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domingo, maio 08, 2022

A ESTRADA QUE DÁ CONHECIMENTO

Para "saber é (preciso) andar". Sim. É cada vez mais evidente o aforismo africano que recorda que n em sempre a idade é sinónimo de conhecimento pleno. A idade confere experiência ganha entre erros e acertos (nossos e alheios), mas é preciso andar para ver e conhecer outras realidades, longe do nosso olho e nariz.

Aqui chegados, um infante pode saber coisas que os mais velhos ignorem ou mesmo que os livros não contem com exactidão. Estou ainda na introdução.

Bem, conheci hoje um kota que, tendo nascido em Angola, vive na estranja, se calhar, antes de eu ter nascido ou ido poucos meses depois de minha mãe me ter dado à luz. É o António. Por feliz coincidência, eu tb sou António.

O António que, estando em trabalho em Luanda, me foi procurar no meu posto de trabalho para nos vermos "caralmente" e trocarmos um dedo de conversa, nasceu no Amboim, município da província de que sou também originário.

Ele, filho e neto de cafeicultores e torrefatores de café, teve de sair do país, acompanhando os papás, por causa das kavwanzas de setenta-e-cinco (ou antes), conhecendo vários países, dentre eles a terra do Uncle San e a actual Rainbow Naction ao tempo da segregação. Já lá irei.
Voltemos ao Amboim.

Contou o meu amigo, neto, pelo lado paterno, de uma mestiça do Kunji, (Vye) que sua avó, embora mestiça, pois gerada por um europeu e uma negra, era tão linda e de pele tão clara e olhos azuis que era tida como branca pura. Já seu pai, gerado de uma mestiça e um branco, era tão mulato que os sul-africanos-carcamanos-segregadores sequer o deixavam hospedar-se em casa dos pais na South.

Contou ainda o António que, vivendo na África do Sul racista com os avós saídos de Angola, enquanto os pais trabalhavam em Nova Iorque (ONU), ele a irmã de pai e mãe tiveram de frequentar escolas diferentes, tendo em conta a falta de assertividade dos segregadores quanto à raça dos dois: um era tido como mestiço e outro como white. Já viu?! Coisas como essas, nem os livros dizem com exactidão, dando à oratura um valor amplificado num país de matriz griot.

Mas, o mais comovente, e que me deixou quase com lágrimas nos olhos, foi a narrativa do António sobre a visita que fez à Gabela, ainda no tempo da kitota. Era já trabalhador de uma organização internacional que tinha representação em Luanda. Foi nessas andanças que chegado a Ngimbi, decidiu, a contra gosto de uns, ir a Gabela, cidade que perde de forma continuada, essa caracterização urbana, percorrendo a pé as ruas que deixou limpas e alcatroadas e onde se fazia passear, na infância, montado em sua bicicleta.

Encontrou-as como elas ainda estão hoje: casas com pintura por renovar há quase cinquenta anos (parte minha), vidros quebrados por repor, cinema sem janelas e outros recuos ...

Mais coragem teve ainda o António ao ir bater à porta da casa em que nasceu e ver o quarto que era dele.
Disse que pediu, diligentemente, à senhora que ocupava o imóvel, agora repartido entre quatro ou mais famílias, que apenas o deixasse ver, "mesmo que tivesse de fazer uma declaração donativa", o que acalmou os receios da senhora que, ao ver um "pula" cinquenta e tal kasimbus no lombo, a dizer-lhe "nasci nesta casa", terá pensado que o dono chegara para despejo imediato.

Quer saber o que aconteceu depois da visita?
Pois é. Entre satisfação por ter adentrado, nostalgia e pesar, pela forma como encontrou o seu antigo quarto-companheiro de intimidades, o António, saiu com o rosto banhado em lágrimas. Chamou pela senhora que desfruta do uso campeão e, olhando para a nudez e fome, presente nas costelas desmusculadas das crianças, levou a mão direita à algibeira e declarou aos soluços:
- Minha, senhora, muito obrigado por tudo. Ainda não tive sequer tempo de ir a uma casa de câmbios. Tenho essa notinha que espero, a troque em sitio recomendado pelas autoridades, e compre rebuçados para os meninos. - Dito isso, elevou a nota de USD cem.
- Senhor dono da casa, muito obrigada. Aqui, esse dinheiro que nos oferece não compra só rebuçados. Compra comida para uma semana para todos estes meninos. - Agradeceu Maria Kuzanda.

É preciso andar e ouvir para crescer em conhecimentos.
Hoje, tomei nota de que o racismo sul-africano, ao tempo do apartheid, era muito mais severo e controverso do que imaginava. Além de, sem consciência e sem pejo, separar irmãos de mesmo pai e mãe em branco, mestiço e preto, mantinha porém os japoneses, donos da Toyota, Honda e Suzuki, como brancos, ao passo que todos os demais asiáticos eram tidos como colored!
Já viu?!

Texto publicado no Jornal de Angola a 26.07.22

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