(Crónica)
Era domingo. Segundo domingo do mês
terceiro. O edifício de cultos, também conhecido como templo, pertencente à
Igreja Pastor Murras -IPM- estava em reabilitação física. Era tempo de
carências sociais. Faltava dinheiro às famílias para atender problemas de
saúde, falta de empregos, pagamento ou construção de moradias, etc. Na IPM
aonde as pessoas se entregavam a granel e levavam os poucos proventos, esperando
pela repetição do milagre multiplicador ensaiado com os peixitos e pãezitos,
era tempo propicio para boas colheitas em oferendas. a alta hierarquia da IPM,
à semelhança Nodos agentes comerciais, publicitavam a sua crença nas rádios,
nos jornais, em outdoors e espalhavam-se fliers pelas artérias das grandes
cidades buscando a adesão máxima de pessoas. Os que estavam à rasca
posicionavam-se nas filas dianteiras, os mais ou menos, iam titubeantes e os
ricaços só iam se para ajudar a lav(r)ar o dinheiro. Naquele domingo de chuva e
sol, era no alto do seu púlpito que o eloquente pregador Kabwiza cantava, como
ninguém o fizera até à data, fazendo lembrar os textos sobre os anjos dos céus
que faziam louvores ao seu criador com as suas arpas melodiosas.
Kabwiza puxava no canto enfático os seus
acólitos: O coro central, a máquina melódica da igreja ou coro de mulheres e a
máquina reformada que eram os homens de vozes toscas. E todos entoavam alegres
"o tempos de colheitas". O piano soluçava as pausas e os tons mais
elevados que até os mudos cantavam no seu intimo. Os surdos pareciam ouvir e
cantavam na mesma cadência "messes abundantes havemos de trazer". Os
balaios se revezavam sem contas. Era o espremer das carteiras e o sacudir das
algibeiras até o último centil. Cantou-se para a recolha da accão de graças.
Depois para o fundo de construção da igreja. Depois para a oferta normal
dominical, depois o dízimo devido ao Senhor.
- Roubará o homem ao seu Senhor a décima
parte, apenas a décima, que lhe é devida? - Questionou provocador o pregador
Kabwiza, esperando, como sempre, um NÃO massivo. E assim foi.
- NÃO!
- Cantemos então o "madibesa kala
nvula". Ordenou o pastor.
Na verdade, esse cântico
"roubado" do livro de hinos de uma outra congregação religiosa já
secular no país era a versão em Kimbundu (uma língua bantu daquele território
africano) do primeiro hino cantado na versão lusófona. Para os crentes da
Centenária, a IPM era uma "roubadora de hinos alheios e quase sempre mal
cantados ou usados apenas para direccionar o povo ao balaio".
Madibesa kala nvula era um trunfo. Todos
o cantavam até os que não percebiam a letra ou que não o relacionavam ao
"Tempos de colheita" também gatunado à Centenária que tinha grande
parte dos seus crente ambundu ou descendente destes.
Cantou-se "twabingi nvula
kokwe" e caíram dízimos, vintemos e outras partes emotivas.
No fim da cerimónia, o pregador e o
tesoureiro iam pesados numa viatura que os rapazes apelidaram de "agarra
esse bebé", já roçada em todos os cantos por causa da imperícia inicial de
quem ganhou o seu primeiro carro sem experiência de estrada. Faziam-se a caminho
de casa suorentos, sedentos e apertados. Eram cinco no minúsculo
"bebé".
Na derradeira curva, antes da casa,
lembraram-se de comprar água para minorar o calor e a sede que os apoquentava.
Os homens da farda que trabalhavam para manter a segurança regularidade do tráfego
tanto pensavam nas tarefas que lhes foram acometidas como também banzelavam nos
dois feriados que se avizinhavam e que calhavam nos seus dias de folga.
Entretanto, foram as mazelas no "bebêzinho", quase a perder a
brancura da tinta inicial, que despertou a atenção da patrulha.
- Quem vai à loja tem dinheiro. - Disse
um dos homens de farda.
A quintilha esperou-os num largo de
pouco movimento e passagem incontornável a quem trafegava naquela rodovia. E
não tardou manda-los encostar o SUZUKI Alto no espaço desocupado que se achava
num antigo largo.
- Bom dia Senhores!, saudou um dos
homens, solicitando de imediato os documentos da viatura e os do condutor que
levou ao bolso sem os consultar.
- Cinco pessoas nesse carro é muita
gente. De onde vêm e para aonde vão, mais velhos? - Indagou o fardado ao
condutor.
- Vimos da igreja e vamos para casa,
chefe. Respondeu o pastor Kabwiza.
- Alguém é pastor entre os irmãos no
carro? - Questionou homem fardado que se achava mais afastado do carro
interceptado e cuidando da viatura em que se faziam transportar os homens
fardados.
- Sim chefe. Eu mesmo sou o pastor. Por
isso aproveito já pedir ao chefe para ler os documentos e nos dizer se podemos
ir para casa. Há ameaça de chuva, como o chefe está a ver o céu escurecido, e
com esse carro não dá jeito andar no bairro. - Informou quase suplicante,
Kabwiza.
- Esse saco aí, apontava para o
embrulho, tem lá o quê? Pode mostrar? - Inquiriu o terceiro agente que se fazia
à direita da viatura abordada.
- É oferta, irmão. É dinheiro sagrado de
Deus. - Respondeu o tesoureiro que ocupava um acento no banco traseiro.
- Ora bem. Vocês são cinco e nós também
somos cinco. - Atirou provocador o agente principal, o que tinha os documentos
no bolso, a olhar para o pastor Kabwiza. O irmão pode ajudar-nos a tirar uma
dúvida que vem na Bíblia? É somente isso e já lhe devolvo seus documentos, pois
tenho certeza que fará a mais fiel interpretação do santo livro.
- Está bem filho. Qual o capítulo? -
Buscou Kabwiza que procurava desfazer-se daquela situação ardilosa.
- É Mateus 5:25, irmão pastor. - Recitou
o fardado expectante.
Kabwiza folheou rápido o sacro-livro e foi ter com o texto
"Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estas no caminho com
ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas
lançado na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali
enquanto não pagares o ultimo ceitil". Confirmou logo as intenções dos
homens de farda que tinham a lição estudada e não precisou de interpretar-lhes
o que lera em voz alta. Desceu do carro para poder enviar as mãos ao bolso e, num gesto inoculável para muitos,
trocou os centis que lhe restavam na algibeira pelos documentos que aqueciam a mão despida do homem da farda de caqui.
Publicado pelo Jornal de Angola, ed.8 de Julho de 2018
Publicado pelo Jornal de Angola, ed.8 de Julho de 2018