Apesar
disso, as línguas de origem africana (bantu) sofreram ao longo do último século
um ostracismo que as remeteu ao fundo do quintal, ou seja, elas passaram a ser
utilizadas apenas nas áreas rurais, e nos subúrbios das cidades ou em conversas
privadas, redundando em perda de identidade.
Tal postura, também herdada pelas novas autoridades
angolanas emanadas do processo de independência nacional teve alguns
fundamentos:
1º
Em 1921, Norton de Matos, Governador português de Angola, exarou o decreto nº
77, nº 5 primeira série, de nove de Dezembro, que estipulava, no seu ponto 3, a
obrigatoriedade, em qualquer missão cristã, o ensino da Língua Portuguesa. Rezava
ainda o decreto, nos pontos adiantes, a vedação do ensino em línguas
estrangeiras bem como a proibição (artigos 2 e 3) do ensino das línguas locais.
“Não é permitido ensinar nas escolas de qualquer missão, línguas indígenas,
sendo as línguas indígenas permitidas apenas catequese”.
2º
O “Estatuto dos indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique” adoptado
pelas autoridades coloniais (Decreto-lei
de 20 de Maio de 1954) que visava a "assimilação" dos nativos africanos na cultura
lusitana, foi outra arma contra a locução e
ensino das línguas nativas no território da então colónia de Angola, uma vez
que para se chegar à categoria de “cidadão português de terceira” ou
assimilado, o nativo teria de abdicar de práticas animistas, não se comunicar,
em momento algum, em língua nativa e adoptar os hábitos e cultura lusitana.
Isso levou, até há bem pouco tempo, que determinadas famílias abdicassem de
usar as línguas nativas e, inclusive, proibir os filhos de as aprender.
3º
A unidade do povo para a luta contra a presença colonial exigia uma identidade
e uma língua comum entre todos os patriotas. Essa necessidade fez com que,
naquelas circunstâncias, os Movimentos de Libertação Nacional adoptassem a
língua herdada portuguesa (comum a todos) para mobilizar o povo para a luta e
projecção de uma Nação que se revisse num instrumento de comunicação geral.
4º
Alcançada a independência, embora se tenha reconhecido nas Lei Constitucional o
respeito e valorização das Línguas Nacionais, foi a língua herdada da
colonização que ganhou o estatuto de idioma principal, relegando para papel
secundário as dezenas de outras línguas que se falam no país.
Entretanto,
apesar de vilipendiadas ao longo do tempo, as línguas africanas faladas no
espaço territorial de Angola não morreram. Elas persistem e vão cada vez mais,
buscando o seu merecido lugar. É desta forma que um número, ainda reduzido, de
“angolenses” se vai batendo pela valorização e ensino das mesmas, levando-as,
inclusive, à literatura, não apenas na transcrição gráfica dos fonemas mas
também obedecendo aos instrumentos reguladores das mesmas, como os alfabetos
convencionados nacional e internacionalmente.
Olhando
para o FENACULT (Festival Nacional de Cultura) decorrido de 31 de Agosto a 20
de Setembro de 2014, dois aspectos configuraram-se transcendentais e aumentaram
a minha fé de que um dos elementos primordiais da nossa cultura, as línguas
nativas de origem bantu, venham a ter o reconhecimento e valor que encerram
para os povos que habitam Angola.
Reunidos na província do
Kwandu-Kuvangu (Cuando Cubango, segundo a grafia ressuscitada pelo Ministério
da Administração do Território e fornecida aos media públicos), cento e setenta
delegados ao V encontro de Línguas Nacionais recomendaram “a necessidade dos topónimos
de origem africana serem escritos de acordo com a grafia bantu estabelecida
pelo A.F.I. (Alfabeto Fonético Internacional)” e demais convenções do CICIBA
(centro de Estudos da Civilização Bantu).
As
direcções provinciais da Cultura, segundo os presentes, “devem aprofundar os
estudos sobre o mapeamento linguístico das suas províncias, com a supervisão do
Instituto de Línguas Nacionais, bem como estabelecer uma parceria
técnico-científica com instituições nacionais e estrangeiras afins”.
A
esse encontro seguiram-se declarações, não menos importantes, da titular da
pasta da Cultura que afirmou, na cerimónia de abertura do III
Congresso Internacional de Língua Portuguesa, (19 Outubro) que “Sem qualquer
mácula, deve permanecer o diálogo, já que a diversidade linguística do país
constitui a sua grande riqueza na validade e diversidade cultural”.
As afirmações da Ministra Rosa Cruz e Silva surgem
quase que como resposta ao que um pequeno grupo de angolenses vem escrevendo desde que
o MAT orientou a alteração da grafia, nos media pública, de alguns topónimos
angolanos. O discurso da Ministra vem, a meu ver, conferir uma abordagem mais
responsável e equilibrada sobre um assunto que não foi encarado com a seriedade
necessária, tratando-se de uma questão que mexe com um bom punhado de angolanos,
alguns com e outros sem voz audível. É o “vamos conversar que chegaremos a meio
termo sem ‘trunguguismos’ a que sempre fomos, eu incluído, apelando em vários
escritos nas redes sociais”.
A
26 de Fevereiro de 2014, o Jornal de Angola estampava que “o Ministério da
Administração do Território vai levar ao Parlamento, para debate e provável
aprovação, uma proposta de Projecto de Lei sobre as denominações das
províncias, localidades e municípios do país que está a ser preparada”. Lia-se
ainda na notícia que “Bornito de Sousa esclareceu que o seu Ministério vai
adoptar novas grafias para algumas províncias, tendo exemplificado a retirada
da letra “K” e a introdução do “C”, algo que já se observa nas designações
usadas pela media, sobretudo a pública, em cumprimento a uma orientação daquele
Departamento Ministerial enviado às redacções e que se baseia em “uma Portaria
de 1971, de 12 de Fevereiro, sobre a Divisão Administrativa e Toponímia da
então Província Ultramarina de Angola”. Se tal exercício “visou a realização do
censo”, é importante que o bom senso e o diálogo prevaleçam e que os alfabetos
convencionados pelo nosso Governo, através da Resolução 3/87 de 23 de Maio, do Conselho da República sejam aplicados nas
designações das nossas circunscrições.
Os topónimos e antropónimos de origem bantu não são meras designações. Encerram sentidos e conotações semânticas que devem ser respeitados tanto na grafia quanto na articulação fonética para que designem aquilo que foi projectado. Não é certo, por exemplo que se diga “Canjala” (relativo à fome) quando se pretende dizer é “Kanjala” (pequena fome), ou Canhanga em vez de Kanyanga, que não são a mesma coisa.
É por essa e outras razões digo: “não há bota, por mais suja e pesada que seja, que vá aniquilar as nossas línguas e a nossa identidade cultural, secular”. É por isso que mantenho a minha Fé na Cultura!
Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense na rubrica "Aplausos e muxoxos"
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