Pedra Escrita, 10 de Janeiro de
1981. Vivia-se ainda um tempo calmo no campo militar por aquelas paragens.
Os estrondos de canhões eram para
a miudagem do meu tempo contos de fada. De guerra com corpos despedaçados, os
mais velhos tinham já vagas lembranças dos dias longos que levaram o país à
”dipanda” e doutros mais funestos que se seguiram ao hastear da bandeira, uma
“trungungada” já entre nós, os “mambundu”, que caídos nas intrujices dos
guerreadores-frios do oriente e ocidente que, procurando por estender as suas zonas
de influência nos novos Estados sem colonos, nos levaram a nos “balaziarmos”
sem aparente causa profunda.
Minas que se falavam naquele
tempo e naquela região eram apenas as que os prospectores marcaram nas suas
aventuras pelas montanhas e savanas, procurando pelo que a natureza encobre aos
homens. Minas de ferro, de cobre, de diamantes no Musende, etc. Essas sim,
levavam os “pioneiros” a sonharem com o dia em que se tornariam engenheiro de
verdade e não como o Mam-Belé, da Munenga, que anda com as mãos sempre pretas
de óleos descartados dos tractores agrícolas.
Na fazenda Israel, rebaptizada
por Hoji-ya-Henda, ainda se viam homens andando de lado a lado, de campo a
campo, capinando ou levando “imbambas”. Viam-se também tractores, desbravando
florestas, charruando e gradeando a terra. E floriam milherais, girassóis,
tangerineiras e laranjeiras. Floriam ainda mamoeiros, bananeiras. Até jovens e
adolescentes floriam e a beleza era com eles.
As mulheres “amigadas” entregavam-se
às lavras familiares, enquanto os homens aguentavam a “tonga” a troco de uns
Kwanzas que sobravam para comprar o inexistente nas lojas do povo. Aos sábados
e domingos, dias de descanso na fazenda, os homens, as crianças e os
adolescentes da escola auxiliavam as mulheres e mamãs nos trabalhos campestres
familiares, donde provinha o “mbolo ya kizwa” de todos os anos.
Enquanto as bananas da fazenda
satisfaziam o estômago carente de fruta, a banana dondí das propriedades familiares,
depois de fermentada com sumo de “muxiri” ou “mbundi” e destilada, dava azo a
voos cósmicos àqueles que da sua condensada bebida se tornavam artistas. Kyama
Ngulu era um deles.
Não tinha mulher, nem lavra, nem
filhos. Trabalhava de campo em campo a troco de comida imediata e trocos para
uns copos num alambique qualquer. Quando a moda da “doutoromania” se alastrou
por aquelas “bandas”, o povo começou a “doutorar e enginheirar” todos aqueles que
se apresentassem como exímios artistas nos seus afazeres.
António Xico era o “dotor catana”.
Tão grande era a sua perícia em roçar a roça que desafiava as capinadeira
mecânica da fazenda. Xika Yangu era o “dotor volanti”. Dizia-se mesmo que
“tractorava” com os olhos fechados até em noites sem luar nem estrelas
iluminantes. Narciso era “dotor capataz”. Dele ninguém se ausentava sem
licença. Dizia-se que o “dotor capataz” tinha olhos e ouvidos de gato, capaz de
ver e ouvir em noite escura e barulhenta. O Mam-Belé era o “inginhero” da
aldeia e da fazenda. A manutenção de todas as máquinas e equipamentos mecânicos
passava por ele. Kyama Ngulu também tinha o seu título. Não era um homem
qualquer. Era dos que mais chamavam a atenção dos visitantes àquele bairro. Ou
pelo seu estado emporcalhado ou pelo seu “darcensa”, sempre que se dirigisse a
uma cozinha para pedir lume ou uma “kabwenha” para o almoço. Se vivesse até
hoje, dir-se-ia mesmo que Kyama Ngulu se tinha licenciado por auto-didactismo
em ingestão de bebidas alcoólicas tradicionais africanas. Daí o nome de “dotor
Walende” lhe ter servido como chave certa na fechadura.
Kyama ngulu não era apenas um
copofónico. Era também um filósofo de bairro. Nos óbitos, em que era figura
omnipresente, costumava levar os “makota” da região a minutos de reflexão e
busca de respostas quase sempre difíceis.
- Por que se lavam os mortos, se
vão a enterrar?
- Por que se lavam as toalhas de
banho, se os seus donos as usam depois de se lavarem?
- Por que se vestem os finados
com a melhor roupa existente ou se compram fatos caros, se vestido e vestes vão
a enterrar e a apodrecer?
- Por que se enterram os ricos
com fios de ouro, pedras de diamantes e, às vezes, acompanhados de whisky caro,
se deles não fazem usufruto?
- Assim, se um gajo desenterrar o
rico para aproveitar o que os familiares deitam fora, é bruxaria?
Essas eram as perguntas de Kyama
Ngulu que nem sempre encontravam respostas, mesmo por parte dos “makotas” mais
bem servidos de experiência e inteligência.
“Dotor Walende” viveu a sua vida
entre trabalho tarefeiro, copos, algumas roubalheiras de pouca fartura e surras
à mistura quando apanhado com a “boca na botija”. O soba já o tinha julgado
“ene” vezes e passou a ser um “réu permanente e entregue à justiça pública”.
Até mesmo a polícia da Munenga tinha “desconseguido metê-lo na linha”. Vezes
tantas tinha varrido a esquadra e a zona contígua à administração comunal, sem
que dele surgisse o arrependimento ou o endireitamento de conduta.
Não o vi partir, mas conta-se,
ainda até hoje, que a sua morte foi das mais choradas naquela aldeia libolense.
A fama do “Dotor Walende” replica-se aos que vão nascendo, mesmo não se vendo
mais a campa que guarda as suas lembranças. É o nome que se atribui a todos que
seguem o seu caminho.
As mulheres, viúvas e solteiras,
enfeitaram com flores nativas a estrada EN-210, que corta a aldeia em dois
quarteirões, e as ruelas interiores da localidade. As moças tinham viajado ao
Ndondo e Kalulu para tratar do cabelo, unhas postiças e comprar adornos. Os
homens fizeram uma contribuição para enterrar de forma honrosa o seu
companheiro de todos os dias, meses e anos.
“Dotor Walende” ou “kawalende” era
chato, mas útil para a comunidade. Era “mantenedor” de muitas coisas. Amores
esfriados ou inexistentes ele atendia a troco de “walende” ou algum manjar. Corte
de capim para reforçar a cobertura das casas, fabrico de adobes, derrube de
árvores nas lavras (o que mais o chateava), acompanhamento dos meninos à
escola, tudo era obra para o “Dotor Walende”. Até para “porradar” outros
gatunos, ele era o primeiro na fila. Por isso, os homens fizeram uma
contribuição ordenada pelo soba. Cabritos, vinho, “walende”, canjica e até
gira-discos havia. Só não compraram urna funerária para não terem de matar
árvores, o que o finado detestava. Também não compraram roupa nova. Apenas
lavaram a rota que ele usava, cumprindo com a sua filosofia.
Por cima da sua tumba, uma lápide
foi colocada e ali permaneceu até que a guerra pós-eleitoral levou aquelas
gentes para muito longe de seus “libatas”, não se sabendo quem se terá acaparado
do letreiro.
“Aqui jazz o dotor Walende, homem ímpar em todos os
tempos”, lia-se.
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense (2014) e no Jornal de Angola de 12.03.2023.
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense (2014) e no Jornal de Angola de 12.03.2023.
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