Antes da
invenção da escrita, as artes já existiam, pois elas evoluíram com o homem
enquanto ser pensante, livre e transcendental. O que é hoje literatura já teve
outras formas de expressão, nomeadamente, a oralidade que conservava e ainda
conserva a História e as estórias dos povos e das civilizações.
Entre nós,
angolanos, a oralidade vai coexistindo com a literatura e vezes há em que se
confundem. Abundam entre nós relatos da Oralidade levada aos livros e livros grafados
como se fossem relatos orais sobre estórias e lendas milenares dos povos bantu
e pre-bantu do nosso espaço geográfico.
Não poucas vezes,
esses contos viajam nos autocarros públicos, comboios e candongueiros e, tantas
outras vezes, os contos ficcionados ou verdades incógnitas almoçam nas
barracas de kakusu (tilápia) e carne de caça ou mesmo nos quintais de adyakime
já de cabelo algodoado e dentes cariados.
Ngaxi, Nga
Madya, Manda e Isabele Gaspara são comadres desde os tempos da Kitanda do
Xamavu e partilham hoje o sombreiro no mercado municipal de São Paulo. Numa de
suas saídas em busca de negócios, as idosas, caprichosamente vestidas a bêssangana,
pões conversa em dia, não se coibindo ante a presença de jovens com idades de
filhos e netos.
- Xê, Nga Madya,
sabes duma! - Atirou Isabele, meio escondida na cadeira do motorista do
autocarro que geme na subida da Mutamba.
- Nada, comadre,
conta. ; Respondeu Nga Madya, buscando conversa.
- Estás e ver,
no Panguila, Sector quarenta e sete! Uma velhota, assim na nossa idade, mais ou
menos, vivia já viúva cerca de vinte ou trinta anos. Não é que um dia desses se
combina com um dikwenze daqueles trungungeros e começa já as conversa à noite?!
- Sim, mana,
avança. Estamos atentas. – Intrometeu-se Manda, também ela expectante.
- Pois é comadre.
- Continuou Isabele. As coisas quando aqueceram, a velhota começou a gritar “me
larga vai me furar, me larga vai me furar”.
- E depois, mana,
aconteceu mais o quê! - Interpôs Ngaxi que se manteve calada até aí, ante a
expectativa da juventude que se continha para não rir e despertar as idosas que
ficcionavam descontraidamente.
- Pois, então,
prestem atenção. - Apelou a narradora. O vizinho da porta frontal, sabendo que
a vizinha era viúva e vivia sozinha, julgou ser bandido que se introduziu em
casa da vizinha e chamou a polícia, dando o nome da rua e número da casa. Nao é
que posta a polícia no local, a velha não abria a porta?! – Isabela fez pausa
para inspirar a brisa que espalhava ar fresco para dentro do automóvel.
- E ficou tudo
por aí ou houve mais cena com a polícia, o intruso e a mutudi? – Indagou Ngaxi.
_ Ouve então
comadre. – Prosseguiu a narradora. A polícia, pum, pum, pum, na porta e a
velhota nada! Não abria a porta, nem sequer atendia. Mas os gemidos
continuavam. Afinal a conversa lá dentro entre a viúva e o muzangala já ia no
ritmo do carrecto dezoito. O polícia mais corajoso deu um pontapé na porta e
foram ter com os dois em flagrante delícia.
- Sukwama, Kima
kyabambuka! Pegou fogo! – Atirou Ngaxi no outro canto do pesado que deslizava
já em direcção ao Zé Pirão, procurando fazer o contorno para dobrar a Cónego
das Neves, em direcção ao antigo Xamavo.
- Os polícias,
cordas no atrevido e mamã na cabine da Toyota para ir apresentar queixa na
esquadra. - Acrescentou Isabele Gaspara.
- Mas é mesmo tua
verdade, mana Isabele, ou é tua invenção! – Procurou confirmar Ngaxi que se
preparava para abrir também o seu livro oral acabado de produzir.
- É verdade
comadres. - Confirmou Isabele que prosseguiu a narrativa. Postos na esquadra,
em vez de o muzangala explicar o que sucedeu, a própria mutudi é que foi pedir
ao chefe da esquadra: filho, o jovem não me fez nada. O vizinho é que é invejoso
e fofoqueiro. Ele queixou à toa, não viu nada nem ouviu sequer um gemido! Os
polícias: Haka! Boca a tocar na nuca de tanta estupefação.
- E o que nós
vimos então foi o quê, ó mãezinha?! - Procurou ainda saber um dos agentes
policiais que foi prestar o socorro requerido pela vizinhança.
- Foi só mesmo o
que viram. Não me fez violação. Foi só manutenção!
Mamãs e a
juventude toda no autocarro entraram em transe. Gargalhadas de mostrar o último
molar ou apenas os terreiros vazios. Ngaxi, Engrácia de registo, nascida no
distante ano de trinta e cinco do século vinte, como fez vénia de se apresentar,
entrou também no círculo e sacou da sua prosa.
- No meu bairro,
no Kifica, a cena, que não é de mentira como essa da mana Isabele, é mesmo de
verdade verdadeira. A Senhora até é minha amiga e está também já assim, sem
manutenção desde que o vizinho Gasparito apanhou kikonha. Com os negócios dela
de Kisângwa, banana pão, jinguma e bombó assados, arranjou dinheiro e inventou
uma fórmula.
- Fórmula de
quê, mana Ngaxi? Pessoa que começa cena de arranhar cabelo tem de terminar. –
Apelou novamente Manda, procurando pôr mais lenha na fervura.
- Pois é, manas.
Estava só a limpar o suor. – Prosseguiu dona Engrácia ou simplesmente Ngaxi. –
A vizinha, certo dia, a doença de comichão lhe tocou. Bebeu água fresca e nada.
Tomou banho de água natural, de água morna e de água gelada e também nada!
Fazer o quê? Chamou um daqueles meninos que transportam água em troco de bebida.
Xê muzangala, não queres birra? Perguntou a “kaveia” toda sacudida. Até o
Português dela parecia duma mocita do colégio.
- E o moço, mana
Ngaxi? - Perguntaram expectantes as amigas.
- Esperem que já
lá chego. – Acalmou Ngaxi. O moço trouxe um, dois, três bidons de água. Na hora
já de cobrar o que era seu, portanto as cervejas, a velhota lhe diz: só queres
mesmo beber, não queres te lavar? O moço fez sinal de mais ou menos. Na verdade
ele queria mesmo é só beber cerveja dele e ir fazer mais outros kadyenges mas
aceitou já tomar banho por causa do respeito e dos sabonetes caros que a velha
lhe mostrou com ele.
- É verdade
mesmo, dia de sol negócio de água é que bate. - Interrompeu Isabele Gaspara. Mas foi Ngaxi quem
prosseguiu, depois de mais uma pequena pausa na narrativa.
- O moço bebeu a primeira e a segunda. A tia fez pausa
e sugeriu: queres mais duas? Vai tomar banho e depois a avô acaba de te pagar.
Não é que o moço aceitou a proposta?!
- E depois? - Interrogaram,
quase em coro, todas as senhoras vendedeiras do mercado de São Paulo que se
faziam transportar naquele pesado.
- Enquanto o dikwenze
se lavava, usando os sabonetes e cremes da anfitriã, a minha amiga, que não vos
digo o nome dela, fez-lhe uma comida leve e meteu na mesa, ao lado de uma ngala
de vinho. O rapaz também parece já estava a sentir o cheiro a sair da cozinha
e, vendo que não estava aí mais ninguém, atacou e quase mordia a língua. Zás.
Pitéu foi-se todo na barriga que começava a ganhar volume.
- E se foi
embora, mana Ngaxi, ou houve mais? – As comadres pareciam adivinhar o fim da
odisseia mas preferiram devolver a palavra à narradora que contava com mais
retoques e acepipes.
- Não é que o
moço depois de comer queria já sair voado? A velhota lhe perguntou: não queres
enxaguar a boca com uma birra?
- E ele? -
Atirou Nga Madya procurando precipitar o
final.
- Ele aceitou,
mas a vizinha Inês, já com a birra na mão, fez a última proposta: Agora bebe a
avô e depois bebe a birra da porta!
- E bebeu ou
saiu voado? – A pergunta, meio descontrolada fez-se ouvir por todo o autocarro.
- O jovem ainda
a gaguejar, pois procurava digerir aquelas palavras e tomar uma decisão, recebeu
da idosa a sentença final: acaba de me matar!..
Não houve tempo
para mais perguntas. Só gargalhadas.
Obs: texto publicado no Semanário Angolense de 27.11.2016
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