Crónica 03
Contemplo a maravilha que a natureza nos oferece
complementada pelo engenho humano e vejo quão imensa é a cidade de Luvangu. Não
tarda, chega mais uma viatura com dezena de crianças a que se seguem outras de
jovens excursionistas. O espaço ganha vida. Corre-se à volta como se procurando
por algo.
- Não há cá balneários públicos? – Atira um dos
turistas desejoso de desfazer-se de líquidos ou sólidos transformados em pasta.
Abro a minha caixa de recordações e voo até à “Mesa
Montanha” da cidade do Cabo e projecto aí um “cable” e todo o apetrecho
turístico como loja de conveniências, restaurante, café e um Motel erguidos com
material local e sem beliscos ao meio natural. Um pouco desgostoso, já a
caminho da Humpata, para ver a Leba, reparo que o restaurante e a loja de
conveniências com que sonhei ficaram pelo alicerce.
- “Table Moubtain" nacional, ainda vamos a tempo,
se os que têm dinheiro e aqueles que decidem quiserem. ‘ Falei aos botões.
A observação não se distancia da Tundavala que
desperdiça a sua enorme paisagem.
- Só falta mesmo quem decida erguer instalações que
alimentem o turismo. – Murmurei ao Martins que acrescentaria:
- Organizar transporte da cidade ao miradouro, cobrar
taxa de usufruto, impedir que se suje a área com detritos humanos, latas de
cervejas e refrigerantes ou ainda marmitex. Empregar guias que expliquem cada
um daqueles recantos ou colocar em cada atalho placas informativas sobre a
história do local e sua subdivisão espacial. Recrutar fiscais, fotógrafos e
instalar o que atrairia e reteria mais gente ao espaço turístico e recreativo:
restaurantes, cafés, lojas de souvenirs, albergaria rústica, toiletes, etc. Com
tudo isso, ou mesmo metade, não mais nos espantaríamos com o Cable e Table
Moutain de Cape Town. – Concluiu como que conhcesse a Raibow Nation.
Quem
visita Luvangu e não vai à Leba é como ir a Roma e não chegar ao Vaticano.
Dizem. A estrada que desafia a escarpada serra
da Leba é uma "serpente" enrolada sobre a montanha vertical. A
natureza fez a sua parte e o homem engenhoso complementou com a escada sobre o
"edifício" de dezenas de andares. Que maravilha!
Pena é não se ter erguido ainda no local espaços para
reter o turista, depois de saciado pela natureza circundante.
Ainda do alto da Leba, depois de pagar a portagem de
Kz 150.00, contemplo a sua raridade e me recordo de um velho sonho: descer e subir
ao volante de uma viatura.
Ensaio a fiabilidade dos travões e engato uma mudança intermédia,
combinando força e velocidade que não passava de 40 Km/h no início da odisseia.
A meio do percurso, um camião tractor geme pesado e cauteloso, pressionado
pelo bloco de mármore que há-de trazer divisas ao país e ornamentar um edificio
num país qualquer.
- Quão bom seria se tivéssemos já indústria de beneficiação das rochas
ornamentais. Deixaríamos de vender comodities baratas e comprar refinados
caros! – Atirou o Martins que sabendo onde trabalho aproveitou provocar-me
sorrateiramente. Mas é para a descida da Leba que concentro todo o meu talento
e destreza.
É já em território do Namibe que os fóbicos da Leba engolem despreocupados
ar puro.
- Ebenezer (até aqui o Senhor nos
ajudou)!- Foi a frase que ouvi do meu companheiro de viagem que soltou
poucas palavras enquanto eu pelejava contra as curvas e contracurvas numa
espécie de espiral regressivo. Nem mesmo os batuques, os recipientes para a
ordenha, os cacetetes (porrinhos), estatuetas e outros artefactos de madeira
expostos em venda, ao longo da parte final da descendente Leba, despertaram a
atenção do Martins que apenas reagiu aos meus beliscos verbais quando deixou de
ver curvas à frente. Cinco quilómetros abaixo da Leba, depois de uma vasta mata
de mulolas espinhosas, se estende o
Mercado das Mangueiras onde matámos a fome e a sede. A carne, assada em tiras
finas espectadas em palitos, custava Kz 150.00 ao passo que uma perna de
galinha rija custava quatro vezes mais.
- Mas aqui, com tanto gado, a carne é assim tão cara? – Questionei à
vendedeira que atendia pelo nome de Fernandinha. Era também o nome gravado à
entrada da barraca.
- Senhor, é a crise. Até o preço da taxa subiu!
Fazia sol de assar sardinha e o mar que distava perto de uma centena de
quilómetros fazia o convite: “Venham também ver Moçâmedes”.
- Desculpe-me Namibe, mas não será desta vez o nosso reencontro! –
Despedi-me, forçado pelo relógio que corria apressado. Havia ainda a cascata da
Xibya (Chibia) por explorar e fizemo-nos de regresso ao Luvangu, com curta
paragem na Humpata onde o gado bovino, as maçãs, as peras, o trutulho e o bom
clima convidam o turista a uma contemplação do belo. Ponto de passagem entre
Luvangu e a Leba que nos conduz ao Namibe, Humpata é também um local turístico
e de recreação. Tem um mercado municipal recheado de frutas de vontade e pousadas com camas fofas.
Chegados à grande cidade do sul, o caminho seguinte foi o que dá ao
Kunene. Perdidos entre as mulolas e rios
caudalosos em tempo de chuvas fartas, mas que se tornam desérticos em horas
seguintes, precisei de tradutores para "assuntar" que precisava de
fazer fotos com as mulheres mundimbas
trajadas a preceito. Estava na Xibya (Chibia), famosa pelos seus campos
agrícolas onde se haviam estabelecido colonatos luso. Conta-se que Sá da
Bandeira, nome por que fora baptizada a capital huilana, ter-se-á enamorado
pelo clima da Xibya...
Dois tradutores de ocasião ajudam-me a transmitir a ideia, na língua
nativa, às mulheres mundimba que
ignoram o idioma trazido por Sá da Bendeira e conterrâneos.
- Ele veio nos visitar e quer tirar fotos para recordação. Também promete
dar algum dinheiro para os que ficam comprar recordação. - Terá dito, mais ou
menos, um dos tradutores, antes de reclamar: - eu que estou a “assuntar” com as
mamãs também me põe na conta da recordação. A ele se juntou outro jovem, também
pretendendo a boleia da tradução.
As senhoras, caprichosamente trajadas em seus panos e bijuteria de misanga (missanga na grafia
convencional) ao pescoço, acederam sem
resistência. Até apareceram mais do que as minhas previsões, mesmo sabendo que
a quantia prometida era, para mim, irrisória. Mulher mundimba também gosta de se ver na foto registada e guardada na
memória do telefone. E foi o que pediram.
Havia prometido dar cem kwanzas a cada uma das cinco senhoras que contactei
inicialmente. No fim, lá estavam onze mulheres. Para manter o que anunciara
paguei mil e cem às senhoras, juntando mais duzentos para os dois homens que ajudaram a manter tangíveis os discursos.
No momento de despedida, soaram rajadas de palmas. Todos agradecidos. Numa
picada interior da Xibya (Chibia) onde quase nada se compra, senão as misanga (plural de musanga) e o álcool
que "afugenta" o frio que vai e vem sem parar, onde a água pluvial
corre furiosa da montanha para lado desconhecido, de tanto não poder adentrar o
solo pedregoso, cem Kwanzas terá sido
dinheiro.
Não foi dia de turismo. Caminho não havia para chegar à tão recomendada
cascata que, afinal, estava antes, na comuna da Huila. Também guias turísticos
e bons entendedores da Língua de Camões estavam raros.
Do turismo passamos à aventura. É que nem a Maria (viatura) decepcionou na
transposição dos obstáculos pedregosos, quanto não lamacentos, que se
apresentavam na picada escarpada que risca a nuca da montanha que se estica da
Xibya ao Namibe. Regressados a Luanda, verifico de novo o contador de
distâncias e este me informa: consumidos
dois mil, trezentos e quarenta e nove quilómetros. Bem haja
turismo!
Sem comentários:
Enviar um comentário