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sexta-feira, julho 29, 2022

COMO KATAKO PROVOU DEJECTOS

Há muito venho tentando narrar esse conto. Fogem-me, porém,  sempre que tento, palavras para dar forma à ideia. Vou tentar:

Já era tarde. O sol corria dorminhoco para o descanso habitual, lá pela zona da Baia Farta. Mirando para as colinas, o que os olhos enxergavam era uma cortina acinzentada, trazendo dúvida se era nevoeiro ou poeira de areias levantadas e transportadas pelo vento bravo da corrente fria de Benguela.
- Aqui, neva água miúda e neva areia! - Costumam informar os mais velhos aos visitantes que levam guarda-chuva em vez de Chapéu e óculos.
Corria ainda o ano de 1977. O mês era o do fim da chuva e, no deserto, já o capim pôr-do-sol tomava conta do vasto verde que, há pouco, tinha proporcionado festas sem fim às borboletas e outros amantes da vida farta.
Nascido numa família de nómadas que se haviam sedentarizado, apostando na agricultura e pecuária, mas com forte pendor ainda na caça e recoleção, Katako era um adolescente normal como os demais do seu tempo, porém, espevitado e dado à caça. Era capaz de atingir com a sua lança um leão a 50 metros! Dizia-se à boca pequena.
Certa vez, andando pelo deserto, Katako, açoitado por uma revolução intestinal, abeirou-se de uma carcaça de viatura deixada abandonada por um cokolonya¹ fugitivo e, mais tarde, descaracterizada por populares que, em vez de usufruírem da sua potência e raridade, preferiram rasgar-lhe os pneus para os londindi² e a chaparia para as flexas e panelas.
"Uma fortuna em mãos ignorantes que se fez merda", diria o professor de Katako, Carlos Kakonda, olhando para o HP que num passado recente desafiara as mais movediças areias do milenar deserto do sudoeste africano.
Encostado ao que fora a porta esquerda do bólide e, enquanto se descartava do bolo alimentar, Katako sentiu uma picada de insecto junto à zona de descarga fecal.
- Será kisonde?!³ - Gritou em meio à dor duplicada.
Tentou confirmar, mas falhou o alvo e o dedo voltou adubado.
- Porra! - Exclamou.
Pensou na água rara e folhas arbóreas ausentes. Como livrar-se de eventual acidente?
A orientação mental mandava-lhe coçar a zona do glúteo afectada. Não podendo confirmar sem ver ou cheirar, levou o dedo indicador direito ao alcance do nariz que lhe relatou o conteúdo e seus dias de fermentação.
Era verdade. Tocara na merda. Agastado consigo mesmo, Katako sacudiu o dedo para que aquela bola nauseabunda se apartasse do dedo. Teve, porém, o azar de o dedo tocar numa lâmina da sucata, fazendo um corte no polegar que sangrava avermelhado.
Aflito e recorrendo instintivamente a uma prática secular, Katako levou o dedo à boca para estancar o sangue que corria a jacto, vindo a saber-lhe a hemolinfa e excremento. O dedo que visitara a pocilga tinha adentrado a boca!
=
¹- colono
²- alparcatas.
³- formiga brava.

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