Depois
de a “Classe de Kwanza-Sul” se ter emancipado do cargo de Kalemba, eu era o
centro da disputa ao domingo, entre o casal que me adoptara para criação.
Órfão
aos oito anos e deslocado de guerra, aliás, “recuados”, era esse o vocábulo dos
anos 80 do século XX que designava aqueles que tinham abandonado suas terras de
nascimento em busca de protecção nas cidades controladas pelas forças
governamentais, no tempo da República popular de Angola, eu era árvore de caule
flexível e que não resistia ao vento.
Explicando
os termos: Classe é um espaço de culto entre os Metodistas Unidos, onde
realizam encontros matutinos ou nocturnos, ao longo da semana. Cada membro da
Igreja Metodista Unida frequenta, normalmente a classe do seu bairro.
De
Maio de 1972 a Julho de 1983, um grupo numeroso de kwanza-sulinos residentes em
Luanda e seus descendentes que tinham frequentado vários templos Metodistas da
capital decidiram em fundar a sua classe que anos mais tarde veriam ascender à
categoria de cargo ou “Igreja” como designam os locais de culto ao domingo.
Entre eles havia também alguns malanjinos, kwanza-nortenhos e outros
provenientes do centro norte e centro sul. Porém, os “kikís”, como são
designados na intimidade os kibalistas e seus conterrâneos do Kwanza-Sul, eram
a maioria. Se calhar, daí o nome “Classe Kwanza-Sul” não ter enfrentado
resistência.
A
"Classe Kwanza-Sul" subordinava-se à “Igreja”(templo) de Kalemba, que fica nas
traseiras do cemitério de Sant’ Ana, ao Kilamba Kiaxi. Em 1983, a Classe
emancipou-se, separando em termos de frequência dominical o casal que me tinha
como tutores. Ele, também um kwanza-sulino, preferiu continuar na Kalemba onde
tinha amigos e próximo da casa da filha. Na “igreja de Kalemba os ovimbundu e
ambundu do centro estavam em maioria, embora lá cultuassem também catetenses,
como a família da minha contemporânea Luzia Mateus Pedro. Ela, a esposa do meu
tio, decidiu frequentar a novel “igreja” que ficou baptizada com o nome do profeta
que levou os escravos israelitas do Egipto à terra prometida de Israel, Moisés.
Como quem dá de beber e de comer aos filhos é a mãe, tive de segui-la e
recorrer ao tio apenas para os conselhos e o dinheiro para o ofertório. Aliás,
ele fazia questão de dar-mo todas as manhãs de domingo, antes da nossa
separação de casa.
A
caminho da igreja eu e a tia seguíamos caminhos distintos. Ela ia com as suas
amigas da Classe, e eu com os meus kambas da EBF (Escola Bíblica de Férias) e do
Pavilhão Infantil. O regresso é que era comum, devido as compras, à porta do
Supermercado Nzala Ikola ou nas bancadas da Praça das Corridas, hoje conhecida
apenas por Praça do Tunga Ngó.
Num
domingo em que a tia não fora à Igreja, por razões que a memória se encarregou
de apagar, caminhava em direcção à Moisés, com os meus amigos, quando, a metros
do Nzamba-1, nos deparamos com gente reunida à volta de um homem que falava sem
cessar. Havia muita gente. Uns eram devotos e outros meros curiosos como nós
que paramos para ver e depois contar aos ausentes. Uns sentados e outros em pé.
Era uma nova confissão religiosa e um pastor muito eloquente. Daqueles que o
meu amigo Murtala satirizou em música por “pastor murras”. O homem tinha sobre
o púlpito um livro “Verbo Divino” que coincidia com a sua verborreia. E todos o
ouviam, até os que se dirigiam ou saiam de outras “ngelús” bebiam e comiam um
“koxitu” daquele sermão que aos cristãos mais treinados lembrava o Sermão do
Monte, proferido pelo nazareno coroado Rei Celestial.
O
“pastor murras” falava sobre o comportamento dum bom crente da sua igreja que
“deve dar a face esquerda depois de apanhar uma valente galheta na face
direita”. E continuava ele:
-
Irmãos e irmãs, fui enviado pelo nosso pai, tal qual foram enviados os profetas
da antiguidade. Um bom cristão tem de saber perdoar…
Os
seus ouvintes seguiam-no atentos e, entre ligeiras pausas, recebia aplausos e
assobios dos que se mostravam contentes, até que um “grego” do Sete e Meio
irrompeu dentre a multidão com um “é mentira”!
Empolgado,
“o pastor murras” esqueceu-se da pregação e soltou um veemente “vai para o
carvalho, seu bandido!”
Foi
a dispersão total dos que seguiam e se sentiam empolgados com aquele
parlatório. Dos aplausos, passou a receber mixoxu de meio mundo.
Felizmente
chegamos a tempo ao nosso Pavilhão Infantil para cantar o “kasanje-kasanje”
do tio Farias, “Margarida Morena” da mana Cândida ou “o elefante que incomoda
muita gente”.
De
regresso à casa, aguardei pelo tio que chegava às duas da tarde e informei-o
sobre os dislates dum pastor, seguido de perguntas “se pastor que é quase deus
também ofende”.
-
Como assim, sobrinho? No Kwanza-Sul o vosso pastor mordeu a língua?
-
Não tio. Foi um pastor de rua que respondeu a um grego do Sete e Meio com um
duro palavrão.
-
Ai é? - O ancião procurou por palavras conciliadoras para “lozar” o seu
conselho habitual, sem ter de desprestigiar o homem do verbo fácil, nem
desencorajar-me de ouvir a palavra sagrada.
-
Meu sobrinho, faz sempre o que te digo, mas nem sempre o que faço. O diabo está
sempre á espreita e o tio ou o pastor pode errar. Aliás, não foi o pastor quem
ofendeu o grego. Foi diabo quem se serviu de sua boca!
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