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quarta-feira, outubro 15, 2014

A MINHA FÉ NA CULTURA

A língua é um dos principais elementos identitários de um povo, estando por isso intrínseco à sua cultura.
Apesar disso, as línguas de origem africana (bantu) sofreram ao longo do último século um ostracismo que as remeteu ao fundo do quintal, ou seja, elas passaram a ser utilizadas apenas nas áreas rurais, e nos subúrbios das cidades ou em conversas privadas, redundando em perda de identidade.
Tal postura, também herdada pelas novas autoridades angolanas emanadas do processo de independência nacional teve alguns fundamentos:
1º Em 1921, Norton de Matos, Governador português de Angola, exarou o decreto nº 77, nº 5 primeira série, de nove de Dezembro, que estipulava, no seu ponto 3, a obrigatoriedade, em qualquer missão cristã, o ensino da Língua Portuguesa. Rezava ainda o decreto, nos pontos adiantes, a vedação do ensino em línguas estrangeiras bem como a proibição (artigos 2 e 3) do ensino das línguas locais. “Não é permitido ensinar nas escolas de qualquer missão, línguas indígenas, sendo as línguas indígenas permitidas apenas catequese”.
2º O “Estatuto dos indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique” adoptado pelas autoridades coloniais (Decreto-lei de 20 de Maio de 1954) que visava a "assimilação" dos nativos africanos na cultura lusitana, foi outra arma contra a locução e ensino das línguas nativas no território da então colónia de Angola, uma vez que para se chegar à categoria de “cidadão português de terceira” ou assimilado, o nativo teria de abdicar de práticas animistas, não se comunicar, em momento algum, em língua nativa e adoptar os hábitos e cultura lusitana. Isso levou, até há bem pouco tempo, que determinadas famílias abdicassem de usar as línguas nativas e, inclusive, proibir os filhos de as aprender.
3º A unidade do povo para a luta contra a presença colonial exigia uma identidade e uma língua comum entre todos os patriotas. Essa necessidade fez com que, naquelas circunstâncias, os Movimentos de Libertação Nacional adoptassem a língua herdada portuguesa (comum a todos) para mobilizar o povo para a luta e projecção de uma Nação que se revisse num instrumento de comunicação geral.

4º Alcançada a independência, embora se tenha reconhecido nas Lei Constitucional o respeito e valorização das Línguas Nacionais, foi a língua herdada da colonização que ganhou o estatuto de idioma principal, relegando para papel secundário as dezenas de outras línguas que se falam no país.

Entretanto, apesar de vilipendiadas ao longo do tempo, as línguas africanas faladas no espaço territorial de Angola não morreram. Elas persistem e vão cada vez mais, buscando o seu merecido lugar. É desta forma que um número, ainda reduzido, de “angolenses” se vai batendo pela valorização e ensino das mesmas, levando-as, inclusive, à literatura, não apenas na transcrição gráfica dos fonemas mas também obedecendo aos instrumentos reguladores das mesmas, como os alfabetos convencionados nacional e internacionalmente.
Olhando para o FENACULT (Festival Nacional de Cultura) decorrido de 31 de Agosto a 20 de Setembro de 2014, dois aspectos configuraram-se transcendentais e aumentaram a minha fé de que um dos elementos primordiais da nossa cultura, as línguas nativas de origem bantu, venham a ter o reconhecimento e valor que encerram para os povos que habitam Angola.

Reunidos na província do Kwandu-Kuvangu (Cuando Cubango, segundo a grafia ressuscitada pelo Ministério da Administração do Território e fornecida aos media públicos), cento e setenta delegados ao V encontro de Línguas Nacionais recomendaram “a necessidade dos topónimos de origem africana serem escritos de acordo com a grafia bantu estabelecida pelo A.F.I. (Alfabeto Fonético Internacional)” e demais convenções do CICIBA (centro de Estudos da Civilização Bantu).
As direcções provinciais da Cultura, segundo os presentes, “devem aprofundar os estudos sobre o mapeamento linguístico das suas províncias, com a supervisão do Instituto de Línguas Nacionais, bem como estabelecer uma parceria técnico-científica com instituições nacionais e estrangeiras afins”.
A esse encontro seguiram-se declarações, não menos importantes, da titular da pasta da Cultura que afirmou, na cerimónia de abertura do III Congresso Internacional de Língua Portuguesa, (19 Outubro) que “Sem qualquer mácula, deve permanecer o diálogo, já que a diversidade linguística do país constitui a sua grande riqueza na validade e diversidade cultural”.
As afirmações da Ministra Rosa Cruz e Silva surgem quase que como resposta ao que um pequeno grupo de angolenses vem escrevendo desde que o MAT orientou a alteração da grafia, nos media pública, de alguns topónimos angolanos. O discurso da Ministra vem, a meu ver, conferir uma abordagem mais responsável e equilibrada sobre um assunto que não foi encarado com a seriedade necessária, tratando-se de uma questão que mexe com um bom punhado de angolanos, alguns com e outros sem voz audível. É o “vamos conversar que chegaremos a meio termo sem ‘trunguguismos’ a que sempre fomos, eu incluído, apelando em vários escritos nas redes sociais”.

A 26 de Fevereiro de 2014, o Jornal de Angola estampava que “o Ministério da Administração do Território vai levar ao Parlamento, para debate e provável aprovação, uma proposta de Projecto de Lei sobre as denominações das províncias, localidades e municípios do país que está a ser preparada”. Lia-se ainda na notícia que “Bornito de Sousa esclareceu que o seu Ministério vai adoptar novas grafias para algumas províncias, tendo exemplificado a retirada da letra “K” e a introdução do “C”, algo que já se observa nas designações usadas pela media, sobretudo a pública, em cumprimento a uma orientação daquele Departamento Ministerial enviado às redacções e que se baseia em “uma Portaria de 1971, de 12 de Fevereiro, sobre a Divisão Administrativa e Toponímia da então Província Ultramarina de Angola”. Se tal exercício “visou a realização do censo”, é importante que o bom senso e o diálogo prevaleçam e que os alfabetos convencionados pelo nosso Governo, através da Resolução 3/87 de 23 de Maio, do Conselho da República sejam aplicados nas designações das nossas circunscrições.

Os topónimos e antropónimos de origem bantu não são meras designações. Encerram sentidos e conotações semânticas que devem ser respeitados tanto na grafia quanto na articulação fonética para que designem aquilo que foi projectado. Não é certo, por exemplo que se diga “Canjala” (relativo à fome) quando se pretende dizer é “Kanjala” (pequena fome), ou Canhanga em vez de Kanyanga, que não são a mesma coisa.

É por essa e outras razões digo: “não há bota, por mais suja e pesada que seja, que vá aniquilar as nossas línguas e a nossa identidade cultural, secular”. É por isso que mantenho a minha Fé na Cultura!

Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense na rubrica "Aplausos e muxoxos"

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