A confiar no que meus olhos enxergaram e levaram à tradução e compreensão cerebral, durante o trajecto Longa-Kanjala, não haverá este ano njala (fome) no Litoral kwanza-sulino (desde que a preguiça deixe de existir) e, havendo água celestial, tudo indica que assim será nos próximos tempos.
Prestei atento ao que ladeia a estrada, do Longa (entrada do Kwanza-Sul) ao Evale Guerra, divisão com Benguela (próximo de Kanjala).
Imensos campos de milheirais plantados em muitos (para não dizer quase todos) corredouros de águas pluviais, vales dos rios que se dirigem ao Atlântico, depressões (onde é mais a enxada e a catana que desbravam) e zonas planas onde foi chamada a força e elasticidade do tractor agrícola. É sinal de que, aos poucos, vamos despertando para aproveitar o solo, atender o estômago e, com o que resta, saciar as demais necessidades descritas por Maslow na sua conhecida pirâmide.
Vi milheiros todos "embandeirados", com espigas quase maduras e à espera apenas da colheita. Devem ter sido lançado à terra entre Fevereiro e Março, sendo da segunda sementeira da época de sequeiro. Mas, outros milheirais eram pequenos ainda, aparentando ter um ou dois meses. Infelizmente, correm o risco de secar pelo facto de a chuva ter cedido lugar à época de estiagem. Tal fez-me parar e trocar um dedo de conversa com o mais velho Kikundu.
- Papá, bom dia. Estou de passagem. Vou a Benguela. Parei para aprender consigo. Estou a ver milho grande e milho ainda pequeno, numa altura em que a chuva já terminou. Não vai secar sem dar massarocas? - Indaguei.
- É verdade, meu filho. Ainda você mesmo é daondiê? - Questionou-me, eventualmente, para ganhar fôlego e arrumar a resposta.
- Sou do Libolo, pai, e vou trabalhar em Benguela.
- Pois é, filho. Quando nós falámos, os vossos iguais não nos ouvem. O milho, se você quer semear duas vezes, tens que controlar a primeira chuva e ter dois kibembe (terrenos em pousio e prontos a receber gramíneas). Põe o primeiro em Setembro ou o mais tardar em Outubro. Como o milho de boa semente faz 4 meses, quando estiver a amadurecer, semeia o outro no kibembe de reserva. Assim, a pessoa colhe duas vezes por ano no terreno alto. Se é na horta e com rega é só a tua força que manda.
Abanei a cabeça em gesto de agradecimento e tomei as imperdíveis notas mentais.
O mais velho Kikundu não sabe escrever, nunca esteve em escola de agronomia, mas tem conhecimentos sólidos. Disse ter trabalhado com vários "extensionistas" e regentes agrários.
- Uns eram da Cadá, outros do Chianga e ainda os que se formaram no Chivinguiro. Hoje em dia, não é só pôr adubo e amónio. É também controlar a chuva e rodar as sementes. - Continuou explicando.
Já me ia a despedir, quando me pediu água e eventuais garrafas vazias (pet) para pôr mahini que, por essas bandas, chamam de "massana" ou "mele a ngombe".
A pecuária de bovinos, caprinos e ovinos é antiga entre os kwanza-sulinos. As estiagens cíclicas e prolongadas mais a sul do nosso país estão a provocar a migração de bovinos e pastores, aumentando as manadas, os rebanhos e a quantidade e qualidade dos zeladores. Mesmo nos meus tempos de garoto, os bois que eu via na Fazenda Costa Campos eram cuidados por tios ngangela ou nyaneka que andavam com porrinho e catana muito afiada, dizendo que o porrinho era para "enducar" o boi maluco ou matar a onça gatuna.
O aumento significativo do efectivo bovino nas margens da EN n° 100 leva à exposição, em venda, do leite natural de vaca, o mahini para os povos do sul.
Por outro lado, a existência de mahini, de tarimba em tarimba, é indicativo de vacas que se reproduzem, cujo leite é repartido entre o vitelo e o homem ordenhador que o coloca à venda. Havendo vitelos, facilmente se adivinha carne nos dias que vêm. É este o ciclo: vacas gordas, mahini, vitelos robustos e saudáveis, bife no prato, cidade saciada... Luanda é o grande mercado de quase tudo e onde se diz que "algumas geladarias que produziam sorvetes com lei em pó passaram agora a comprar leite natural que "está a levar os clientes a lamber os dedos", de tão gostosos que são os gelados confeccionados com leite natural de vaca.
Mas os pastores saídos do Sul não introduzem apenas o mahini na ementa dos Kwanza-sulinos e luandenses. Ao lado do milho, vi também massango. O cereal tem um ciclo maior e é mais resistente à falta de chuva, como me confirmou o mais velho Kikundu:
- Se com a chegada do cacimbo em Maio o milheiro seca em finais de Junho ou Julho, o massango pode esperar pela chegada da outra estação chuvosa. É mais resistente.
Os mais atentos vão tendo já o massango como cultura alternativa, sobretudo para acompanhar "uns nacos de carne fresca, agora que o período de caça se aproxima".
- Ó filho, numa província que tem rios, tem mar, tem terras e tem animais (bois cabritos, carneiros, porcos e galinhas), morrer de fome, no tempo de paz, só pode ser burrice ou preguiça! - São palavras do velho Kikundu.
Soberano Kanyanga, 30.05.22
Texto publicado pelo JE&F, Junho 2022
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