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quarta-feira, junho 08, 2022

O BÊBADO QUE NÃO BEBEU

O sábado tinha sido de revista habitual às infraestruturas. Aliás, em sua casa é assim. Sábado é dia de ver paredes com fissuras, árvores por podar ou a secar, torneiras avariadas, tomadas deslocadas, lâmpadas fundidas e chapas furadas. Feito isso, sai-se para visita às casas da mãe e da sogra que são, na verdade, obras inacabadas, a que se junta a Kam&mesa. É por isso que o dia de descanso bíblico foi baptizado, em casa de Katemo, como o dia das infras.
Para piorar o cansaço, Katemo tinha trabalho com o patrão ao domingo, numa jornada marcada para começar às 08h30, mas sem hora do fim.
Era já duas da tarde. Corpo a doer e estômago com martelos a bater-se entre si, quando Katemo foi liberado do trabalho, na baixa de Luanda. Até à casa, levava hora e meia. Pelo caminho deu boleia a um convidado que estava sem carro e foi ver um dikota que lhe prometera katula mbinza.
O transito até estava bom. A abertura das praias, na pausa da covid-19, tinha levado meio mundo ao mar, em semana de água rara e sol ardente. A chuva só ameaçava mas cair de verdade, nada! Era o calor e a poeira que lhe faziam a vez.
Katemo, dirigido pelo google, chegou ao destino indicado pelo kota do katula mbinza. Encontrou a família, um amigo comum e fez nova amizade. Afinal kapuka das ponteiras sempre arrastou amigos ao alambique e continua a fazer novos amigos até mesmo em cidades grandes como a capitalíssima.
Entre um dedo de conversa e uma pinga, aproveitou comer. Estava a paz feita com a moagem estomacal que o empurrava ao encontro do funji domingueiro. Contou-se a cena de um bêbado que não estava bêbado e os seis convivas entraram em gargalhadas.
- Epá, sabem de uma coisa? - Foi em Londres. O homem era magnata que só coleccionava Scott de primeira linha, aromatizado e com mais de 50 anos de envelhecimento. - Contou o mais velho e mais viajado.
O campo, as relações de proximidade e benfeitorias, bem como o descaso dos endinheirados de um país das arábias também desfilaram entre garfadas e goles refinados de vinho da estranja e kapuka canelada da banda. Estavam à mesa kwanza-sulinos e um kalwanda.
Quando o sol já se curvava, em vênia ao Atlântico, Katemo despediu-se, saindo zunado. A mulher e os filhos ligavam como namorado despercebido encostado à campainha da casa do futuro sogro. Na corrida do Suv, as duas garrafas de katula mbinza tilintavam ruidosas no assento traseiro, fazendo temer um desastre. Olhou à frente. Havia ainda muito xingilamento. Acostou, diante de uma propriedade bem cuidada e guarnecida, para separar as garrafas se se digladiavam violentamente, agitadas pelos saltos que se revezavam intensos.
Sem saber que as litigantes se haviam separado, abriu a porta, escapando-lhe a que abandonara o assento.
- Buá! - Lá se foi, para a sua tristeza, a garrafa de um litro de primeira gota, destilada em Kambaw e envelhecida no Nova Vida.
Veio-lhe à memória a estória do "magnata" que, portando uma vasilha semelhante de um velho whisky escocês, envolveu-se em um acidente que levou à destruição da garrafa. Os primeiros que o socorreram deram-no por bêbado, mesmo não tendo tomado naquele dia, pois, chamados pela curiosidade, foram brindados com um altivo e gostoso odor que saia libertado do carro danificado.
Posto na polícia de trânsito, onde o proprietário da outra viatura fez questão de exigir que fosse soprar o bafômetro, ficou conhecido como o bêbado que não bebeu.
- Como xtá, senhor Doutor bêbado que não bebe?! - Saúdam-no, hoje, assim. 

Obs: publicado pelo Jornal Cultura de 13.04.2022 

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