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segunda-feira, agosto 29, 2022

A FRONTEIRA E A FARTURA

O Luvili e a fenda por onde se encaixa a estrada que nos leva ao Alto Hama são a fronteira entre o Kwanza-Sul e Huambo.
À sombra do gigante monolítico está uma aldeia que fez, na rodovia EN120, um mercado que expõe produtos campestres.
Lay é uma das meninas que ajuda os pais, comercializando o que a lavra dá, e aprendendo com as manas mais velhas como se solta o pregão e se contam as moedas da comercialização.
- É importante tocar a alma do potencial comprador e saber dar troco.
Foi mais ou menos com essas palavras que ela me respondeu, quando a abordei sobre o que estava a fazer.
O mercado é dominado por senhoras que se dizem (algumas) solteiras e que "precisam de alimentar os filhos".
Algumas relegaram as enxadas para hobby, dedicando-se, a tempo inteiro, à compra de produtos aos camponeses por dedicação exclusiva e sua revenda aos viajantes.
Lay estuda a quinta classe e já sabe que "o Luvili é fronteira entre Kasonge e Londwimbali" e, na continuidade das palavras que trocámos, foi ensinando outras meninas e rapazes, seus coetâneos, ao mesmo tempo que insistia comigo:
- Ó pai, por favor, me compre só mangas!
Sem mais poder aquisitivo, pequei a moeda que tinha no bolso e dei para ela.
- Não é para me dares mangas. É mesmo para ti, Lay.
Na fronteira entre o Kwanza-Sul e Huambo e em diversas outras áreas do interior do nosso país estão a diferença do que faz quem todos os dias diz alto "NÃO À FOME!"



Texto e foto de 16.12.2021

quarta-feira, agosto 24, 2022

O MOVIMENTO E OS QUE PROCURAM DINHEIRO

Hoj'acordei ao relógio da mulher que trabalha no órgão administrador de eleições. Tinha o dever de levar a minha mãe, que pernoitou em nossa casa, à sua Assembleia de Voto, ao Rangel, e, depois, exercer o meu direito cívico de reeleger o Presidente de Angola para os próximos 5 anos.

Maria Canhanga não é de falar política. Para que eu soubesse onde colocaria o Xis (já que é idosa e invisual) fiquei atento às conversas com a Lúcia Joelle Canhanga, a neta, que diz ser "de Angola, do VIII e JLo". A minha mãe deixou escapar que "sempre votei no Movimento do Agostinho Neto".
Hoje, quando voltávamos do Rangel, escola Sagrada Esperança, onde a ajudei a pôr o Xis no Movimento, ouvíamos a RNA e, a certa altura, o locutor falou em oito candidatos a Presidente da República.
Muito séria, a minha mãe perguntou-me no seu Kimbundu:
- Já são oito que querem a coroa real?
Respondi que sim.
- Eu, desde criança, só conheço três: o MPLA do Agostinho Neto, a Unita e a Fê-nê-lá do Mobuto. Os outros cinco lutaram aonde?
_ Não lutaram. São novos. Dois saíram da unita. - Respçondi.
- Eh! O dinheiro vai matar as pessoas. Você que não "xotou" o kaputu e também quer que te escolham como rei? Isso não é só buscar dinheiro?! - Exteriorizou, sempre no seu Kimbundu.
Quando eu ainda processava o alcance daquelas palavras, o meu filho Arlindo, que acompanhou a avó ao voto, pediu a tradução, o que fiz milimetricamente.
Depois, foi a minha vez de ir votar, na Casa da Juventude, em Viana.
Vamos fazer, de seguida, a "festa das eleições de 2022". A ordem foi: votou, bazou, festejou!

segunda-feira, agosto 22, 2022

O OCTOGENÁRIO DE AREEIRO

(Quando velhice não é cegueira)

Depois de mês e meio na estranja, a comer saladas, caracóis e sóis que nem um boi, Mangodinho estava já naquela fase de ignorar os mendigos que enfeitam Lissabone e a coleccionar moedas para a janta.

Hospedado em Areeiros, paredes meias com Roma e Alameda, decidiu, ao quadragésimo sexto dia, caminhar uma hora, até Entrecampos, e jantar na tasca "A camponesa", onde contava encontrar a "Oriana de Entrecampos", que já desfilou nessa coluna, e comer a preço quase de banana amassada.
Fazia sol, intenso ainda, apesar de relógio apressado para nove da noite, hora em que fecham, regra geral, os serviços.
Mangodinho foi a passo intermédio. Sem pressa, mas também sem perda de tempo em montras e outros "fura-bolso".
Olho no telefone, olho no caminho, Mangodinho fez quarenta e cinco minutos até chegar à A camponesa. Estava "caloriado", cansado, faminto e sedento. Ansioso para mandar goela abaixo uma imperial gelada e um cozido à tuguesa, prato cheio-e-barato, pensava no estalar dental das cartilagens das orelhas do ngulu assado e no borbulhar, entre carnudas bochechas, daquele álcool dourado, repleto de lúpulo, cevada e água do Tejo.
- Vai ser uma delícia! - Soliloquiou, vindo-lhe rios à boca como cão faminto à beira de ossadas na grelha.
Encontrou, porém, A camponesa encerrada.
Era preciso voltar à origem e encontrar em atendimento a churrasqueira "Fome de Leão", local que frequentava desde que abandonou Sete Rios e se instalou na Avenida João XXI, Praça Sá Carneiro.
Foi no regresso à procedência, num passo mais comprometido, que viu dois idosos junto à estação de Areeiro. Galhofavam, tomando uma pomada e fazendo a boca com caracóis. Era por cima do passeio, junto à entrada de uma tasca. Os velhotes daqui são fiéis à tasca de sempre, assim como Mangodinho foi ao encontro de A camponesa de Entrecampos.
Um deles, o que parecia mais idoso, estava em viagens permanentes, à passagem de musas ousadas ou bem prendadas corporalmente. A mente ele não avaliava. Era mesmo o corpo que colocava o seu pescoço num vai-e-vem. O octogenário levava o pescoço e a cabeça ao sol poente, acompanhando uma transeunte e fazia-os voltar ao sol nascente quando passasse, em sentido oposto, outra mulher digna de espanto e contemplação.
"O belo deve ser contemplado", dizia um filósofo helénico.
Junto ao prato e copo, fazia ligeiríssimas paragens. Afinal, "a mão é quem mais conhece a boca". Tinha a consciência plena de que jamais, nunca, falharia o garfo ou o copo à boca!
Quem disse que velhice é cegueira?!

Texto publicado pelo Jornal Cultura de 25 Nov. 2022

segunda-feira, agosto 15, 2022

MANGODINHO EM 7RIOS

Na banda, rio é rio mesmo de verdade, com caudal, margens, lodo preto, algas verdes, peixes com escama e sem escama, água que corre apressada, lenta ou estagnada e meninos que fogem de casa para fimbas desgovernadas. Rio é também para se ir banhar!
Já antes da viagem, Mangodinho, como é kigila dele, desde há muito tempo, foi ao seu Kuteka banhar no rio Longa.
Posto na estranja, passou pela capital da Tuga e foi alojado numa banda que dizem "tem sete rios".
- Porra! Sete rios duma só vez? Deve ser kuyoso! - Exclamou.
Posto no sítio, escalou o cimo do hotel para contemplar a paisagem e matar a cauriosidade, empenhando os olhos na busca para o deleite dos rios, um a um, até sete.
A paisagem que lhe era oferecida aos olhos pela larga e envidraçada janela mostrava apenas colinas altas e arborizadas. Uma rua impuna-se, como tanga no meio de glúteos, entre prédios altos e adornados.
- Deve ser pelo lado oposto, o da estação de comboios. - Pensou.
Mangodinho é viciado em fazer obra. Por isso, na vida dele o lema é "está a pensar, está a agir". Meteu-se a caminho do ponto inverso que o obrigou a deixar o hotel e adentrar a estação de comboios.
Entre a contemplação e a meditação, entreteve-se com o chegar e sair de comboios, uns encarnados e outros amarelos. Só faltou o preto para compor as cores da sua predilecta bandeira gloriosa. Os machimbombos da carris, 12 destinos, e a rede de carros expressos também estavam aí a mãos de semear. Um cruzar de caminhos vários e longos, enchendo e esvaziando o recinto como o Kwanza em Abril nascente ou Agosto minguante.
Começou pelo ponto mais alto da estação e foi descendo os três ou quatro andares que separam comboios autocarros e metropolitano em mesma paragem.
- Porra, esses gajos estão noutro patamar. Mas não vão me dizer que os sete rios estão escondidos no underground. Ou será?!

Toalha no ombro e sabão em uma das mãos, abeirou-se a um muzangala africano que lhe parecia ser jovem da banda.
- Epá, comuê, fixe!
- Pois é, diga lá. Posso ajudar?
- Estou a procura dos Sete rios.
- Sete rios é mesmo aqui.
- Sim, mas não vejo rio nenhum. Sabes onde é que se banha?
Julgando-o estar a "estagiar", o jovem portuga evaporou do lugar, correndo em direcção à loja de conveniência.
- Porra, esses gajos ainda são um pouco matumbos. Comuê que escrevem sete rios, se nem um desfiladeiro de água pluvial há? Ao menos, escrevessem Sete Trilhos!- Exclamou Mangodinho, voltando ao hotel, cansado e aborrecido. Afinal, Sete Rios é só nome. Não há banhos em praia fluvial nem pesca, nem travessias à canoa como se faz no rio Longa, Kwanza e outros d'Angola extensa!



segunda-feira, agosto 08, 2022

MAN-BArTA DE REGRESSO À NGIMBI

"Muitos não voRtam é só vRegonha. Não têm nada fora"! O trecho da música de Dog Murras é, cada vez mais, verdade, quando se olha para a condição de vida de alguns emigrantes angolanos "nas Europas" e América do Sul.

Numa conversa com angolanos na capital lusa, foram marcantes e maioritariamente unânimes em discursos como o que se segue:
- Aqui, poupança que dê para construir casa, esquece. Todos os dias é trabalho duro. Salário é para comer e puder andar todos os dias nos transportes públicos. Até o deleite é controlo. Tomar café é controlar. Se gastas à toa, passas fome. Sair para férias é planificar: $50 vezes 12 meses dá $600. A pessoa ou a família já se diverte fora de casa. Se tivers muitos filhos e ganhas pouco, é roçar!
Baltazar, leva 24 anos de Portugal. Reconhece que não deixa a Tuga para ir reiniciar, mas "se tivesse saúde, educação e transportes como aqui não pestanejaria". Tal como cantou Dog Murras, Baltazar diz que "seria voRtar já-já!"
Na conversa com Baltazar, que mostrou maior disponibilidade à fala, ficamos a ensaiar como seria o seu primeiro contacto com a Ngimbi.
- Ó menino, vem cá.
- Mô nomi nê minino. Eu me chamam miúdo ou rapaz!
- Então vem cá, rapaz. Sabes onde fica a praça de taxi?
- Xê tio! Bebeste quê esta hora? Já viste táxi que vendem na praça?!
- Não, menino! Quero apenhar taxi, por favor, podes mostrar?
- Tio, aqui nuê taxi. É kandongeru! É ali. Xtás a marar aquela paragem? Yá, é memo ali.
- E aqueles todos vão um a um ou vão todos num só carro?
- Kota, simpurra memu c'os pipô, mas cuidado. Podem te tramancar co'esse tô Prutuguês tipo engoliste branco.
- Diz lá menino. Quê isso de tramancar?
- É ti dismontá todas coisa, tipo tô telefone e tua mochila. Vás vê lorota, kota.
- Ó menino, fala sério! E onde se apanha a camioneta?
- Ah! Agora quês í mbora no monagambê? Esse kota memu tipo se nganzou. É ali. Xtás a marar aquela bicha?
- Epá. Isso está...
- Xtá culi, kota! Num xtás a vê já temu wawa cumprido e bué de amarelinho? Na ngimbi xtá bater.
- Lá também há lúmpens desalmados a bater em pessoas desamparadas?
- Nê surra, papoite. Xtou te falá, Luanda xtá mais melhor bom qui ondi xtás a vi. O kota xtá então vir daondiê que num xtá entendé nada ki tô li falá?!
- Venho de Cacém, filho.
- Yá, kota. Vai só bem. Aqui é a banda e essa paragem é minha. Eu é que loto aqui. Mô nome é ndenge Kafriki.

segunda-feira, agosto 01, 2022

A LP E AS GERAÇÕES X & Y

Geração X é uma expressão que se refere, segundo alguns teóricos da sociologia do trabalho, aos indivíduos nascidos entre meados da década de 1960 e início da década de 1980, ou seja, durante os anos que se seguiram ao baby boom do pós IIGM, verificado entre 1946 e 1964. Depois deles, surge a geração Y que abrange os nascidos entre os anos 80 e 90 (sec. XX), quando o mundo se tornou essencialmente tecnológico. São tidos como tendo crescido com amplo acesso à informação e ao conhecimento e foram moldados por essa realidade, tornando-se pessoas mais curiosas, inquietas e movidas por desafios. Será que em países como Angola dominam tudo?

Há muito tomei conhecimento que faço parte de uma geração que não domina língua nenhuma. Nasci ao tempo em que era Presidente da República o General Spínola (durante o governo de transição). Em Angola, os tempos eram de expurgar tudo o que havia sido "imposto" aos nativos, até as coisas de validade eterna como a Língua que se tornou primeira para muitos de gerações posteriores. Levou-se ao "caixote de lixo" a língua do "escravagista" mas não se deu ao "homem novo" instrumentos científicos para a aprendizagem de línguas que hibernaram, ficando na oralidade. Com professores que diziam ensinar numa língua que desprezavam e não dominavam, eis-nos, aqui chegados, com canudos e petulantes, sem língua nenhuma para nos orgulharmos, comunicando eficazmente nas suas diversas formas de manifestação (gráfica e oral).
Que língua domina as gerações X e Y?
Os mais velhos têm a vantagem de terem aprendido, de modo seguro e eficiente, uma língua que nunca desaprenderam.
A nós, vieram dos maquis "professores" que não dominavam a Língua Portuguesa, mutilando-nos. Com eles, veio um suposto "nacionalismo linguístico" que nos levou a não aprender o que devíamos, como também não aprendemos língua africana nenhuma.
E andamos feitos morcegos: nem Português sabemos, nem línguas africanas (bantu ou pré-bantu) dominamos (sobretudo na sua forma de representação gráfica).
Quando alguns despertavam do sono e do ópio em que estavam mergulhados, veio a implementação, por parte de Portugal e Brasil, do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990, do qual Angola não aderiu (ainda), deixando-nos cada vez mais perdidos, muito confusos e confundidos.
- Que caminho/versão seguir?
Estávamos ainda a despertar de um sono e etilismo profundos ...
Não aprendemos o que devíamos ter aprendido e surge uma maneira diferente de grafar e, sobretudo, de acentuar. É quilómetro ou quilômetro? Estómago ou estômago. Feiúra ou feiura? Quota ou cota? Esclavagista ou escravagista? Certo que disso há consequências!
- Que nos resta?
Humildade, atenção à forma de grafia e uso correcto, leitura permanente dos que conhecem e usam correctamente a Língua Portuguesa e baixar as orelhas às críticas de quem nos aponte os erros.