Nzuzi nasceu em
Alfândega, um pequeno vilarejo do norte de Angola. Chegado a Luanda, em meados
dos anos noventa do século finado, ainda criança, viu o mundo da escola a fugir-se
dele por não lhe terem dado a oportunidade de deslizar persistentemente o lápis
sobre o papel até dar forma às figuras geométricas, às letras e aos números.
Nzuzi passa hoje grande parte do seu tempo refugiado em sombras de mulembeiras
ou mulembas, numa das ruas da zona urbana de Luanda, onde faz da lavagem de
carros o seu ganha-pão.
Xavitu, outros dos jovens que frequentam as sombras das mulembas de Luanda,
nasceu em Namacunde, no Cunene. Xavitu abandonou a sua terra natal forçado pela
guerra. Os ovambu, embora tenham a vocação natural de pastores e gostem de fazer
transumância do seu gado, não são muito dados a emigrar para terras distantes e
desconhecidas, ainda mais, sem o gado, uma de suas principais ocupaçoes. Mas
Xavitu, aconselhado por um parente do exército que pesquisara o "salve-se
quem puder" na grande cidade, acabou aceitando a ideia de refugir-se em
Luanda onde se dizia ser tudo possível. Meteu-se em cima dum camião de carga
procedente da Damaralândia e aportou na cidade dos sonhos com dezasseis anos
apenas. Dias depois, escolheu a rua que liga a antiga escola de oficiais do
Gika à Maianga, abundante em mulembas, onde passou a viver das propinas que
cobra aos automobilistas afoitos em encontrar um lugar para estacionar suas
viaturas. Tal como Nzuzi, Xavitu faz-se também passar por dono de um parque público,
lava carros, cobra dinheiro pelo uso do pedaço de estrada morta, rouba aos
incautos, danifica viaturas de quem não pague o que não deve e faz das mulembas
da Martal o seu refugio sempre que o grito do sol fale mais do que a sua
resistência. As mulembas passaram também a seu restaurante, seu contentor de
lixo e, pior ainda, também lugar para urinar e até mesmo defecar.
- Kota, aqui é
só mesmo se desenrascar. Quando cheguei, era ainda um "camenino" e
comecei mesmo a viver no elevador estragado dum prédio e a lavar os carros e
carregar as coisas dos chefes. Quando tenho vontade de tirar água do joelho ou
comida da barriga vou mesmo debaixo das mulembeiras. É mesmo já nosso hábito.
Não temos outros lugares. Numas mulembas ficamos só para apanhar a sombra,
noutras é que fazemos já o que o kota está a ver. - Narrou Xavitu, meio
envergonhado.
Lembinha é zungueira e percorre a cidade de lés-a-lés. Na sua bacia, já
quase sem cor, transporta "magoga" (sandes de frango frito),
"paracuca" (jinguba ou amendoim açucarado), kisângwa (refrigerante
caseiro) e outros "mata-fome" bastante solicitados por funcionários
públicos e outros frequentadores da cidade, em negócios de rua ou trabalho
formal. Apesar de a condição feminina não ajudar muito para a frequência das
mulembas, vezes tantas Lembinha teve de imitar os colegas masculinos das ruas
de Luanda para aliviar-se debaixo de uma árvore.
- A pessoa se amarra um pano e faz só já debaixo da árvore. Não temos
sítios para fazer as "centinas" e quando você bate porta do quintal
para pedir licença na casa de banho, ninguém te aceita. - Argumentou com uma
ponta de vergonha e tristeza.
Lembinha que é de Tunda Sanji, Ngulungu Alto, tem a consciência do mal que
provoca às mulembas e à sanidade urbana, pois reconhece que "não devia ser
assim, porque a cidade cheira mal e muitas árvore acabam por secar", mas
também se justifica sarcástica que "quando, na barriga ou na bexiga, a
revolução chega não há como travá-la", informa a vendedeira.
Na Petrangol, as mulembas que ladeavam a estrada que nos leva a Cacuaco, e
Caxito e que desenhavam um "túnel verde" não resistiram à força do
machado construtor, que propicionou o alargamento da rodovia, mas ainda resta a
Mulemba Waxa Ngola. Apesar de local histórico, de veneração e culto ao soberano
Ngola Kilwanji Kya Samba a quem se deve o nome do nosso país, a árvore vai
recebendo urina e vários detritos produzidos pelo homem.
Nga Ximinha, uma senhora que vende
bombó assado com jinguba torrada, refugia-se sobre a sombra da árvore secular,
não se coibindo de oferecer-lhe, vezes tantas, alguns litros de urina e
adubá-la com os restos do seu comércio de rua. Ximinha é também testemunha de
outras cenas que se desenvolvem debaixo da mulemba mais famosa da Petrangol.
- Aqui quando é noite, os moços vêm cá namorar e se encostam mesmo na
árvore. Já encontramos aqui latex usado na pouca vergonha desses meninos do
bairro. Outros, quando o xixi lhes aperta, não se escondem mais. Até homens de
fato e gravata é mesmo aqui que descarregam o seu mijo de kimbombo e kapuka que
cheira como cheira. - Desabafa Ximinha, entre um misto de culpa pelo que também
faz contra a árvore e algum desgosto pela imundície à volta.
Quando se lhe pergunta por que faz ela parte dos que jogam lixo na mulemba,
Ximinha coça a cabeça e balbucia:
- É mesmo falta de educação e respeito pelas coisas sagradas. Uma árvore
dessas devia ser melhor tratada. - Reconhece a senhora, nos seus aparentes
quarenta e picos anos de idade.
Assim segue a vida das mulembas e daqueles que na cidade ganham a vida
debaixo das árvores, não sendo poupada nenhuma espécie que se mostre à rua:
acácias, coqueiros, tamarineiros, espinheiras, macieiras da India, imbondeiros,
etc.
Resilientes,
mesmo maltratadas, apresentando-se feridas com os troncos rasgados ou
amputados, as nossas mulembas estão sempre dispostas a transformar hidrogênio
em oxigênio puro e incontornável à respiração humana. Mesmo sendo
insistentemente regadas a mijo humano e adubadas com dejectos, lá estão elas,
enfeitando calçadas, ladeando as ruas e avenidas da nossa capital, lançando
ainda o seu perfume que só a barbaridade de quem se esperava pensante elimina
com o fedor de suas descargas biológicas.
As nossas mulembas de Luanda são símbolos de resistência contra o mal, sem
falecer. Continuam hirtas, desempenhando seu papel social e vital.
Plantemos mulembas e demais árvores nas nossas ruas, largos e quintais, a
fim de ganharmos oxigénio reciclado e uma vida mais verde e alegre. Reguemos as
árvores apenas com água natural e adubemo-las com fertilizantes naturais e
químicos recomendados por especialistas. Respeitemos os locais de culto secular
e de memória colectiva, como a Mulemba Waxa Ngola e outros locais como
salvaguarda da nossa herança histórica e cultural. E gritemos todos: vivam as nossas mulembas!
Texto publicado no Semanário Angolense a 15 de Agosto
Texto publicado no Semanário Angolense a 15 de Agosto
1 comentário:
Olá, gostei muito do blog!
Também tenho um onde coloco algumas poesias minhas.
Poderia visitar?
http://wordsbyalonelyguy.blogspot.com.br
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