de chaves, a peça de viatura que havia extraído da sucata e a sua chave 14/15
de boca com que visitara a cabeça do para-médico kitoquista que teve de ser suturado
ali mesmo e vacinado contra tétano.
-
Me larguem, porra! Sou mecânico. - Gritou o suposto demente perante o espanto
da assistência.
-
Um mecânico com uma corrente ao pescoço? E por que vives em sucatas
abandonadas, coabitando com homens distantes da razão? - Questionou um dos
homens da “Brigada Kitoko”.
-
Estava apenas a aproveitar umas peças dessas sucatas para o meu "acaba de
me matar" que também corre o risco de ser removido da via pública por
inoperância prolongada. - Esclareceu.
-
E a corrente ao pescoço?- Voltou a perguntar o chefe da brigada de recolha de
dementes, já mais calmo.
-
Essa corrente também a recuperei na sucata e vai ajudar a acorrentar o gerador
ao poste de energia que está mesmo no quintal. – Explicou Manuel Kaferro (como
se ficou a saber mais tarde), ainda assutado.
Dada
como certa a explanação do homem que até era técnico superior em mecatrónica,
porém submetido ao desemprego forçado pela crise dos "dodós" que
levaram o antigo patrão, um importador de carros usados, a declarar falência,
desfizeram-se os mal-entendidos.
Os
homens da farda verde prosseguiram o seu trabalho, removendo tudo o que lhes
desse dinheiro na esquina. Rebocando mais veículos estacionados em lugares
permitidos do que as sucatas, há muito sem dono, que nunca chegariam a ser
reclamadas. Manuel Kaferro, o mecatrônico, teve de ir à casa refazer-se do
susto e testar a peça que tinha conseguido antes da chegada da “Brigada Kitokista”.
Esses últimos acabariam por receber uma chamada para irem socorrer um demente
real em dificuldades numa lixeira automóvel da Quinta Avenida.
Por
cima do meu muro, fiquei a ver a lagoa artificial criada pelos homens das obras
a encher-se de água que vinha de todas as partes altas dos subúrbios de Viana;
os alevinos (filhotes de peixes), na lagoa, em festa por causa da chegada de
água mais oxigenada; os putos “pescadores” com as redes e as garrafitas em que
guardam os peixinhos que vendem a troco de rebuçados; as mamãs do bairro a
muxoxarem por causa da água que lhes invade os quintais e os aposentos, e os
papás preguiçosos a aplaudirem “viva a chuva", pois seriam dois dias de folga ao serviço!
Obs: in Semanário Angolense, 21.03.2015.
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