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sexta-feira, julho 08, 2022

O SALÁRIO DO ARLINDO E O CÁGADO DO METRO

Manhã de domingo, seis horas. O meu sono ia ainda à quinta velocidade, mas, sendo tropa antigo (que não dorme) fui a tempo de ouvir o Arlindo (13 anos por completar) a despedir-se:

- Mamã, bom dia!
- Bom dia, filho! Aonde vais tão cedo?
- Eu vou trabalhar. - Respondeu altivo e cheio de humor.
Dentro de mim, as palavras que não saíram começaram a tilintar.
- Que bom! Um filho, menor, que tem (quase) tudo e ganha gosto pelo trabalho é orgulho. Uns cultivam-se em gastar e sonhar com o que o papá vai deixar como herança. - Pensei.
No diálogo conciso que mãe e filho fizeram ainda retive outras passagens.
- Tens dinheiro para táxi?
- Sim. Ainda tenho do meu primeiro salário.
Passavam exactamente sete dias que o Arlindo havia recebido o primeiríssimo salário de sua vida. Foram Kz 15 mil que fez questão de distribuir (voluntariamente) da seguinte forma: 2 mil para a mãe (também dona da empresa), 2 mil para o papá (que acabou recebendo mil ao ver o dinheiro a acabar), e 4 mil que distribuiu para as três irmãs e ao sobrinho Joshua. É aqui que entra o cágado do Metro, um jovem da aldeia de Panga-Panga, antes do Kulangu, para quem trafega de Kanjala ao Lobito.
Em viagem para Benguela, fiquei a pensar no que compraria com a minha porção do primeiro salário do Arlindo. Devia ser algo utilitário e duradouro que levasse, quando atingir a fase adulta, o Arlindo orgulhar-se de ter começado a trabalhar voluntariamente aos 12 anos e ter distribuído o seu primeiro ordenado. Mas mil Kwanzas era coisa pouca aos preços dos "utilitários e duradouros".
Pensei depois em algo que vivesse o tempo de muitas vidas. Algo que tenho com bicho-de-estimação e que contasse muitas estórias, eventualmente até a meus netos vindouros.
Quando ia a passar a aldeia de Panga-Panga, vi sacos de carvão vegetal à venda. No local eu havia comprado, há um ano, três jabutis (semelhantes ao cágado,  mas sendo eles totalmente terrestres ao contrário do cágado que divide a terra com a água doce). Parei e gritei (disfónico) com a força que me restava:
- Aqui já não vendem mbew?¹
- Ó mano, esse tempo já não costuma aparecer. - Apressaram-se em responder as mamãs do carvão.
Porém,  da pequena kamunda² vi um rapazola correndo em minha direção e trazendo na mão algo que se parecia a um minúsculo objecto, uma pedra, vista de longe, e gritando:
- Ó tio, está aqui!
Olhei para ele. Era um jabutizinho com uns dez centímetros de envergadura.
- Quanto é?
- É dois mil. - Respondeu a olhar para o carro.
- É a mim que deves olhar nos olhos e estipular preço. O carro é do patrão. Baixa mais o preço.
- Leva por mil e quinhentos. - Respondeu o Metro.
- Só tenho mil. - Regateei.
- Está bem pai.
Paguei e pedi que guardasse o animal até sábado, quando estivesse de volta a Luanda.
- Se durante a semana você encontrar outros,  guarde-os para mim e pagarei todos. Trocamos nomes e fui à "cidade mãe das cidades" angolanas.
Sábado, 04 de Junho. De regresso a capitalíssima, passei pela aldeia do Metro que me entregue o "cágado", era único.
- Ó tio, não encontrei mais. Nem os meus amigos. Agora está difícil. - Explicou-se.
Recebi feliz, pela sua seriedade. Não se escapuliu. Com os mil Kwanzas do 1° salário do Arlindo, que trabalha como voluntário na empresa da própria mãe, comprei o jabuti que vai crescer, ter vida longa e ouvir contadas muitas estórias à volta dele.
=
¹- cágado/jabuti (Umbundu)
²- pequena elevação/monte.
Obs: texto publicado pelo Jornal de Angola a 02.10.2022

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